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Mês: Outubro 2006

31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé IV – A Igreja e a Razão (fim)

Depois da degradação do sistema feudal e do fim do poder militar da Igreja perdeu-se a última componente política que a Igreja ainda possuía com o advento dos valores laicistas. Os governos já não precisam do aval de Roma para exercer o seu poder. A religião não é um dos eixos da sociedade e o clero já não é uma classe. A separação de poderes garante não só que as religiões não interfiram no poder do Estado como salvaguarda as religiões da interferência deste. Ganhou-se liberdade em duas frentes, a religiosa e individual e a de Estado e institucional, ainda que a liberdade que a Igreja pretendesse em tempos fosse outra. Mais uma vez, uma noção de liberdade diferente.

O avanço da Ciência foi removendo Deus dos modelos explicativos do mundo natural, transformando-o num deus das lacunas, que apenas consegue sobreviver em nichos onde o conhecimento humano ainda não chegou, nichos esses que tanto alento trazem aos que vêm nessa ignorância uma esperança de Deus. De facto, uma das últimas, mais frágeis e importantes lacunas das quais Deus foi removido foi a da origem da vida e do ser humano, com o surgimento das ideias de Darwin – tema esse ao qual várias fés pretendem devolver o estatuto de lacuna. A Ciência dá hoje e cada vez mais uma explicação sólida da realidade, aperfeiçoável, sem recorrer a subterfúgios teístas para salvar a nossa divindade e a dos nossos deuses.

Com a propagação de uma cultura de sociedade democrática e laica e uma outra cultura científica e tecnológica, a Igreja ficou relegada para o plano social, sem que lhe seja dada a mesma importância de outrora nesses campos da sociedade. A principal consequência que o abraçar do racionalismo, nas suas várias formas, teve para a Igreja foi o seu afastamento dos seus campos de actividade tradicionais. Como mote de reconciliação, parece-me que tem sido o esforço de Bento XVI reabilitar a Fé com a Razão. Como? Ressuscitando as velhas dúvidas lacunares, recuperando a antiga noção de Razão (vide “Fides et Ratio”) e apelando ao bom senso como cimento destas ideias. Isto traduz-se em advertências à comunidade científica, condenação dos valores laicistas e uma suposta posição previlegiada na luta contra o terrorismo.

31 de Outubro, 2006 fburnay

A Razão e a Fé III – A Igreja e a Razão (cont.)

O modelo de Copérnico foi considerado absurdo e erróneo (sic) pela Igreja e o seu livro colocado no Index, assim que lhe foi dada importância. Galileu foi ameaçado de tortura e obrigado a abjurar, «de coração sincero e genuína fé» por ter defendido um erro «contrário à Santa Igreja Católica» e por negar os princípios aristotélicos. A igualdade entre os homens foi igualmente considerada um disparate pelo papa Pio VI na sua bula Quod Aliquantum, uma resposta à Declaração Universal dos Direitos do Homem. A liberdade de consciência era, para o papa Gregório XVI, um delírio absurdo e erróneo.

As classificações de absurdidade e erro são uma constante. Se bem que mais tarde retractadas em muitos casos ou rectificadas noutros, porquê a obstinação aos frutos do raciocínio? Porquê esta aversão ao exercício livre da Razão? Durante séculos a ICAR condenou o Individualismo a vários níveis e em particular enquanto possibilidade de exercer o nosso próprio julgamento. E estava errada nas posições que tomou. O modelo de Copérnico afinal, tinha razão de ser. Aristóteles estava enganado na sua descrição do mundo natural. A liberdade de consciência foi considerada, por Paulo VI, como estando «para além da razão de Estado e da razão da Igreja». Porque é que a Igreja não deu ouvidos a quem o havia dito tantos anos antes? A primeira ideia que me vem à cabeça é a dogmática – a sempre intrigante memética do divino.

Se a Igreja se enganou tantas vezes nos julgamentos que fez em relação a temas fundamentais da Ciência ou da vida em sociedade, sendo que nesses julgamentos se baseou na sua estrutura teológica, que dizer da qualidade desses fundamentos? No fundo, porque é que Aristóteles se enganou? Porque recorreu unicamente à sua capacidade de raciocínio para explicar a natureza da realidade. É variada a forma como filósofos se enganaram sistematicamente em relação a descrições do mundo natural. Isto aconteceu porque a especulação filosófica é insuficiente para descrever a realidade sem que se saiba se os princípios de onde partimos têm ou não parecenças com os objectos reais do mundo. Essa herança aristotélica prevalece ainda na ICAR. Essa forma de “racionalismo” não tem, no entanto, grande paralelismo com aquilo a que hoje em dia designamos por Racionalismo – o exercício da razão longe de preconceitos não só como forma de auto determinação (a componente individualista) como o uso desta no aperfeiçoamento do conhecimento empírico que temos do mundo (na Ciência). A versão religiosa é outra e diz respeito à capacidade de articular argumentos teístas num discurso metafísico. Diz respeito, no fundo, um pouco à noção daquilo que a Razão deveria ser para os escolásticos e um pouco aquilo que deveria ser para os tomistas. No fundo, refere-se a uma noção de fé consciente e pensada. Trata de usar as capacidades racionais para fortalecer a fé. A Razão cujos valores eu defendo não tem nada a ver com isto.

30 de Outubro, 2006 Carlos Esperança

Nicarágua – Protectorado do Vaticano

O Parlamento da Nicarágua aprovou um projecto de lei que proíbe o aborto terapêutico.

Interrompe-se, assim, um acto que, por indicação médica, se praticava legalmente há mais de um século.

A medida, instigada pela Igreja Católica, está a levantar um coro de protestos, mas fica a ideia de que, quando a correlação de forças lhe é favorável, a Igreja impõe às mulheres a obrigação de parir, ainda que no ventre esteja um ser com deformidades incompatíveis com a vida, um feto com espinha bífida ou mongolóide.

Nem mesmo o perigo de vida da mulher demove os padres, que jamais serão mães.

Depois acusam de jacobinismo os que, conhecendo a felicidade de ser pai ou mãe, não querem que se persigam as mulheres que não têm resistência psicológica para suportar uma gravidez indesejada.

A maldade humana está onde menos se espera. Este retrocesso legislativo é uma afronta às mulheres de todo o mundo.

A clericanalha não dá tréguas.

30 de Outubro, 2006 Palmira Silva

Opus Dei perde no Brasil

Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito à segunda volta presidente do Brasil com 61% dos votos.

Geraldo Alckmin, o tal que é filho do primeiro supranumerário do Brasil e ele próprio pelo menos com fortes ligações à Opus Dei – promove reuniões periódicas com membros da seita e tem um confessor da prelatura – teve menos votos que na primeira volta: apenas 39% dos votos.

A separação da Igreja e do Estado, uma conquista da democracia, fica assim a salvo das depredações inevitáveis que a eleição de um presidente ligado à mais fanática e intolerante seita da Igreja católica implicaria. Os mais sinceros parabéns aos nossos leitores do outro lado do Atlântico!

30 de Outubro, 2006 lrodrigues

A Igreja Católica e a Vida Humana

Nestes tempos de intenso debate nacional a propósito do referendo sobre a despenalização do aborto, é notória a profunda dissensão a que se assiste na sociedade portuguesa entre os defensores do “sim” e os defensores do “não”.

As divergências políticas estão já marcadas: depois do Primeiro-ministro José Sócrates se ter afirmado publicamente a favor do «sim», apareceu Marques Mendes a dizer que votará «não», numa posição que pretende nitidamente não mais do que uma demarcação política e partidária.
Depois, aparece a Igreja Católica mais uma vez a meter o bedelho e a querer influenciar a sociedade e a vida das pessoas, quer sejam católicas quer não o sejam.
Pela voz de José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, a Igreja Católica é muito clara a explicar a sua posição:
«…desde o seu início, a Igreja condenou o aborto, porque considera que desde o primeiro momento da concepção, existe um ser humano, com toda a sua dignidade, com direito a existir e a ser protegido».
E vai mais longe quando esclarece que:
«… a condenação do aborto não é uma questão religiosa, mas de «ética fundamental»; trata-se, de facto, de um valor universal, o direito à vida, exigência da moral natural…».
Assim, e defendendo a vida humana como um valor inquestionavelmente absoluto, ao mesmo tempo que considera que desde o primeiro momento da concepção existe já uma vida humana, a Igreja Católica assume uma pretendida coerência de ser contra o aborto.
A vida humana é um valor absoluto, e ponto final!
De tal forma, que a Igreja Católica é inequivocamente contra qualquer forma de aborto.
Mesmo nos casos (previstos na lei actualmente vigente em Portugal) de malformação do feto, de violação ou de perigo de vida para a mulher, a Igreja Católica tem sempre a mesma posição: é contra o aborto.
É assim que (admitamos que muito coerentemente), esse repositório básico da «Doutrina Oficial da Igreja Católica», dos «valores judaico-cristãos» da civilização ocidental, essa fonte de «ética fundamental» que é o «Catecismo da Igreja Católica», pune com a pena de excomunhão «latae sententiae», isto é, pela prática do próprio facto, tanto a mulher que pratica um aborto, como também quem a tenha auxiliado.
Como podia ser de outra maneira: pois não é a vida humana um valor fundamental e absoluto para a Igreja Católica?
Pois. Mas o pior é que não é!
É que enquanto afirma que «a vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção», e que «desde o primeiro momento de sua existência o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo o ser inocente à vida», esse mesmo tal «Catecismo da Igreja Católica» afirma a propósito da «legítima defesa»:
«Quem defende sua vida não é culpável de homicídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor».
Isto explicado melhor quer dizer que a doutrina católica, a tal «ética fundamental» a que se referia o Cardeal Patriarca e tão bem explicada no «Catecismo», nos diz que quando estão em confronto as vidas humanas de um agressor e de um agredido, privilegia-se este último e legitima-se o seu direito a defender-se e a matar o agressor, isto é, a tirar-lhe o tal «valor absoluto» que é sua a vida humana.
Mas quando uma gravidez põe em perigo a vida de uma mulher, não lhe é concedido o direito a abortar.
Desta vez privilegia-se um embrião, a quem se «concedeu» vida logo desde o primeiro momento da concepção, e recusa-se à mulher o direito à sua própria vida, à mesma «legítima defesa» que antes se concedeu a um indivíduo ou a uma sociedade que foram «agredidos».
Uma vez mais, e como ao longo da História tem sido persistente tradição da Igreja Católica, a mulher é tratada como um «objecto» de segunda categoria, e nem sequer a sua vida humana constitui já um «valor absoluto» assim tão fundamental que, quando em confronto, justifique a destruição de um embrião, passe este ou não de um conjunto de meia dúzia de células sem sistema nervoso, estejamos ou não perante uma malformação do feto, seja este ou não resultado de uma violação da mulher.
Mas esta ignóbil hipocrisia da Igreja Católica não fica por aqui:
Enquanto fala no valor absoluto da vida humana a propósito de um embrião, a mesma Igreja Católica Apostólica Romana defende no seu Catecismo… a pena de morte!
Como diz o «Catecismo da Igreja Católica» (§ 2267):
«A legítima autoridade pública tem o direito e o dever de infligir penas proporcionais à gravidade do delito».
«O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de comprovadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto».
É de facto muito curiosa uma religião que admite a pena de morte!
É de facto muito curioso que haja alguém que ora defende os valores éticos e absolutos da vida humana quando fala de um embrião, para logo a seguir esquecer essa mesma «ética fundamental» quando fala de uma pessoa adulta e admite que os seus semelhantes lhe tirem a vida, esse tal «valor absoluto», como castigo por uma acção por si praticada.
Que haja quem defenda o «sim» e o «não» à despenalização do aborto, isso entendo perfeitamente.
Por isso é que haverá um referendo onde todos devem ter o direito de votar em liberdade e de acordo com a sua consciência.
Mas já não compreendo a profunda hipocrisia e a inqualificável desonestidade intelectual de quem, por se intitular católico e por isso se achar dotado de uma superioridade «ética fundamental», ora se manifesta contra a despenalização do aborto em nome do «valor absoluto» da vida de um embrião, ora, orgulhando-se de pertencer a essa tenebrosa associação que é a Igreja Católica Apostólica Romana, é também e ao mesmo tempo favorável à pena de morte!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

30 de Outubro, 2006 jvasco

Universo de Plástico

Desta vez vou pôr a ciência de parte. Isto não é um argumento contra o criacionismo. É apenas uma opinião: o universo criacionista é foleiro. É feio. É piroso, bárbaro, e de mau gosto. Ainda bem que o criacionismo é falso, senão seria como viver numa caneca das Caldas. Ora vejam.

A gazela e a chita são animais nascidos para a velocidade. A gazela tem que ser rápida para não ser comida pela chita, e a chita para não morrer à fome. Compreendendo a evolução destas espécies podemos imaginar o longo conflito que moldou as duas linhagens. Algo terrível mas ao mesmo tempo belo e fascinante por ser um processo natural, sem plano, sem intenção nem maldade. Mas a chita e a gazela como criações de um ser inteligente são uma barbaridade. O seu conflito é um castigo, uma tortura com requintes de malvadez. A sua velocidade é uma ferramenta concebida para infligir o máximo sofrimento. Um acidente infeliz de um processo natural e inconsciente torna-se num mal evitável e intencional.

E a lesma. Como produto de evolução é um exemplo interessante de um processo que explora todas as possibilidades acessíveis, das mais simples às mais complexas. Mas como concepção inteligente é apenas testemunho de incompetência infantil e falta de imaginação. «Já sei! Vai ser assim tipo macaco do nariz, mas deste tamanho, e a deitar ranho! He he he.»

Outro exemplo, que me ficou na memória desde criança, é o dos peixes pulmunados africanos. Para sobreviver à seca enterram-se na lama, fechados num casulo, e podem ficar assim até dois anos à espera da chuva. Quando chove, passam umas poucas semanas a alimentar-se e a reproduzir-se freneticamente, e depois lá voltam para o buraco para mais um ano ou dois de seca (literalmente). Nem têm tempo para gozar devidamente os intervalos. Como produto de um processo natural demonstram a capacidade de adaptação das espécies. Mas é preocupante que o ser supremo tenha criado existências tão fúteis e sem sentido.

Os desastres naturais, as doenças, as 350 mil espécies de escaravelho, os parasitas intestinais e o cóccix são outros exemplos do muito que não faz sentido como criação inteligente. Ás vezes (raramente) até me dá pena dos criacionistas. Vivem num universo de plástico, kitsch, cheio de aberrações e disparates incompreensíveis. Não admira que precisem de um amigo imaginário…

——————————–[Ludwig Krippahl]

29 de Outubro, 2006 Carlos Esperança

O clero e o perigo da confissão

Deus anda arredio da moral dos padres e só com muita devoção se pode acreditar que a Igreja católica é a sua Igreja. Deus fica indiferente às crianças abusadas e aos discursos compungidos do Papa.

Se alguém acredita no valor dos sacramentos aí estão as patifarias, que os recalcamentos sexuais exacerbam, a desmenti-los. De nada valem a água benta, o incenso e as orações. Os padres, vítimas do celibato que o Vaticano lhes impõe e do cio que os acicata para as maiores torpezas, não chamam a atenção para a bondade do seu Deus, atraem a atenção para as infâmias de si próprios.

Na Irlanda, um cristianíssimo país onde Santíssima Trindade infecta o preâmbulo da Constituição, os padres católicos colocam mal a ICAR. Podiam tomar como amantes os colegas, ter um bispo por conta ou um cónego privativo mas são as crianças as vítimas dos seus incontroláveis desvarios.

O pior de tudo são as confissões, um mundo de silêncios e cumplicidades, onde o clero se esquece do breviário e acende o fogo que o devora e conduz para as relaxações que envergonham a Igreja e aguardam o julgamento dos tribunais.

Era melhor que se casassem.

29 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: autonomia da mulher II

A referida prosa do actual Papa debitada enquanto Inquisidor-mor, é ainda uma elegia às teses agostinianas sobre os males do sexo, isto é, afirma que a «dimensão antropológica da sexualidade é inseparável da teológica» – o abominado sexo é uma consequência da «queda» – e como tal a humanidade deve «evitar as relações marcadas pela concupiscência», na realidade uma «tríplice concupiscência», a «concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida», pechas para o mal advindas «do pecado [original]».

Para a Igreja de Roma, o ideal de mulher deve ser uma mulher completamente anulada como pessoa, devotada à sua «capacidade para o outro», sendo completamente inaceitável por ateísta «um certo discurso feminista» que «reivindica exigências ‘para ela mesma’». A mulher, que se realiza apenas no casamento ou na Igreja, deve no primeiro caso subjugar-se totalmente ao marido e aos filhos, já que não tem valor intrínseco fora de ambos, na realidade tem menos valor que um qualquer óvulo fertilizado – nem em casos «de vida ou de morte, para a mãe» é admissível uma interrupção da gravidez!

De facto, são consideradas «modelos de perfeição cristã» a beata Isabella Canori Mora, que preferiu morrer às mãos de um marido abusivo a «violar a santidade do matrimónio», e a «santa Mãe de Família» Gianna Beretta Molla, que preferiu morrer a abortar.

Assim, a condenação histriónica do aborto (e da contracepção) pela Igreja de Roma e seus sequazes não tem nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente» de algo que confessam não saber bem o que seja. Vida que «na sua condição terrena», como já tive oportunidade de abordar, «não é um valor absoluto» para a Igreja! Excepto, claro, na forma unicelular – células estaminais e óvulos fertilizados- e embriónica!

A oposição católica ao aborto, embora baseada nas raízes do cristianismo, que justificam igualmente a oposição à contracepção – misoginia e ódio ao sexo, que desvia os crentes das «virtudes» cristãs – insere-se simplesmente na luta da Igreja pelo poder sobre a sociedade. Poder manifesto cá no burgo, por exemplo, no tempo de antena da Igreja e organizações subsidiárias em todas as estações de rádio e televisão, em que, insidiosamente, se tenta impor ao país os ditames do Vaticano em todos os aspectos da sociedade, da Economia aos comportamentos individuais!

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29 de Outubro, 2006 Palmira Silva

O referendo ao aborto: autonomia da mulher

A guerra contra a modernidade da Igreja Católica, isto é, a guerra pela manutenção do integrismo católico, iniciou-se no plano político, essencialmente combatendo os ideais «hereges» do iluminismo – que ameaçavam a supremacia da Igreja sobre todos os aspectos da vida -, nomeadamente combatendo a soberania do indivíduo, dos seus direitos e da sua liberdade, denunciados como atentados à lei «natural», isto é, à submissão do homem ao Vaticano, representante na Terra de Deus.

Assim o discurso da igreja no século XIX é marcado pela «intransigência católica» em relação às modernices políticas e ao reconhecimento dos direitos humanos, denunciados como «loucura e erro».

No terreno puramente político, a Igreja perdeu a batalha, pelo menos na Europa. E assim no século XX assesta as baterias na sexualidade, «guerra à sexualidade» que no século XXI começa a ser suplantada pela «guerra à ciência». A obsessão da Igreja sobre a questão do sexo é tanto maior quanto ela perdeu, radicalmente, a batalha no campo das autonomias políticas.

Não é assim de estranhar que, em total discordância com a própria doutrina da Igreja, seja apenas em finais do século XIX, depois de Pio No No perder o poder político sobre Itália, que o aborto é declarado um pecado imperdoável. De igual forma, os meios contraceptivos «não naturais», usados desde sempre na História da Humanidade, são declarados «pecaminosos» e proibidos aos católicos somente no século XX.

A «guerra ao sexo» estende-se à igualdade dos sexos e aos direitos da mulher: no momento em que a autonomia da mulher for uma realidade, está ameaçado o reduto do poder da Igreja na sociedade. O combate aos direitos da mulher é disfarçado como sendo uma «ordem» da natureza: a Igreja não tem nada, ulula, contra as mulheres! É a própria ordem «natural» inscrita na biologia feminina que afirma a heteronomia, isto é, estipula os limites da autonomia e dos direitos da mulher.

Assim, tudo o que esbata os limites do «natural» em relação à mulher e reafirme a sua condição de ser humano de plenos direitos é combatido violentamente pela Igreja! Como se viu, por exemplo, na IV Conferência Mundial sobre a Mulher, em que os delegados do Vaticano e os seus poucos aliados – os fundamentalistas islâmicos, Malta e alguns países latinoamericanos em que a Igreja detém de facto poder político – tentaram impedir que se alcançasse o consenso necessário à aprovação da Plataforma de Acção, nomeadamente no que diz respeito à universalidade dos direitos humanos, mais especificamente ao reconhecimento dos direitos humanos da mulher.

O ênfase no «natural»* e divinamente predestinado é encontrado ainda na carta aos bispos católicos de todo mundo, «sobre a colaboração do homem e da mulher no mundo e na Igreja» em que a auto-intitulada «Perita em humanidade», expertise conferida pela inenerrante «antropologia bíblica» – leia-se pecado original – denuncia como profundamente errada a «antropologia, que entendia favorecer perspectivas igualitárias para a mulher, libertando-a de todo o determinismo biológico». Ou seja, a emancipação e independência da mulher são uma aberração ateísta que não reconhece a ordem «natural» do mundo divinamente ordenada!

*Estranhamente apenas em relação aos direitos da mulher, antagónicos da ordem divina, o «natural» é invocado! Por exemplo, no caso Terry Schiavo, a interrupção da sustentação artificial da sua vida foi considerado um «atentado contra a vida», um «homicídio» levado a cabo por «carrascos» implacáveis! Ou seja, conforme convém, quer interferir quer não interferir na ordem natural das coisas é considerado um pecado imperdoável, vendido à sociedade como um assassínio!

(continua)
28 de Outubro, 2006 Palmira Silva

The meaning of life

Quando me preparava para continuar a série de posts sobre o aborto e o estatuto do embrião e como, tirando os que ainda não se libertaram de dois milénios de condicionamento social, são os fundamentalistas católicos os estridentes e ululantes «defensores intransigentes da vida», decidi consultar a Enciclopédia Católica para ver afinal o que são supostos defender estes paladinos de óvulos e espermatozóides, seguidores convictos de Agostinho de Hipona que verberava ser a abstinência – excepto para fins estritamente reprodutivos – a única forma de alcançar a graça divina.

Devo confessar que fiquei completamente baralhada! Pensar-se-ia que sendo a defesa da vida o estandarte actual da Igreja de Roma, que ulula contra um imaginado relativismo que resulta numa suposta «cultura de morte», ou seja, numa sexualidade saudável e sem culpas, vida seria algo muito bem definido pela Igreja de Roma.

Na realidade, a Igreja de Roma arvora-se em paladino intransigente de algo que… confessa, em 6 454 palavras (leram bem, seis mil quatrocentas e cinquenta e quatro) de uma dissertação absolutamente hilariante, não fazer a mínima ideia do que seja!

Mais concretamente, o parágrafo inicial diz tudo:

O enigma da vida [a definição do que é a vida] permanece um dos dois ou três problemas que enfrentam quer o cientista quer o filósofo e, não obstante o progresso no conhecimento que se verificou nos últimos 2 300 anos, não avançámos apreciavelmente em relação à posição de Aristóteles no que respeita às questões principais. Quais são as suas [da vida] manifestações características? Quais são as suas formas principais? Qual é a natureza intrínseca da actividade vital?

Ou seja, a Igreja de Roma admite não saber o que é a vida e não ter respostas para a natureza intrínseca da vida que não sejam as propostas por Aristóteles. E assim podemos ler uma dissertação prolixa que basicamente se reduz, depois de muita palha totalmente desconexa, a afirmar que os seres vivos são formados por um corpo biológico organizado e por um princípio vital (que nos humanos é a tal anima que só a ICAR pode salvar).

Só há vida após a animação, a junção do dito princípio vital e do corpo biológico. Animação que a doutrina católica diz ocorrer na espécie humana quando a alma criada por Deus é infundida nos elementos materiais biológicos. Apenas após animação estes elementos físicos ficam aptos a exercerem as funções da vida humana, descrita como outra santíssima trindade, uma triunidade entre as vidas vegetativa, sensciente e intelectual. Isto é, de acordo com esta definição a vida vegetativa, que não tem consciência de si nem do meio ambiente, não é suficiente para descrever a vida humana!

Ou seja, a posição da Igreja Católica em relação ao aborto e à investigação em células estaminais é total e completamente discordante da sua doutrina expressa na Enciclopédia Católica! Afinal, contrariamente ao que ululam os dignitários católicos, a vida humana não se reduz a um genoma humano!

De acordo com a dita Enciclopédia o que caracteriza a vida humana é o tal princípio vital! E sob o título «Unidade do ser vivo» somos informados que «sendo o princípio vital a forma substancial [da vida] só pode existir um destes princípios animando o ser vivo».

Facilmente chegamos à conclusão que o tal princípio vital ou alma não está presente no zigoto, que teria de apresentar dois princípios vitais para explicar a existência de gémeos homozigóticos!

Então se o tal princípio vital não está presente no zigoto em que fase do desenvolvimento se dará a tal animação que define a existência de vida humana? Segundo a Enciclopédia consultamos a grande autoridade sobre a vida, Aristóteles, que defendia a animação tardia, apenas ao fim de 40 dias para os embriões masculinos e 80 dias para os femininos. Uma vez que até pelo menos às 8 semanas, altura em que as gónadas (indiferenciadas) do embrião XY começam a produzir testosterona, todos os embriões são femininos, parece pacífico que não há animação dos embriões dos quais vamos referendar a despenalização do seu abortamento!

Fiquei ainda com uma dúvida: será que a declaração em 1869 por Pio IX, o autor do Syllabus, do «dogma» actual da animação imediata, que a alma incorpora aquando da concepção – despoletando legislação que criminalizava o aborto (inexistente até à data), vigente ainda hoje em países em vias de desenvolvimento ou nos redutos mais fundamentalistas do catolicismo – foi uma premonição da infalibilidade papal decretada um ano depois no concílio Vaticano I ou não passou de mais um amuo papal, uma vingançazinha do santo Pio em relação à modernidade, que ousadia infame, se estava nas tintas para os ditames do Vaticano e lhe «usurpou» o poder temporal sobre meia Itália?

Porque a dita proclamação é contrária à doutrina da Igreja, tal como expressa na Enciclopédia Católica! Fico sempre mistificada com as inúmeras contradições católicas! Devem ser os tais mistérios insondáveis da fé… Mas não deixa de ser divertido confirmar que as ululantes Tétés e afins são defensoras intransigentes não se sabe bem de quê… tirando as teses de Agostinho de Hipona!

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