Da laicidade radical e outras falácias
O ateísmo, normalmente reduzido ao seu significado etimológico, isto é, a negação de Deus (ou deuses), na realidade é a posição filosófica herdeira da filosofia grega, que correspondeu ao abandono das explicações religiosas até então vigentes e em que se procurou, através da razão e da observação, um novo sentido para o universo.
Uma das escolas filosóficas mais antigas, associada ao atomismo, nomeadamente como foi desenvolvido por Epicurus, o primeiro ateísta de que há registo histórico, assentava na existência exclusiva de causas naturais para todos os aspectos da natureza. O ateísmo, se quisermos, corresponde à evolução desta escola filosófica na medida em que os ateístas não sentem qualquer necessidade do sobrenatural, isto é, o Universo é simplesmente aquilo que vemos, é a única realidade existente e nós somos apenas um infíma consequência de processos naturais casuísticos. Assim, o significado da nossa vida é o que fazemos dela e não há qualquer causa última quer para nós quer para o Universo.
Em resumo, para os ateístas a mera concepção de um qualquer ser transcendente ou sobrenatural é, para além de desnecessária, absurda, e toda a «ligação» para além da física, a metafísica que muitos confundem com sobrenaturalidade, se reduz à sua definição por William James, «apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza», isto é, sem arbitrariedade nem dogmatismo.
Todas as religiões, especialmente as do livro, são anti-ateísmo e todas elas, na sua história mais ou menos recente, perseguiram e assassinaram todos os que se atreviam a pôr em causa os dislates em que assentam. Todas elas, com excepção do judaísmo, consideram ser obrigação dos crentes espalhar a fé e combater o ateísmo. No entanto, muitos crentes, os mais fanáticos em especial, ululam estridentes acusações de anti-religiosidade em relação a todos os ateus que se atrevem a afirmar publicamente as suas convicções filosóficas.
E enquanto um crente que combata o ateísmo é designado como convicto ou coerente com a doutrina respectiva, um ateu que simplesmente se atreva a manifestar, num espaço que tem o nome Diário Ateísta, as suas convicções filosóficas ou a sua coerência humanista é imediatamente rotulado de ateísta radical ou fundamentalista.
Ou seja, por uma qualquer razão obscura, esses crentes, que não foram permeados pelo pluralismo nem respeitam de facto os valores civilizacionais em que assenta a nossa sociedade democrática, consideram ser apenas o que chamam «convicção» religiosa o que é na realidade fundamentalismo, porque passa pela defesa de um conjunto de princípios, de natureza religiosa tradicionais e ortodoxos, a que chamam «valores radicados na natureza mesma do ser humano», tidos por verdades fundamentais e indispensáveis à consciência colectiva dos Estados em que se inserem, nomeadamente consideram ser dever dos Estados impor esses «valores morais universais e absolutos» na letra da lei.
E chamam «fanáticos» ou «fundamentalistas» ateus aos que se opõem a essa «legítima» imposição a todos dos dislates religiosos respectivos e denunciam as manobras nesse sentido.
Mais interessante ainda é o oxímoro com que mimoseiam os que se opõem a que o Estado seja utilizado na evangelização da sociedade: laicistas radicais!
Tal como não podem existir graus nem adjectivação da democracia, ou há democracia ou não há, também ou existe laicidade ou de facto não há separação Estado-Igreja. Quando quem detém o poder político legitimamente sufragado perpetua ou prolonga esse poder – vide o que está a acontecer na Venezuela em que Hugo Chavez prepara a perpetuação da sua presidência – mata a democracia; de igual forma, quando o Estado deixa a Igreja, que aproveita a mínima oportunidade para tal, imiscuir-se no espaço público (em que este público se refere ao espaço sobre a tutela do Estado) deixa de existir laicidade – contra a qual verberam todas as religiões nos países em que são maioritárias e que exigem veemente e estridentemente naqueles em que são minoritárias.
Nas sociedades ocidentais os sucessivos embates entre a ciência e a religião iniciados na Renascença, exactamente com a redescoberta do trabalho do ateísta Epicurus na forma do poema de Titus Lucrecius Carus De rerum Natura, continuados nos combates políticos ao poder da Igreja, proporcionaram a sociedade tolerante, democrática e assente em valores humanistas que é a nossa. Sociedade que é incompatível com o fundamentalismo religioso. Qualquer que este seja, islâmico ou cristão!