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Encefalização: o ser do homem


Clique na imagem para aumentar. Evolução da capacidade craniana humana. Neste gráfico estão representados todos os dados disponíveis na literatura até Setembro de 2000 referentes a crânios adultos com mais de 10 000 anos. Análise dos dados da literatura por Nick Matzke no Panda’s Thumb. Contrariamente ao que pretendem os criacionistas, puros e duros ou IDiotas, confirma a existência de um contínuo de fósseis que atestam a evolução humana. Neste gráfico é expressa uma comparação neuroanatómica de espécies extintas com o homem moderno em termos de dimensões cranianas. Ou seja, nada nos diz sobre a evolução da especialização do cérebro humano e concumitantes capacidades comportamentais e cognitivas que nos são únicas . Nomeadamente, é impossível retirar desta representação qualquer tipo de informação sobre a evolução da área neocortical.

«Diga-me onde mora o amor, no coração ou na cabeça?» Shakespeare in Mercador de Veneza.

Há cerca de 3700 anos foi escrito o primeiro documento médico da história da humanidade muito provavelmente por um grande médico egípcio chamado Imhotep, o «papiro cirúrgico de Edwin Smith» que, para além da anatomia do cérebro, descreve problemas neurológicos.

Este documento, escrito por volta de 1700 a.E.C., mas que contém referências a textos escritos até 3000 a.E.C., reporta, entre outros, 27 casos de traumatismos cranio-encefálicos. Podemos apreciar no papiro a descrição de lesões no cérebro – que apresenta «rugas semelhantes àquelas que se formam sobre o cobre em fusão» – que afectam partes distantes do corpo. Um dos casos relatados indica como a fractura do osso temporal do crânio provocou a perda da fala no paciente, ou seja, descreve o primeiro caso documentado de afasia, muito antes de Paul Broca o ter feito em 1861! Para além disso, o papiro de quasi 4000 anos indica que os médicos egípcios provavelmente já tinham a noção de que o cérebro controlava o movimento.

Não obstante toda a evidência empírica sobre a importância biológica do cérebro, os antigos egípcios aceitavam a primazia «mística» do coração e este – assim como outros orgãos sobrenaturalmente «importantes» como o fígado – era removido cuidadosamento durante o processo de embalsamento do cadáver, guardado num recipiente onde permanecia preservado para a viagem até ao «mundo dos mortos». O cérebro era displicentemente removido pelas narinas e deitado no lixo, o que indica considerarem os egpícios não ter o cérebro qualquer papel no «Além»!

Esta visão cardiocentrista induzida por superstições míticas que podemos fazer remontar aos antigos egpcíos é mantida no cristianismo e persiste até ao século XVII, não obstante os atomistas, nomeadamente Demócrito que classificou o cérebro como a «cidadela do corpo», o «guardião do pensamento e da inteligência», e outros pensadores como Hipócrates, Herófilo ou Galeno, terem colocado o cérebro como responsável pelo ser do homem.

Na realidade, é no cérebro e não no coração – como pretende toda a mitologia cristã, que na linha aristotélica privilegia a tese «cardiocentrista«, aquela que confere ao coração o monopólio da razão e das paixões – que devemos procurar a explicação do «ser» do homem, em que este ser inclui o «ser» social e moral, que evolui com a encefalização do homem. Isto é, não é necessária uma alma «insuflada» por qualquer mito para explicar biologicamente o que as mitologias sortidas atribuem a intervenção divina.

Assim, como explorei em Agosto na série de posts devotada à encefalização e evolução humanas, o que nos torna diferente das outras espécies animais são as capacidades possibilitadas por um cérebro único no reino animal. É esse mesmo cérebro que nos impõe, usando o termo cunhado por Eugene D’Aquili, o «imperativo cognitivo», um desejo de ordem e sentido que é biologicamente condicionado e que está na origem dos mitos religiosos. Mitos religiosos que constituiram há dezenas de milhares de anos um trunfo evolutivo mas que hoje mais não são que um anacronismo que representa regressão e não evolução!

(continua)

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