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Mês: Setembro 2006

23 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Ratzinger e Bento XV

Papa Paulo III, que convocou o Concílio de Trento em 1545. Retrato de Tiziano Vecelli, Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles.

A escolha do nome de «guerra» por parte de um novo papa tem normalmente associado um significado programático e o facto de Ratzinger não ter assumido o esperado João Paulo III, indicativo de que continuaria as pisadas do seu antecessor, mas Bento XVI surpreendeu muitos no meio católico. Os apologetas de serviço tentaram ver nesta escolha de nome um bom auspício já que Giacomo della Chiesa, que tomou posse como Bento XV um mês antes do início da I Guerra Mundial, é normalmente descrito como o «Papa da paz» devido aos seus esforços para a terminar.

De facto, Giacomo della Chiesa, nascido de uma família nobre genovesa, era um experiente diplomata que insistiu na neutralidade do Vaticano durante toda a Guerra e a partir de 1917 encorajou o presidente americano Woodrow Wilson a iniciar as negociações de paz. Mas convém recordar que dos dois lados das trincheiras estavam envolvidos países com consideráveis populações católicas: a Alemanha e o império Austro-húngaro de um lado; a França de outro. A neutralidade da Igreja que inventou a doutrina do bellum justum ( guerra justa) e a insistência na paz enquadravam-se assim em manobras diplomáticas destinadas a evitar a divisão da Igreja.

Uma vez que a diplomacia não é exactamente apreciada por Ratzinger, que escolheu Tarcisio Bertone, um teólogo que foi o seu braço direito na ex-Inquisição, para substituir o diplomata Angelo Sodano no lugar de secretário de estado do Vaticano – posição ocupada normalmente, com muito raras excepções, por diplomatas de carreira – conjugado com toda a actuação de Ratzinger desde a sua eleição sugere que a sua escolha de nome pretendia emular não os dotes diplomáticos do seu homónimo mas sim a sua firme oposição à modernidade, isto é à racionalidade e à democracia.

Oposição que pode ser apreciada na primeira encíclica que debitou uns escassos dois meses depois de tomar posse, Ad Beatissimi Apostolorum em que, depois de condenar nos primeiros parágrafos a I Guerra Mundial, Bento XV critica veementemente todos os que preferem o conhecimento e a razão à fé:

«Cegos e levados por uma ideia soberba do intelecto humano, pelo qual o bom dom concedido por Deus fez certamente muitos progressos no estudo da natureza, confiantes no seu julgamento e desdenhosos da autoridade da Igreja, chegaram a tal grau de imprudência que não hesitam em avaliar com a própria mente até as coisas escondidas de Deus e tudo o que Deus revelou aos homens. Daqui surgiram os montruosos erros do ‘Modernismo’ que o nosso predecessor [Pio X, nomeadamente no Decreto Lamentabili Sane e na encíclica Pascendi Dominici Gregis, encíclica que traduz fielmente o pensamento de Ratzinger sobre o modernismo ] declarou justamente serem ‘a síntese de todas as heresias’ e os condenou solenemente. Nós vimos desta forma renovar esta condenação na sua totalidade. (…) É assim a nossa vontade que a lei dos nossos antepassados deve ser mantida sagrada: ‘Que não haja inovação.’».

A encíclica, que condena todas as formas de democracia já que «Desde que a fonte do poder humano foi procurada na livre vontade do homem e não em Deus, o Criador e o Rei do Universo, a obrigação do dever, que devia existir entre superior e inferior foram tão enfraquecidas que quase desapareceram» considera que a crise social e política subjacente à I Guerra Mundial assenta em duas causas: o mal principal, o afastamento da fé da Europa que ditou a separação Igreja Estado, isto é, impediu ser a Igreja a determinar como devem ser governados os Estados; e a «ausência de respeito pela autoridade dos que exercem o poder».

Crise social e política caracterizada por uma «tal mudança nas ideias e na moral dos homens que, a não ser que Deus venha rapidamente em nosso auxílio, o fim da civilização parece estar próximo».

Ratzinger tem essencialmente a mesma apreciação da actual crise que o seu homónimo, isto é, a origem dos males europeus reside no modernismo, nas suas heresias laicas e na primazia da razão e da ciência sobre a fé, e prescreve as mesmas receitas: é necessária uma Europa em que a cristandade medieval seja recuperada, cristandade caracterizada pelo domínio implacável da Igreja de Roma sobre a sociedade, em que os «Santos» Padres se arrogavam ao direito de decidir sobre todas as matérias, mesmo as científicas. Assim, encoraja uma prática católica tridentina, virada para o passado e obscurantista, exponenciando com as suas prelecções constantes os preconceitos anti-Iluminismo e anti-democráticos dos católicos mais fanáticos.

Prelecções de que a recente palestra em Regensburg, que continuarei a analisar, é apenas mais um exemplo…

22 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Ali Agca avisa o Papa

Ali Agca, um turco enigmático, autor de um papacídio frustrado na pessoa de JP2 e prisioneiro profissional, não será o profeta indicado para predizer o futuro do Papa Rätzinger e fazer concorrência à Irmã Lúcia.

Aliás, o que tiver de acontecer será da vontade do Deus de B16 que é omnipotente, omnisciente e infinitamente bom como provam as tropelias que acontecem e as desgraças de que está o mundo cheio.

No caso de JP2 até a Lúcia sabia que ia ser baleado, pois era muito chegada à Senhora de Fátima que lhe contava essas coisas por não haver na altura as revistas modernas que se pelam por signos, vidências e cenas de faca e alguidar.

Ficará em segredo o motivo que juntou, a sós, numa cela de uma cadeia italiana, duas personagens sombrias – Ali Agca e JP2 , e por conhecer a eficácia e o motivo da bênção que o último deu ao malvado profissional.

Só não se compreende a maldade de JP2 que, conhecendo o 3.º segredo de Fátima, o que anunciava os furos na sua batina preferida e os rombos no próprio canastro, deixou ficar preso, um ror de anos, quem Deus escolhera para instrumento da sua vontade.

B16 acusa o mundo de estar surdo a Deus, como se o silêncio fizesse vibrar a membrana do tímpano. É altura de perguntar ao único Deus verdadeiro – o seu -, o que tramam os doentes mentais do falso Deus concorrente.

Para salvar o camauro, se o determinismo não for necessário à existência de Deus.

22 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Bento XVI e a racionalidade

«O Iluminismo é a saída do ser humano do estado de não-emancipação em que ele próprio se colocou. Não-emancipação é a incapacidade de fazer uso de sua razão sem recorrer a outros. Tem-se culpa própria na não-emancipação quando ela não advém de falta da razão, mas da falta de decisão e coragem de usar a razão sem as instruções de outrem. Sapere aude! (ouse saber!)» Immanuel Kant.

A aula magna de Bento XVI na Universidade de Regensburg, para além de uma defesa do catolicismo tradicional, isto é, pré Vaticano II, em relação às outras religiões do livro, é essencialmente, como já apontei, um ataque à ciência «que tornou Deus supérfluo», causa última dos males profundos que dominam a Europa na opinião de Ratzinger, a «ditadura do relativismo» e concumitantes secularismo, laicidade, respeito pelos direitos humanos, tolerância e plurarismo.

O discurso do Papa, tal como tudo o que tem debitado desde que o «espírito santo» o escolheu, assenta na loucura e erro de uma Europa «surda a Deus», que não fundamenta na fé o conhecimento e a própria Europa.

Assim, a palestra desenrola-se em torno deste tema desde a congratulação inicial ao Magnífico Reitor pela existência na sua Universidade, com duas faculdades de teologia, daquilo a que chama universitas scientiarum, ou seja, a genuína universitas que destaca proeminentemente a teologia nos «saberes» a transmitir aos alunos, que aceita como dado adquirido que Deus, na versão cristianismo tradicional, é imprescindível na Universidade. Embora Ratzinger note que nem todos os docentes, nomeadamente os cépticos «radicais» que afirmam a inexistência de Deus, partilham a opinião dos teólogos de que a fé e a razão estão intimimamente correlacionadas e sem fé não pode ocorrer o exercício da razão. Isto é, sem fé cristã tradicional, porque no decorrer do discurso Ratzinger explana porque razão apenas esta fé é racional!

Depois destas reminiscências de Regensburg, uma «genuína» Universidade em que o debate racional integra a teologia (católica) como componente indispensável, em que a teologia é aceite como equivalente da filosofia no privilegiar da razão universal, surgem então os 3 parágrafos que tanta tinta fizeram correr nos últimos dias, em que Ratzinger, esquecendo dois milénios de história sangrenta do catolicismo, usa o dito diálogo de Manuel II Paleólogo como ponto de partida para analisar a necessária centralidade da razão na fé e a relação entre a fé e a razão nas «três ‘Leis’ ou ‘Regras da Vida’: o Antigo Testamento, o Novo Testamento e o Corão. Embora não explicitamente, Ratzinger sugere que o Islão, a religião judaica e o protestantismo, não «helenizados», enfermam de uma irracionalidade constitucional enquanto o catolicismo é a única religião racional.

Este papa, grande admirador de Agostinho de Hipona mais que de Tomás de Aquino como o seu predecessor, ambos citados no texto, correlaciona a racionalidade da fé com a «helenização» desta mesma fé, que permitiu «uma nova compreensão de Deus acompanhada de uma espécie de iluminismo», helenização que segundo Ratzinger não aconteceu por acaso já que Deus «desviou» Paulo de Tarso da Ásia e encaminhou-o para a Grécia ( Actos dos Apóstolos 16:6-10) no que Ratzinger chama «uma destilação da necessidade intrínseca de reconciliação da fé bíblica com a racionalidade grega». Assim, desde o início do cristianismo e por desígnio divino, que a razão e a fé cristã são indissociáveis pelo que a de-helenização corresponde a não usar a razão, e como tal é contrária à natureza de Deus.

Uso da razão que parece exclusivo dos europeus, pelo menos no excerto em que Ratzinger afirma que «Dada esta convergência [entre cristianismo e helenismo, equivalente para Ratzinger ao uso da razão], não é de estranhar que o cristianismo, apesar das suas origens no Leste, assumiu o seu carácter histórico e decisivo na Europa».

Ratzinger contrasta esta compreensão cristã helenista de Deus, coincidente com uma harmonia entre razão e fé através da revelação de um Deus racional, com a «irracionalidade do islamismo» exemplificada com o (irrelevante) teólogo muçulmano Ibn Hazm que defendia a absoluta transcendência de Deus e
rejeitava a necessidade de qualquer racionalização das leis islâmicas já que eram o código que Deus tinha legislado e a sua implementação, sem qualquer imiscuição da razão, indispensável na prática religiosa.

Compreensão helenista que Ratzinger afirma fazer parte essencial da fé cristã e
«permanece a fundação do que podemos chamar apropriadamente Europa». Criticando a de-helenização do cristianismo e da Europa- as causas dos tais «males profundos» que a assolam e a deixam impotente face à ameaça islâmica – que segundo ele ocorreu em três fases, interligadas mas claramente distintas nas motivações e objectivos.

Assim, Ratzinger critica a separação da fé e da razão que ocorreu com a Reforma, a primeira de-helenização que rejeita a razão (isto é, a interpretação bíblica de Roma) e assenta a fé no princípio da sola scriptura, postulado base da reforma protestante. Ou seja, afirma claramente que o protestantismo é irracional!

A segunda fase de de-helenização corresponde ao pensamento teológico liberal dos séculos XIX e XX, de onde surgiram as heresias modernista e progressista, censuradas na encíclica de Pio X, Pascendi Dominici Gregis, que têm para Ratzinger o seu representante máximo em Adolf von Harnack. Heresia que na prática reduz a fé católica a meras directivas éticas e morais, sem necessidade de culto nem de teologia.

Ou seja, mais uma vez critica os católicos que não seguem à letra os ditames do Vaticano, «enganados» por teólogos como Harnack ou Roger Haight que «numa subordinação [inadmíssivel] dos conteúdos da fé à sua plausibilidade e inteligibilidade» tentam reconciliar a fé com a modernidade. Para Ratzinger, como tem sido abundantemente expresso no seu papado e concretizado sem margens para dúvidas nesta palestra, é a modernidade que tem de se sujeitar à fé!

Harnack, que reconhecia a complicação irracional colocada pelos dogmas em que assenta o cristianismo, a divindade de um Cristo com duas essências integrante de uma trindade com três pessoas e uma essência, advogava que Jesus era apenas o pai de uma mensagem moral humanitária e tinha terminado com a necessidade de cultos.

Pior, Harnack afirmava ser necessário harmonizar o catolicismo com a modernidade libertando-o de elementos especulativos (isto é, teológicos), ou seja, advogava ser necessário basear o catolicismo em «uma exegese histórica crítica do Novo Testamento» a única forma de a Teologia ter assento numa Universidade já que «teologia, para Harnack, é algo essencialmente histórico e assim estritamente científico» o que «acabaria na redução do cristianismo a um mero fragmento do que foi no passado».

Ora, Ratzinger não quer que o cristianismo seja este mero fragmento, quer retomar para o cristianismo o papel que este assumiu no seu passado «glorioso» e «racional» – nomeadamente na Idade Média em que este papel era assegurado «racionalmente» pela Inquisição – pelo que a ciência e o pensamento científico, crítica dos quais ele assume ser o cerne da dita palestra, têm de reconhecer ser a teologia a mais nobre das disciplinas à qual as restantes se devem submeter. Ou seja, os cientistas devem aceitar o Sapientia Dei, Scientia Mundi agostiniano, isto é, que há um conhecimento superior, a sapiência, a contemplação das «verdades eternas» divinas, e um inferior, a ciência, que consiste na interpretação dos dados sensíveis.

(continua)
21 de Setembro, 2006 jvasco

Dar a outra face

A mensagem da Bíblia é, no seu global, extremamente bélica e intolerante.
Tanto no Antigo Testamento, como no Novo Testamento.

Jesus é esclarecedor: «não vos venho trazer a Paz, mas a Espada».

Apesar de dezenas e dezenas de citações que comprovam estas minhas alegações (e apesar das maiores igrejas cristãs terem todo um historial que as ilustra em actos, guerras e agressões e respectivas fundamentações teológicas), todos os cristãos que conheço acham tais alegações disparatadas.

Tentam refutá-las com base em interpretações distorcidas que traiem a mensagem bíblica. Caso a caso, citação a citação, é fácil desconstruir tais patéticas interpretações que tentam negar o óbvio: o carácter bélico da mensagem bíblica.

Outra linha de argumentação, e esta já merece mais crédito, é a exposição de outras passagens que evocam a mensagem oposta. Apelam à Paz e à piedade. Em actos concretos.
É óbvio que tais passagens são dezenas de vezes menos frequentes que as restantes (e não exagero: é mesmo outra ordem de grandeza!). Mas as mensagens não se medem «ao litro»: se bem que tal disparidade na frequência dos apelos para a guerra e para a paz não possa ser ignorada, a verdade é que cada um dos apelos à paz merece ser estudado com cuidado, para que se poder concluir algo a respeito do teor mais ou menos bélico da Bíblia.

Uma das mais importantes afirmações que Jesus faz a este respeito é a seguinte: «Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda» (Mt. 5, 39).

Importa debruçarmo-nos sobre esta passagem. Ela é muito importante, uma das que mais influencia a percepção (distorcida) que as pessoas têm daquilo que é a mensagem de Jesus. Quando eu era mais novo (e cristão) achava estas palavras ousadas, revolucionárias, e seu conteúdo profundo. Muita gente acha isso…

…E não se apercebe que são um enorme e patético disparate.

Se mais pessoas seguissem este conselho, o mundo seria pior. Os agressores teriam mais incentivos (e menos riscos) para agredirem. Os agredidos eram mais humilhados e injustiçados. Os povos conheceriam melhor o domínio, o saque e a pilhagem, e os corruptos, os invasores, os saqueadores teriam ainda menos quem lhes fizesse frente.

Se a Inglaterra, a Rússia, e os Estados Unidos tivessem dado ouvidos a Jesus, não saberemos quantas suásticas teriam sido edificadas, após o domínio nazi que teria sido incontestado. É um exemplo insignificante, pequeno, no imenso oceano de exemplos em todas as escalas, em tantos episódios no dia-a-dia. Se muitos seguissem tal conselho, as guerras e agressões não iriam diminuir, aumentariam alimentadas por tão delicioso incentivo.

Não há razões para preocupação, é claro. A verdade é que as palavras de Jesus são tão disparatadas, que não existe sequer o risco de serem levadas a sério, mesmo por aqueles que as acham tão belas. Mesmo esses facilmente se apercebem que não as podem pôr em prática, pois o bom senso sobrepõem-se, e existe uma noção intuitiva de que a justiça não poderia prevalecer dessa forma (e isso dificilmente seria louvável) e de que as consequências de tal atitude seriam o abuso incondicional por parte dos piores entre os piores. Muitos podem continuar a gostar de tal passagem, desligando-a completamente daquilo que seria afectar a sua vida por tais palavras. E bendita incoerência essa!

Não me interpretem mal: não venho aqui defender que nunca se deve perdoar, ou outras teses bélicas do género propaladas na Bíblia (lembram-se do «olho por olho»?). Há casos em que se deve retaliar, e outros em que se deve perdoar – qualquer incondicional será disparatado. Os estudiosos da ética e da teoria dos jogos têm chegado a resultados muito interessantes a este respeito. O jogo do prisioneiro, tão simples, tem dado bases sólidas para que o conhecimento avance neste domínio e se chegue cada vez mais longe.

Há casos em que a agressão deve ser perdoada, e outros em que se deve retaliar. Mas no que respeita à informação, o ideal é que o agressor espere sempre a retaliação, para que diminua o seu incentivo para agredir. O erro presente neste disparate de Jesus não está, portanto, apenas ao nível do incondicional como ao nível da informação. Ou seja: não é apenas errado perdoar sempre, e em qualquer situação, como também é indesejável que os agressores esperem que tal aconteça.

Assim sendo, depois de tantos incentivos que a Bíblia dá para a guerra e para agressão, nesta passagem apelando à Paz, só não se incentiva mais a guerra porque, por ser tão disparatada, está fora de questão que seja posta em prática.

21 de Setembro, 2006 Carlos Esperança

Islão e democracia

Em sociedades em que a religião é obrigatória o condicionamento da opinião pública começa na infância pela manipulação das crianças e pela fanatização que conduz ao martírio e ao crime.

O Islão de hoje não é diferente do catolicismo medieval mas este, graças à descoberta da cultura helénica e do direito romano, encontrou forças para usar a razão e contestar a fé, para fazer a Reforma e retirar ao Papa o poder temporal.

O direito divino, como origem do poder, foi substituído pela legitimidade democrática e a secularização tornou as sociedades abertas, tolerantes e plurais. A fé foi remetida para esfera privada e as convulsões surgem quando os crentes pretendem fazer proselitismo através do aparelho de Estado.

Hoje, é o protestantismo evangélico que lidera o fundamentalismo cristão nos EUA, em clara violação da Constituição e da vontade dos seus fundadores. A Igreja Ortodoxa tem dificuldade em aceitar a separação do Estado e tem uma exegese de pendor francamente reaccionário.

Mas é no Islão que os constrangimentos sociais e a violência clerical empurra os crentes para a irracionalidade da fé e a aceitação acrítica do Corão. Como há muito desistiram de questionar o que o clero diz que o Profeta disse e quer, há um permanente conflito com a modernidade e uma violência incompatível com a civilização.

A laicidade que libertou o Ocidente da tutela clerical é impensável onde o clero islâmico tem o poder absoluto no campo económico, político, militar, assistencial e ideológico.

Tal como durante a inquisição era impossível contestar a autoridade do Papa e o seu poder, também nas teocracias islâmicas é impossível discutir a desigualdade da mulher, o adultério, a poligamia, o repúdio, a guerra santa e o pluralismo.

As religiões são, por natureza, totalitárias e avessas à modernidade. Ao atribuírem aos livros sagrados a vontade literal de Deus ditada a um eleito como versão definitiva, acaba com a discussão e com a vida do réprobo enquanto a separação entre a Igreja e o estado se não afirmar.

É esse passo que parece estar cada vez mais longe nas teocracias islâmicas e que propicia o confronto entre a fé e a modernidade.

Contrariamente ao que têm afirmado os bispos católicos os árabes não temem a liberdade religiosa que, segundo sondagens, é o que mais apreciam no Ocidente. São os clérigos que se assustam com a possibilidade de verem os seus crentes a renunciar à fé.

A liberdade, a democracia e, sobretudo, a perda de direitos sobre a mulher, assusta-os. É por isso que não renunciam à sharia, que não dispensam uma boa decapitação a quem renuncie à fé, uma alegre lapidação à mulher adúltera e uma divertida amputação para quem roube.

O que está em curso é uma luta desesperada contra a modernidade por uma civilização falhada.

Publicado também no Ponte Europa.

21 de Setembro, 2006 Palmira Silva

Selam, mais um fóssil do Australopithecus afarensis

A última edição da revista Nature descreve a descoberta da equipa liderada por Zeresenay Alemseged, um paleoantropólogo do Max Planck Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig. A equipa encontrou o fóssil mais completo de um exemplar do Australopithecus afarensis, a que chamaram Selam ou DIK-1-1, o fóssil com 3,3 milhões de anos de um bébé de 3 anos encontrado em Dikika na Etiópia, uns quilómetros apenas do sítio arqueológico em que foi descoberto em1974 o fóssil de Lucy, o primeiro exemplar encontrado desta espécie.

Lucy é o membro mais antigo da linha de bípedes que levou, cerca de quatro milhões de anos mais tarde, aos humanos modernos. E, como veremos, os homínideos «Lucy» apresentavam uma série de características morfológicas intermédias entre os outros primatas e os humanos.

Aproveito o ensejo para corrigir um equívoco muito disseminado, que os «humanos são descendentes dos macacos», equívoco muito aproveitado pelos criacionistas embora seja totalmente errado. Os homínideos não são descendentes dos macacos; aproximadamente há 5 milhões de anos atrás, a árvore filogenética humana e a dos chimpanzés dividiu-se em ramos distintos a partir de um ancestral comum. Os macacos modernos, são deste modo apenas os nossos parentes evolutivos próximos, não são nossos ancestrais. Assim esse axioma utilizado e abusado pelos criacionistas é tão absurdo, como todos os seus argumentos, como dizer que alguém é descendente de um primo.

Voltando ao Selam, nomeado a partir da palavra etíope para paz, embora muitos mais exemplares do A. afarensis tenham sido descobertos, este exemplar de um bébé afarensis, cuja idade foi estimada em 3 anos, é o mais completo descoberto, e inclui a escápula ou omoplata, osso nunca encontrado antes. A escápula do A. afarensis apresenta características intermédias entre a escápula dos homens e macacos modernos que permitem concluir que este nosso antepassado remoto estava a perder as suas capacidades de locomoção nas árvores.

E de facto, uma análise do esqueleto de Lucy tinha permitido chegar à conclusão que Lucy exibia bipedalismo. Os membros inferiores do Australopithecus afarensis não eram simiescos e são quasi indistinguíveis dos membros inferiores humanos. Nos humanos, por exemplo, os ossos do calcanhar têm uma almofada alargada composta de osso esponjoso que absorve o impacto gerado pelo bipedalismo. O calcanhar do esqueleto de Lucy exibe esse osso esponjoso enquanto os macacos, que se movem apoiando-se nas articulações interfalângicas (dedos), não apresentam essa almofada óssea. O fémur de Lucy, embora proporcionalmente mais longo que nos humanos modernos, exibia uma série de características claramente humanas. Nos humanos, o colo do fémur apresenta um centro esponjoso que absorve o impacto de caminhar e uma camada mais espessa de osso compacto no topo da articulação para suportar o esforço. Nos macacos, este arranjo é totalmente diferente; o colo do fémur é quase completamente sólido, apresentando apenas um pequeno núcleo central de osso esponjoso.

O fémur dos macacos apresenta uma quilha larga ao longo da parte superior do colo onde se une com o receptáculo da anca. O fémur do Australopithecus afarensis é idêntico neste arranjo ao fémur humano. É na cintura pélvica, no entanto, que as características humanóides e o bipedalismo do Australopithecus afarensis são mais claramente evidentes. Na realidade, a cintura pélvica do Australopithecus afarensis, com o seu sacro proporcionalmente mais largo que o dos humanos modernos, era mais adequada ao bipedalismo que a nossa. Nos humanos um sacro tão largo estreitaria o canal de parto e tornaria impossível o parto, o que não acontecia no Afarensis que apresentava uma dimensão craniana muito inferior.

Este trilho de pegadas de hominídeos, descoberto em 1978 por Mary Leakey numa camada de cinzas vulcânicas com mais de três e meio milhões de anos, num sítio próximo de Laetoli na Tanzânia, mostra claramente mostram que a espécie que deixou estas marcas caminhava de forma bípede eficientemente, como um humano. Não há evidência de um polegar divergente como apresentado pelos macacos, e foi encontrado um arco plantar muito similar ao humano. Um modelo do pé do A. afarensis reconstruído a partir dos ossos fósseis recuperados, encaixa-se perfeitamente nas pegadas de Laetoli.

O osso hióide (o Hyoideum ou osso da língua) do Selam, por outro lado, apresenta mais semelhanças com o análogo nos chimpazés modernos o que implica uma capacidade de vocalização muito próxima da dos macacos e que um longo caminho evolucional foi percorrido para o desenvolvimento das nossas capacidades discursivas.

Não há ainda reacções dos criacionistas a esta descoberta que comprova claramente o carácter transicional do Afarensis, provavelmente vão continuar a negar todas as características humanóides do Afarensis e pretender que este é apenas mais um macaco e que as pegadas de Laetoli foram feitas não pelo A. Afarensis mas por um homem igualzinho aos homens modernos, criado à imagem de Deus!