Laicidade radical e outras falácias – II
Para além de uma cedência inadmíssivel às pretensões do terrorismo islâmico, se estas de facto se devessem ao que pretendem os que querem combater o fundamentalismo islâmico com o católico, «a exclusão de Deus» que constitui «um ataque às convicções mais íntimas» dos terroristas em nome de Deus, o que advogam os católicos mais fanáticos, para além de corresponder ao desmoronamento da sociedade tolerante que construímos, não só não resolveria o problema que o terrorismo em nome de Allah constitui como apenas conduziria a uma escalada da violência e a uma nova «cruzada».
Como o confirma, por exemplo, o facto de o número 2 da Al-Qaeda, o egípcio Ayman al-Zawahri, para além de chamar fracassado e mentiroso a George W. Bush, ter designado por charlatão o auto intitulado representante do Deus católico, numa mensagem de vídeo divulgada a semana passada no site da rede de televisão Al-Jazeera. O líder terrorista mencionou Bento XVI afirmando «Esse charlatão acusou o Islão de ser incompatível com a racionalidade, enquanto esquece que a sua própria cristandade é inaceitável para uma mente sensível».
A única forma de combater o terrorismo religioso e simultaneamente defender a nossa sociedade é a defesa intransigente dos valores em que esta foi fundada, primordiais entre estes a laicidade e a liberdade de expressão!
Aproveitar a ameaça que o terrorismo islâmico constitui – e uma simples inspecção aos nossos arquivos confirma termos denunciado desde sempre o fundamentalismo religioso, seja de que confissão for, como a pior ameaça à humanidade na actualidade – para verberar, como um dos apologetas profissionais de serviço ao nosso espaço de debate o faz, que a laicidade e os laicistas são os «maiores amigos» do terrorismo islâmico e que «o verdadeiro inimigo dos terroristas é o Papa Bento XVI», apenas confirma a minha análise da palestra de Regensburg: que esta foi cuidadosamente estudada para que Bernardos sortidos espalhados pelo Ocidente fizessem a apologia de Bento XVI e do catolicismo como bastião da defesa contra o fundamentalismo islâmico e simultaneamente atacassem a laicidade e os valores civilizacionais que pretendem falaciosamente defender!
De facto, afirmar que passa pelo fundamentalismo católico a defesa do nosso modelo de sociedade, isto é, dos seus valores civilizacionais – declarados contra a Igreja católica, que sempre os combateu e os denominou de «loucura e erro» – é rejeitar esses valores e corresponde a uma regressão para uma sociedade análoga à que os fundamentalistas islâmicos querem impor (ou já impuseram) nos respectivos países.
Ao embarcarmos nas falácias preparadas pelos fundamentalistas católicos, que se desdobram em ataques constantes à laicidade e à liberdade de expressão – lendo os textos dos escribas de serviço aparentemente apenas o Papa e os católicos podem usufruir dessa liberdade para criticar outras posturas face à religião, principalmente o islamismo e o ateísmo – não estamos a defender a nossa sociedade: estamos a atacar as bases em que ela foi construída!
Não há qualquer diferença em género que não em espécie entre sociedades integristas em que a religião, qualquer, determina todos os aspectos do quotidiano. A ameaça que constitui o terrorismo islâmico deve-se ao fundamentalismo religioso em que se baseia não ao facto de a religião em causa ser a islâmica. Qualquer fundamentalismo religioso constitui uma ameaça aos nossos valores civilizacionais, que não distinguem cor nem credo.
É extremamente preocupante que há pouco menos de um mês, sem fanfarras nem grandes anúncios públicos, a Assembleia Geral das Nações Unidas tenha aprovado uma moção genérica de combate ao terrorismo global, em que se inclui uma frase defendendo a tomada de medidas contra «a difamação das religiões». Isto é, exortando os estados membro à criação de leis punindo a «blasfémia».
Esta medida, a ir para a frente, indica apenas que o terrorismo global teve a sua primeira grande vitória: a derrota dos valores civilizacionais em que assentam as nossas sociedades democráticas e simultaneamente a derrota de uma declaração que a ONU proclamou faz 58 anos no próximo dia 12, principalmente dos seus artigos 18, 19 e 28.