Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa
Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.
Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.
Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.
Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!
A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.
Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…
Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:
1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.
A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…
Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.
Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.
O imperador Hirohito, em 1945, coagido pelo general Mc Arthur, teve de dizer aos japoneses que não era Deus, o que levou ao suicídio de muitos que ficaram desolados.
Também Bento XVI, a reboque dos acontecimentos, acabou a negar a infalibilidade papal em que os mais devotos acreditavam.
O Papa Rätzinger, mentor ideológico do seu antecessor, é ainda mais conservador, com um pensamento mais estruturado e uma agenda mais apressada.
Frio, inteligente e calculista não podia ignorar o imenso alarido que provocariam as suas palavras, descontadas as proporções, impossíveis de quantificar previamente.
Bento XVI é a réplica católica do protestantismo evangélico neoconservador dos EUA e, salvas as devidas proporções, o expoente máximo da postura homóloga dos próceres do Islão. Não foi por acaso que chamou Constantinopla à actual cidade de Istambul.
Condena o relativismo, não se conformando com o pluralismo. Combate a laicidade e interfere de forma vigorosa nos países de tradição católica para obstar às leis que regulam o aborto, o divórcio, a eutanásia, a contracepção ou o planeamento familiar.
O Papa não é apenas o ideólogo do teoconservadorismo, é agente do combate obstinado à modernidade e arauto do regresso ao concílio de Trento. Críticas acerbas ao budismo e ao hinduísmo, a cruzada contra o laicismo e o combate ao evolucionismo, que considera uma ideologia, fazem de B16 o mais obsoleto hierarca do cristianismo. Da teologia à política, da moral à economia e da ciência à religião, Bento XVI situa-se sempre no campo conservador mais duro, aliando um proselitismo exacerbado e uma inflexibilidade teológica.
A expansão do islamismo na sua forma mais arcaica, com laivos de demência fascista, assusta este Papa que vê os feudos tradicionais em rápida secularização numa Europa que deixou de acreditar em verdades únicas e que mais facilmente se envolve na luta de classes do que em querelas da fé.
Foi a inquietação que, na minha opinião, o precipitou para o confronto. Do outro lado disseram-lhe que o Islão era pacífico, assassinando uma freira, perseguindo cristãos e incendiando igrejas. A intolerância não é monopólio de uma religião, é a tradição ancestral das três irmãs abraâmicas.
O seu grande objectivo foi colocar-se na vanguarda do combate ao terrorismo, urgente e necessário, para reivindicar para o Vaticano os louros de uma vitória sabendo que, em caso de derrota, a democracia e a liberdade morreriam e o cristianismo não sobreviveria.
O conflito entre o Papa e o Islão não nasceu das divergências, surgiu das afinidades.
Publicado também no Ponte Europa.
O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa – que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» – não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.
De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.
O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».
E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano – e muitos católicos – interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.
Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.
Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.
Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica – sempre com muita oposição pela Igreja – e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.
Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional – e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» – que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!
Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!
Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.
Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».
Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.
Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..
O Papa Rätzinger, que teve o apoio do Espírito Santo no conclave que o fez papa, o entusiasmo do Opus Dei que temia a despromoção da prelatura e as orações dos beatos para quem um papa qualquer é sempre santo, não teve quem lhe revisse o discurso, o avisasse das consequências e o prevenisse dos seus próprios demónios.
Todos os que não estão toldados pela hóstia ou em estado cataléptico com incenso e orações, sabem que os livros sagrados são manuais de ódio ao serviço das rivalidades étnicas e velhas convulsões tribais, guardados e aproveitados pela clericanalha para uma vida de fausto e ociosidade.
Não há fanatismo maior nem violência mais truculenta do que a que brota dos livros sagrados e dos santos doutores que os interpretam e promovem como bons.
A Irmã Lúcia, tão chegada a JP2, abandonou B16. Surpreende que quem previu o fim da guerra e o tiro na batina do papa polaco, não tenha reparado, nas suas premonições, no tiro no pé do pastor alemão.
Santo Escrivá a quem a ICAR esqueceu o mau feitio, o apoio a Franco e a irascibilidade a troco dos fartos cabedais que o taumaturgo canalizou em vida para o Vaticano, não fez o milagre de desligar o microfone da universidade onde o Papa bolçou o ódio de um imperador cristão à mourama como os mullahs soem fazer com o rancor do pastor de camelos.
Em vez da laicidade que nos salve do belicismo religioso, é o proselitismo que renasce numa espiral de ódio de um tira-teimas sobre qual é o Deus melhor.
Sob o cadáver de um mito, milhões de seres humanos estão em risco de se transformarem precocemente em cadáveres.
O Diário de uns ateus é o blogue de uma comunidade de ateus e ateias portugueses fundadores da Associação Ateísta Portuguesa. O primeiro domínio foi o ateismo.net, que deu origem ao Diário Ateísta, um dos primeiros blogues portugueses. Hoje, este é um espaço de divulgação de opinião e comentário pessoal daqueles que aqui colaboram. Todos os textos publicados neste espaço são da exclusiva responsabilidade dos autores e não representam necessariamente as posições da Associação Ateísta Portuguesa.