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Mês: Setembro 2006

20 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A Ciência não é um "ismo"!

«Muitos argumentos criacionistas traçam um paralelo entre a teoria da evolução e o criacionismo. Chamam-lhe evolucionismo, e dizem que é apenas uma crença, uma questão de fé. É um argumento curioso, pois se posições tão contrárias derivam ambas da fé, então é óbvio que a fé não serve para resolver questões como a origem das espécies. Não é novidade, mas é estranho que os criacionistas queiram salientar a incapacidade da fé em resolver questões científicas.

Felizmente, a ciência não é um “­ismo”, como o criacionismo ou o cristianismo. Os “ismos” caracterizam-se pela crença num conjunto de hipóteses, e por isso facilmente se associam à fé. O criacionismo exige que se aceite como verdade que um deus criou os seres vivos, cada um de acordo com o seu tipo, e assim por diante. A ciência não exige que os seus praticantes se agarrem a uma hipótese em particular, o que é evidente na história das ideias científicas.

Há poucos séculos atrás, a teoria da criação era o modelo consensual da biologia. Um deus tinha criado os animais, tinha havido um dilúvio, e Noé tinha deixado os animais no monte Ararat. Mas algumas observações começaram a pôr em causa este modelo. Como teriam chegado as toupeiras marsupiais à Austrália? E aquelas espécies todas diferentes que viviam cada uma na sua ilha no meio do Pacífico? Muitas perguntas como estas levaram a rever a hipótese da criação, e começaram a surgir modelos de evolução. Erasmus Darwin, o avô do famoso Charles, propôs uma teoria de geração segundo a qual as espécies eram geradas pelo poder criador da matéria orgânica e não directamente por um deus. Mais tarde, Lamarck propôs que as espécies evoluíam herdando características adquiridas. Por exemplo, a girafa que mais vezes esticava o pescoço ficava com um pescoço mais comprido e os seus descendentes nasciam já com o pescoço mais comprido.

Quando Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”, já a biologia aceitava que as espécies evoluíam, e já se tinha rejeitado o modelo antigo das espécies sempre com a mesma forma. O que Darwin criou (e Wallace, independentemente) não foi a ideia de evolução mas sim do mecanismo pelo qual as espécies evoluem: a girafa não fica com o pescoço mais comprido, mas a girafa com o pescoço mais comprido tem mais filhos.

Mas Darwin tinha um problema. A sua teoria exigia que houvesse numa população de girafas com pescoço mais curto e outras com pescoço mais comprido. Ou seja, era necessário haver uma diversidade genética na população para que a selecção natural pudesse operar. Darwin propôs que erros na hereditariedade poderiam gerar esta diversidade, mas nessa altura pensava-se que as características dos pais se misturavam como fluidos contínuos para gerar os filhos, e esse processo de mistura rapidamente eliminaria a diversidade na população.

Esse problema foi resolvido com a redescoberta do trabalho de Mendel. Afinal as características dos pais não se misturam como fluidos, mas sim em pedaços discretos, os genes. Outros problemas também se foram resolvendo. Por exemplo, a geologia na época de Darwin afirmava ser necessário milhões de anos para explicar as formações geológicas, enquanto a física dizia ser impossível o Sol arder tanto tempo. Mas os físicos dessa altura desconheciam a radioactividade, e assumiam que o Sol ardia por processos químicos. Com a descoberta da radioactividade por Becquerel em 1896 o problema resolveu-se.

Este processo continuou por todo o século XX. Diferentes hipóteses, problemas que surgiam, problemas que se resolviam e levantavam novas hipóteses. A teoria da evolução hoje em dia é muito diferente da que Darwin propôs, e o processo não terminou.

E aqui reside a grande diferença entre a ciência e os “ismos”. O criacionismo é a crença num conjunto de respostas, enquanto que a ciência é um processo movido pelas perguntas. O criacionismo é fechado; quem deixar de crer que foi deus que criou os organismos deixa de ser criacionista. A ciência é aberta; eram tão biólogos os que favoreciam o modelo da criação no século XVII como os que favorecem a evolução no século XXI. O criacionismo é uma poça estagnada de crenças. A ciência é uma fonte de novas ideias.»

20 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade – um esclarecimento

Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam. Mario Vargas Llosa

Antes de continuar a análise da relação antagónica de Ratzinger com a modernidade e com os valores civilizacionais correspondentes a essa modernidade – a democracia, a tolerância, a prevalência da ciência e da razão em relação à fé, os direitos humanos,especialmente os direitos das mulheres e a liberdade de opinião e expressão, etc. – gostaria de relembrar aos nossos leitores que esgrimem como argumento da superioridade do cristianismo em relação ao islamismo o facto de existir liberdade de religião e não existir perseguição religiosa nos países de maioria cristã, que estão a cair numa falácia causal ou post hoc ergo propter hoc.

Isto é, não é por serem países de maioria cristã que tal acontece, mas simplesmente porque são países democráticos assentes num conceito de estado moderno, onde, depois de muitas lutas, algumas sangrentas, com a Igreja Católica, se conseguiu a separação religião estado que não existe na esmagadora maioria dos países de maioria islâmica.

Se olharmos criticamente para a História, a violência na defesa e imposição da fé que se associa actualmente ao Islão mimifica na perfeição o que acontecia no Ocidente quando esta separação não existia. A «ordem de divulgar a fé usando a espada» não é exclusivo do Islão, foi indissociável do cristianismo até muito na tarde na história e não foi abandonada por vontade da Igreja, foi imposta pelas transformações sociais decorrentes do Iluminismo, por sua vez herdeiro da Renascença e do humanismo renascentista. Iluminismo que enfatizava a razão e a ciência como formas de explicar o universo, o alvo principal de críticas por Ratzinger na palestra da qual apenas os três parágrafos referentes ao Islão têm merecido análises mas que importa não esquecer, já que é esta crítica que nos permite apreciar a total dissociação de Ratzinger da modernidade e o seu manifesto desejo de retorno ao integrismo católico, isto é, à cristandade.

Apenas a laicidade inerente ao nosso modelo democrático impede que o fanatismo/fundamentalismo cristão se exprima da mesma forma que o equivalente islâmico. Basta pensar nas pretensões dos fanáticos cristãos americanos, da imposição de um direito baseado na «lei» bíblica, que prevê penas de morte para adultério, «sodomia», apostasia, heresia, aborto e demais «pecados», para confirmarmos que não existe qualquer diferença entre ambos os fundamentalismos, as suas manifestações apenas são diferentes porque se inserem em países com modelos políticos diferentes e a laicidade reprime as demências e as orgias violentas de fé a que temos assistido por parte dos fundamentalistas islâmicos!

A razão pela qual o Islão se mostra resistente à modernidade, isto é, à tendência geral de secularização, só pode ser entendida à luz do pós-colonialismo e da emergência do nacionalismo árabe, uma reacção à aculturação colonianista recuperando uma utopia – mais um «entre» bhabhiano (de Homi Bhabha), isto é, uma tentativa de recuperação de uma cultura desaparecida há séculos e como tal construída no imaginário – baseada no Islão político. Uma leitura de Khaled Ahmed ou mesmo Bassam Tibi ajuda a perceber porquê.

Por outro lado, em relação ao argumento tão gasto que já maça, que confunde laicidade com estalinismo ou maoismo, gostaria apenas de relembrar que o totalitarismo político não tem nada a ver com laicidade, na realidade é uma cópia fiel do totalitarismo religioso, caracterizada por um culto de personalidade do ditador – quasi considerado um «deus», basta pensar no culto a Lenin, Stalin, Mao e actualmente a Fidel ou Kim Jong II – e as ideologias políticas são dogmas inquestionáveis, verdades absolutas apenas questionadas por «hereges» merecedores de «fogueiras» sortidas. O totalitarismo político não dispensa sequer cerimónias «religiosas» como comícios políticos e demais rituais de comunhão em que os «fiéis» papagueiam palavras de ordem em tudo análogas a orações…

Assim, como já escrevi, todos os totalitarismos, religiosos ou políticos, assentam em três pilares:

1) A detenção de uma verdade «absoluta», à qual todos devem se submeter, mesmo os descrentes nesta suposta verdade;
2) A certeza num destino glorioso para os justos/eleitos;
3) Um grande inimigo que é necessário diabolizar, sendo a suposta perseguição por este inimigo o nexus da angariação e fidelização de seguidores.

A palestra de Ratzinger é uma ilustração do ponto 3, em que o «inimigo» é identificado com todos os que não aceitam a «supremacia» da razão. Razão que para Ratzinger, que distribui generosamente epitetos de irracionalidade a todas as mundivisões que não a sua, reside apenas no catolicismo. Apenas o catolicismo é racional e como tal a ele todos se devem submeter é tão só a mensagem que Ratzinger quis transmitir nesta palestra…

Assim, como para todos os totalitarismos, o homem livre e racional é o principal inimigo para Ratzinger, que declarou guerra à modernidade, isto é, à «ditadura do relativismo» decorrente do que apelida de «secularismo ideológico» e «profanidade total», a separação entre a igreja e o estado. Ratzinger que se lamuria estarem os fundamentalistas católicos sob o «jugo» de uma «ditadura» que o impede, cruzado empenhado contra as liberdades «imorais» e representante mor desses fundamentalistas, de impor a sua pseudo-moralidade a todos.

Assim, este papado tem sido apenas uma sequência de ululações que denigrem e rejeitam a liberdade, a democracia, a tolerância e o pluralismo, a tal «ditadura» do relativismo, pretendendo que só a obediência cega a um mito, Deus – para o ditador do Vaticano a sujeição total aos seus ditames imbecis – é a verdadeira liberdade.

19 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Bento XVI e o Imperador Hirohito

O imperador Hirohito, em 1945, coagido pelo general Mc Arthur, teve de dizer aos japoneses que não era Deus, o que levou ao suicídio de muitos que ficaram desolados.

Também Bento XVI, a reboque dos acontecimentos, acabou a negar a infalibilidade papal em que os mais devotos acreditavam.

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Teoria da Informação

«Esta é a quarta parte da série dedicada ao criacionismo, cujos argumentos foram tão bem resumidos pelo artigo de Jónatas Machado (JM) no jornal «O Público» do passado dia 8. Neste episódio veremos o problema da informação:

«Os criacionistas mostram que as mutações acumuladas, além de não criarem informação genética nova, destroem o genoma.»

Em primeiro lugar, temos o problema do sentido em que se usa a palavra «informação». JM ilustrou bem este problema num comentário neste blog:

«Assim como a informação contida nos livros não se confunde com as páginas […] também a informação contida no DNA não se confunde com os ácidos nucleicos […] A mesma pressupõe uma linguagem que dê sentido às sequências (de nucleótidos e demais informação não linear) e lhes faça corresponder operações celulares específicas.»

Isto está errado. Não há uma linguagem que faz corresponder ao Oxigénio e ao Hidrogénio a operação de se juntar para formar água. O que se passa é que as moléculas destes gases reagem espontaneamente em certas condições. Este é exactamente o caso com o DNA, o RNA, as proteínas, e tudo o que acontece dentro das células. São reacções mais complexas, que se encadeiam em grandes redes de processos químicos, mas que se regem pelos mesmos princípios que regem a combustão, a formação de gotas de óleo na água, a dissolução do açúcar na limonada, ou qualquer outro processo deste tipo.

É certo que se fala muitas vezes do código do DNA, do DNA como a linguagem da vida, e outras metáforas. Mas é como os glóbulos vermelhos a falar uns com os outros nos desenhos animados «Era Uma Vez a Vida». É uma forma engraçada de explicar conceitos básicos, mas claramente inadequada a uma análise mais rigorosa. Vamos então pôr de parte esta metáfora infeliz. Estamos a falar de moléculas, e não de textos escritos ou de glóbulos vermelhos que falam.

Pela definição de Ralph Hartley, a quantidade de informação numa sequência é tanto maior quanto mais símbolos diferentes possa ter e quanto mais longa for a sequência. Por isso o DNA tem mais informação quanto mais nucleótidos tiver, ou seja, quanto mais longo for. É bem conhecido que mutações podem alongar o DNA, quando um acidente na cópia faz com que um trecho seja repetido. Assim podemos ver que a informação, neste sentido, aumenta facilmente com as mutações.

É claro que podemos dizer que duplicar trechos não aumenta informação, pois são apenas cópias do que já lá estava. O que nos traz às medidas de informação de Shannon e Kolmogorov. Simplificando, a informação contida numa sequência é tanto maior quanto mais «desordenada» for a sequência. Isto é abusar da teoria, mas não quero tornar a discussão demasiado técnica, por isso vou apelar à intuição do leitor para explicar por exemplos. Imagine uma sequência de 30 As:

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA

Isto podia ser escrito de uma maneira mais simples. Por exemplo:

30xA

Ou seja, a sequência de 30 símbolos na verdade tem apenas a informação duma sequência de 4 símbolos. Em geral, quanto mais estruturada e organizada a sequência, mais fácil é de a comprimir em sequências menores, e por isso menos informação ela tem. Uma sequência sem ordem nem estrutura nenhuma, como por exemplo:

AjdljAkSyEFekdHRpJxjwlJqalYaEEoTpCYlsUWlkalkf

não pode ser facilmente abreviada. A consequência disto é que as mutações aleatórias na verdade aumentam a quantidade de informação no DNA, aumento este que serve para alimentar o processo de selecção natural, pelo qual muitas sequências são eliminadas por não beneficiarem os organismos.

Outro problema no argumento que JM apresenta é, mais uma vez, confundir indivíduos com populações. Como JM elaborou num comentário:

«Na verdade, a criação de novas espécies é o resultado de perdas de informação […]. Dentro da categoria Caninus Familiaris [sic] existem 400 subespécies de caninos, embora todos eles com menos informação genética do que os seus ascendentes.[…]. Pensemos, por exemplo, num cão Chihuahua totalmente «careca». […] Embora se esteja aqui perante um caso de adaptação, a verdade é que se está perante perda de informação genética.»

O exemplo que JM escolheu é particularmente infeliz. No Chihuahua há dois tipos de pelagem: pêlo curto e pêlo comprido. O que era no lobo ancestral apenas um fenótipo, tornou-se pela evolução em dois fenótipos diferentes. Todo este exemplo dos cães demonstra um ganho nítido de informação. Inicialmente havia uma espécie, um ancestral recente do lobo cinzento. Hoje em dia há ainda o lobo cinzento (Canis lupus), e a sub-espécie do cão doméstico (Canis lupus familiaris). Como JM diz, e muito bem, as 400 raças diferentes são sub-espécies, e pertencem todas à mesma espécie. Ora o que JM parece dizer é que só se perdeu informação quando uma espécie como o lobo cinzento evoluiu para o lobo cinzento mais todas as 400 raças de cães domésticos. Parece-me que o que JM fez foi, inadvertidamente, dar um excelente exemplo de como a evolução pode aumentar a quantidade de informação presente numa população de organismos. O erro aqui foi (mais uma vez) o de confundir o processo de transformação de populações, que é a evolução, com aquilo que se passa isoladamente com indivíduos (e.g. o coitado do Chihuahua careca).

Outro ponto importante é que a mutação não é um processo dirigido, mas pode ser revertido por outra mutação. Se A sofre mutação e fica B, B pode sofrer mutação e ficar A novamente. Se uma mutação acrescenta um trecho ao DNA, outra pode apagá-lo. Qualquer que seja a definição que usemos, se uma mutação diminui a informação, a mutação contrária aumenta-a. Por isso é obviamente falsa a afirmação que a mutação apenas diminui a informação.

Em suma, quando virem este argumento criacionista da informação, lembrem-se de três coisas:

1- Nem os glóbulos vermelhos falam, nem o DNA é uma linguagem. Pode ficar giro nos desenhos animados ou alguns livros menos rigorosos, mas não é verdade.

2- A evolução é um processo de populações. Se numa população alguns indivíduos perdem o pêlo, o que interessa é que agora na população passou a haver dois tipos de pelagem em vez de apenas um. Ou seja, mais informação.

3- As mutações são reversíveis. Se muda para um lado também pode mudar para o outro, e por isso é absurdo dizer-se que só podem reduzir a informação.»

19 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

O Papa e o Islão

O Papa Rätzinger, mentor ideológico do seu antecessor, é ainda mais conservador, com um pensamento mais estruturado e uma agenda mais apressada.

Frio, inteligente e calculista não podia ignorar o imenso alarido que provocariam as suas palavras, descontadas as proporções, impossíveis de quantificar previamente.

Bento XVI é a réplica católica do protestantismo evangélico neoconservador dos EUA e, salvas as devidas proporções, o expoente máximo da postura homóloga dos próceres do Islão. Não foi por acaso que chamou Constantinopla à actual cidade de Istambul.

Condena o relativismo, não se conformando com o pluralismo. Combate a laicidade e interfere de forma vigorosa nos países de tradição católica para obstar às leis que regulam o aborto, o divórcio, a eutanásia, a contracepção ou o planeamento familiar.

O Papa não é apenas o ideólogo do teoconservadorismo, é agente do combate obstinado à modernidade e arauto do regresso ao concílio de Trento. Críticas acerbas ao budismo e ao hinduísmo, a cruzada contra o laicismo e o combate ao evolucionismo, que considera uma ideologia, fazem de B16 o mais obsoleto hierarca do cristianismo. Da teologia à política, da moral à economia e da ciência à religião, Bento XVI situa-se sempre no campo conservador mais duro, aliando um proselitismo exacerbado e uma inflexibilidade teológica.

A expansão do islamismo na sua forma mais arcaica, com laivos de demência fascista, assusta este Papa que vê os feudos tradicionais em rápida secularização numa Europa que deixou de acreditar em verdades únicas e que mais facilmente se envolve na luta de classes do que em querelas da fé.

Foi a inquietação que, na minha opinião, o precipitou para o confronto. Do outro lado disseram-lhe que o Islão era pacífico, assassinando uma freira, perseguindo cristãos e incendiando igrejas. A intolerância não é monopólio de uma religião, é a tradição ancestral das três irmãs abraâmicas.

O seu grande objectivo foi colocar-se na vanguarda do combate ao terrorismo, urgente e necessário, para reivindicar para o Vaticano os louros de uma vitória sabendo que, em caso de derrota, a democracia e a liberdade morreriam e o cristianismo não sobreviveria.

O conflito entre o Papa e o Islão não nasceu das divergências, surgiu das afinidades.

Publicado também no Ponte Europa.

19 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

A asneira de Ratzinger (telegraficamente)

  1. Por princípio, defendo a liberdade de expressão até para os que não me reconhecem esse direito, como é o caso de Joseph Ratzinger.
  2. Não sei se a já famosa passagem bizantina sobre o Islão foi inserida como uma provocação calculada, ou se foi uma amostra da insensibilidade papal. Inclino-me para a segunda hipótese.
  3. As reacções violentas das organizações islamistas legais (Irmandade Muçulmana, Jamaat-e-islami) indiciaram aquilo mesmo que pretendiam desmentir: que o Islão não inculca a contenção e a tolerância pelos erros e pelas provocações.
  4. Nada disto aconteceria com Karol Wojtyla, que era um diplomata prudente e um entusiasta do diálogo inter-religioso.
  5. A violência actual poderia ter sido evitada se B16 tivesse mencionado a violência pretérita da sua igreja.
  6. Provocação ou erro, Ratzinger recuou. Não haverá ninguém, entre os que o imaginam líder de cruzada, que lhe chame «islamófilo» ou «Chamberlain»?
19 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a modernidade II

O mundo islâmico continua inflamado com as palavras do Papa – que Silvio Berlusconi classificou como «uma provocação positiva» – não só com as proferidas na palestra em Regensburg como com o suposto pedido de desculpas.

De facto, muitos consideram-no ainda mais ofensivo que a citação que o motivou, já que Ratzinger não pediu desculpas pelo que disse nem lamentou tê-lo dito, apenas declarou lamentar as reacções dos muçulmanos que não perceberam o seu discurso, isto é, subentende condescendentemente que os muçulmanos são demasiado burros para perceberem uma alocução erudita.

O Papa conseguiu ainda insultar os judeus, não só com a homilia em Castel Gandalfo em que citou Paulo de Tarso sobre a crucificação do mítico Cristo, mas igualmente com o que o rabi-chefe sefardita Shlomo Amar considera uma tentativa de transformar conflitos entre nações ou entre nações e terroristas numa «guerra de religiões».

E enquanto os protestos contra o Papa continuam no mundo islâmico, muitos analistas do Vaticano – e muitos católicos – interrogam-se, tal como eu, se este homem tão inteligente e tão experiente em questões de fé pode ter cometido um erro tão crasso sem ter previsto as consequências. Para além disso, como notam alguns analistas, não há qualquer inconsistência entre as palavras do Papa na referida palestra e a sua visão negativa do Islão, expressa em palavras, por exemplo nos seus livros já referidos, e em acções, como a sua oposição à entrada da Turquia na União Europeia.

Aliás, ontem Bento XVI voltou a defender a importância das raízes cristãs da Europa, ressaltando que «a história e a cultura da Europa têm o selo do Cristianismo», dizendo ser fundamental no alargamento da UE perceber as questões da identidade e dos fundamentos espirituais em que se apoiam os Estados e os povos europeus. «Sem uma verdadeira comunhão de valores, não poderá ser realizada nenhuma segura comunhão de direito». Voltando a enfatizar a necessidade do ensino da religião católica no ensino oficial europeu, necessidade que os dirigentes políticos têm de reconhecer para a inculcação dos valores europeus (só faltou acrescentar face à ameaça islâmica) que para Ratzinger são os valores(?) cristãos.

Isto é, desta vez indirectamente Ratzinger não só voltou a mostrar a sua objecção à entrada da Turquia, país laico (por enquanto) de maioria islâmica, como demonstrou claramente o seu desejo de unir a Europa sob o estandarte do Vaticano (ou pelo menos do cristianismo), isto é, firmar a ideia na concorrência islâmica que a Europa é cristã e que quem não partilha esta religião não é bem-vindo.

Por outro lado, Ratzinger demonstrou mais uma vez que não comunga de facto dos valores europeus, que segundo Ratzinger são assentes no cristianismo. Na realidade, os valores em que assenta a nossa sociedade democrática, tolerante e pluralista foram construídos contra a Igreja católica – sempre com muita oposição pela Igreja – e são de factos valores que Ratzinger nunca aceitou e contra os quais está em cruzada.

Este Papa, que quer redefinir razão de forma a ser apenas coincidente com catolicismo, isto é que se arroga a ser apenas ele o detentor do pensamento racional – e apenas ele porque, como indicam fontes próximas do Vaticano, este Papa absolutista que escreve os seus próximos discursos, não admite críticas e despede ou exila quem não partilha a sua «racionalidade» – que confunde os nossos valores civilizacionais com relativismo, que os continua histrionicamente a condenar como loucura e erro não é o defensor da civilização ocidental contra o «perigo muçulmano» como muitos agora apregoam!

Nós não vivemos um choque de civilizações no sentido de Huntington, vivemos um choque de civilizações em que de um lado estão os fundamentalistas de todas as religiões, unidos numa causa comum contra a modernidade e suas «imoralidades». O choque de civilizações é o choque da civilização moderna com a civilização medieval que o obscurantismo das religiões do livro quer impor. Como bem o demonstram os seus protestos uníssonos contra essa modernidade, seja o reconhecimento da mulher como um ser humano de plenos direitos seja o reconhecimento dos direitos dos homossexuais!

Existem islâmicos que lutam nos seus países pela laicidade e reconhecimento dos direitos humanos, se opõem à sharia e restantes barbaridades. Isto é, existem muitos muçulmanos que lutam pelo mesmo que nós lutamos! Mas as vozes desses muçulmanos racionais serão abafadas se embarcarmos no objectivo deste Papa: unir toda a Europa sob o cristianismo numa espécie de nova Cruzada contra o Islão.

Os prenúncios desta Cruzada surgiram no rescaldo da guerra dos cartoons em que o Vaticano advertiu que se o Islão exige respeito pela sua religião então tem de respeitar as restantes. E, especialmente avisou que «Nós devemos frisar sempre a nossa exigência de reciprocidade» segundo declarações do ministro dos Negócios Estrangeiros do Vaticano, o arcebispo Giovanni Lajolo, ao Corriere della Sera, em uníssono com Bento XVI que numa conversa com o embaixador de Marrocos frisou que a paz só pode ser assegurada pelo «respeito pelas convicções religiosas e práticas dos outros, de forma recíproca em todas as sociedades».

Isto é, Bento XVI pretendia que se o mundo islâmico não desse liberdade religiosa aos cristãos então o mundo cristão em retaliação não deveria igualmente dar liberdade religiosa aos muçulmanos.

Como é óbvio, as pretensões de Ratzinger são incompatíveis com os valores da nossa sociedade e como tal devotadas ao insucesso se este exigisse semelhante disparate aos governos europeus! E o próprio Ratzinger deveria saber perfeitamente que essas pretensões seriam acolhidas da mesma forma que as suas constantes exortações contra os avanços civilizacionais ocidentais: o reconhecimento à saúde reprodutiva das mulheres, da liberdade de expressão, da laicidade, dos direitos dos homossexuais, da independência da ciência dos ditames absurdos do Vaticano, etc..

(continua)
18 de Setembro, 2006 jvasco

Manás

Palavras para quê?
A crença acrítica torna isto possível.

18 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Bento XVI – terrorista tímido

O Papa Rätzinger, que teve o apoio do Espírito Santo no conclave que o fez papa, o entusiasmo do Opus Dei que temia a despromoção da prelatura e as orações dos beatos para quem um papa qualquer é sempre santo, não teve quem lhe revisse o discurso, o avisasse das consequências e o prevenisse dos seus próprios demónios.

Todos os que não estão toldados pela hóstia ou em estado cataléptico com incenso e orações, sabem que os livros sagrados são manuais de ódio ao serviço das rivalidades étnicas e velhas convulsões tribais, guardados e aproveitados pela clericanalha para uma vida de fausto e ociosidade.

Não há fanatismo maior nem violência mais truculenta do que a que brota dos livros sagrados e dos santos doutores que os interpretam e promovem como bons.

A Irmã Lúcia, tão chegada a JP2, abandonou B16. Surpreende que quem previu o fim da guerra e o tiro na batina do papa polaco, não tenha reparado, nas suas premonições, no tiro no pé do pastor alemão.

Santo Escrivá a quem a ICAR esqueceu o mau feitio, o apoio a Franco e a irascibilidade a troco dos fartos cabedais que o taumaturgo canalizou em vida para o Vaticano, não fez o milagre de desligar o microfone da universidade onde o Papa bolçou o ódio de um imperador cristão à mourama como os mullahs soem fazer com o rancor do pastor de camelos.

Em vez da laicidade que nos salve do belicismo religioso, é o proselitismo que renasce numa espiral de ódio de um tira-teimas sobre qual é o Deus melhor.

Sob o cadáver de um mito, milhões de seres humanos estão em risco de se transformarem precocemente em cadáveres.

18 de Setembro, 2006 Ricardo Alves

Jónatas Machado e a Paleontologia

«A terceira parte desta homenagem ao criacionismo, exemplificado pelas críticas de Jónatas Machado (JM) publicadas no passado dia 8 no jornal «O Público». Desta vez, sobre o registo fóssil:

«[…] a grande quantidade de “fósseis vivos” e a existência de biliões de fósseis nos cinco continentes testemunham a ocorrência de um dilúvio global, descrito na Bíblia e em muitas narrativas da antiguidade. Se milhões de espécies animais tivessem evoluído ao longo de milhões de anos, deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios e não apenas a mão-cheia de exemplos altamente controversos (v.g. Archaeopteryx) com que nos deparamos.»

Aqui vemos condensados dois grandes favoritos do criacionismo: um dilúvio como a origem do registo fóssil, e a ausência de fósseis de formas intermédias. Mais uma vez, argumentos que dependem duma análise superficial dos problemas, e duma ignorância profunda dos detalhes.

O primeiro argumento é essencialmente que um grande dilúvio matou os animais e plantas, enterrando-os a níveis diferentes conforme o sítio onde viviam, a capacidade que tinham para fugir da água, o seu tamanho e forma, e assim por diante. Assim as baleias e os golfinhos ficaram em camadas superiores, os dinossáurios não conseguiram escapar tão bem e ficaram mais abaixo, e os desgraçados dos trilobites ficaram enterrados lá no fundo.

Mas agora os detalhes. Os trilobites são abundantes no registo fóssil em estratos inferiores. Os peixes teleósteos são muito comuns em estratos superiores (cerca de metade das espécies de vertebrados hoje em dia são peixes teleósteos). Mas nunca se misturam. Não há uma única sardinha fossilizada ao pé de um trilobite. Os criacionistas dirão que os peixes fugiram e os trilobites acabaram por ficar enterrados na lama ou o que seja, mas todos todos todos? Incrível, especialmente quando consideramos que fósseis de corais são frequentes tanto nos estratos contém trilobites como nos que contém peixes teleósteos. Ou que os fósseis das toupeiras estão mais acima que a maioria dos fósseis de peixes. É estranho que num dilúvio as toupeiras tenham sido entre as últimas a afogar-se e a ficar enterradas.

Pior ainda é que os fósseis não são apenas aqueles esqueletos enormes que vemos nos museus. São dentes, escamas, pólen, folhas, patas de insecto, pedaços de casca de ovo, e até fezes (coprólitos). O que JM propõe é que um dilúvio separou todos os fragmentos, fezes, e até pegadas de todos os animais e plantas de acordo com a sua espécie, sem uma única excepção.

JM também afirma que «deveríamos encontrar biliões de fósseis intermédios», mas não explica o que quer dizer com «intermédios». A evolução opera sobre populações, mas os fósseis são vestígios de indivíduos. Com indivíduos, um será intermédio entre outros dois se for descendente directo de um, e antepassado do outro, como o meu pai é intermédio entre mim e o meu avô.

Se escolhermos ao acaso três membros de uma família, com tios, primos, avós, tios-avós, e assim por diante, muito raramente vamos ter um avô, o pai, e o filho. O mais provável é encontrar primos, sobrinhos, e relações mais afastadas, pois essas são muito mais numerosas que relações de descendência directa. Se em vez de uma família tivermos milhões de indivíduos de inúmeras espécies, e em vez de meia dúzia de gerações considerarmos dezenas de milhões de anos, a probabilidade de encontrar ao acaso verdadeiros intermédios é praticamente nula.

Por outro lado, talvez JM queira dizer que são intermédios num sentido mais lato, de estarem em gerações intermédias e relativamente próximos de um descendente directo que tenha vivido nessa altura, mas sem ser necessariamente esse descendente directo em particular. Mas se é isso que quer dizer, então temos muitos casos de fósseis intermédios.

Mas o grande truque deste argumento é que o criacionista pode sempre aplicá-lo. Se tivermos dois fósseis, um mais antigo e outro mais recente na evolução de uma espécie, o criacionista pode dizer que falta um fóssil intermédio. Se encontrarmos um terceiro fóssil com características intermédias, o criacionista agora diz que faltam dois, pois agora há duas «lacunas» onde antes havia apenas uma. Esta característica pode tornar o argumento persuasivo num debate, mas torna-o completamente inútil na procura de explicações.

Em suma, o que JM propõe em substituição da paleontologia, tal como as suas propostas para revolucionar a biologia molecular e a genética, fica aquém duma explicação para o grande número de detalhes importantes que conhecemos, e que são explicados pela ciência moderna.»