23 de Setembro, 2006 Palmira Silva
Ratzinger e Bento XV
Papa Paulo III, que convocou o Concílio de Trento em 1545. Retrato de Tiziano Vecelli, Museo Nazionale di Capodimonte, Nápoles.
A escolha do nome de «guerra» por parte de um novo papa tem normalmente associado um significado programático e o facto de Ratzinger não ter assumido o esperado João Paulo III, indicativo de que continuaria as pisadas do seu antecessor, mas Bento XVI surpreendeu muitos no meio católico. Os apologetas de serviço tentaram ver nesta escolha de nome um bom auspício já que Giacomo della Chiesa, que tomou posse como Bento XV um mês antes do início da I Guerra Mundial, é normalmente descrito como o «Papa da paz» devido aos seus esforços para a terminar.
De facto, Giacomo della Chiesa, nascido de uma família nobre genovesa, era um experiente diplomata que insistiu na neutralidade do Vaticano durante toda a Guerra e a partir de 1917 encorajou o presidente americano Woodrow Wilson a iniciar as negociações de paz. Mas convém recordar que dos dois lados das trincheiras estavam envolvidos países com consideráveis populações católicas: a Alemanha e o império Austro-húngaro de um lado; a França de outro. A neutralidade da Igreja que inventou a doutrina do bellum justum ( guerra justa) e a insistência na paz enquadravam-se assim em manobras diplomáticas destinadas a evitar a divisão da Igreja.
Uma vez que a diplomacia não é exactamente apreciada por Ratzinger, que escolheu Tarcisio Bertone, um teólogo que foi o seu braço direito na ex-Inquisição, para substituir o diplomata Angelo Sodano no lugar de secretário de estado do Vaticano – posição ocupada normalmente, com muito raras excepções, por diplomatas de carreira – conjugado com toda a actuação de Ratzinger desde a sua eleição sugere que a sua escolha de nome pretendia emular não os dotes diplomáticos do seu homónimo mas sim a sua firme oposição à modernidade, isto é à racionalidade e à democracia.
Oposição que pode ser apreciada na primeira encíclica que debitou uns escassos dois meses depois de tomar posse, Ad Beatissimi Apostolorum em que, depois de condenar nos primeiros parágrafos a I Guerra Mundial, Bento XV critica veementemente todos os que preferem o conhecimento e a razão à fé:
«Cegos e levados por uma ideia soberba do intelecto humano, pelo qual o bom dom concedido por Deus fez certamente muitos progressos no estudo da natureza, confiantes no seu julgamento e desdenhosos da autoridade da Igreja, chegaram a tal grau de imprudência que não hesitam em avaliar com a própria mente até as coisas escondidas de Deus e tudo o que Deus revelou aos homens. Daqui surgiram os montruosos erros do ‘Modernismo’ que o nosso predecessor [Pio X, nomeadamente no Decreto Lamentabili Sane e na encíclica Pascendi Dominici Gregis, encíclica que traduz fielmente o pensamento de Ratzinger sobre o modernismo ] declarou justamente serem ‘a síntese de todas as heresias’ e os condenou solenemente. Nós vimos desta forma renovar esta condenação na sua totalidade. (…) É assim a nossa vontade que a lei dos nossos antepassados deve ser mantida sagrada: ‘Que não haja inovação.’».
A encíclica, que condena todas as formas de democracia já que «Desde que a fonte do poder humano foi procurada na livre vontade do homem e não em Deus, o Criador e o Rei do Universo, a obrigação do dever, que devia existir entre superior e inferior foram tão enfraquecidas que quase desapareceram» considera que a crise social e política subjacente à I Guerra Mundial assenta em duas causas: o mal principal, o afastamento da fé da Europa que ditou a separação Igreja Estado, isto é, impediu ser a Igreja a determinar como devem ser governados os Estados; e a «ausência de respeito pela autoridade dos que exercem o poder».
Crise social e política caracterizada por uma «tal mudança nas ideias e na moral dos homens que, a não ser que Deus venha rapidamente em nosso auxílio, o fim da civilização parece estar próximo».
Ratzinger tem essencialmente a mesma apreciação da actual crise que o seu homónimo, isto é, a origem dos males europeus reside no modernismo, nas suas heresias laicas e na primazia da razão e da ciência sobre a fé, e prescreve as mesmas receitas: é necessária uma Europa em que a cristandade medieval seja recuperada, cristandade caracterizada pelo domínio implacável da Igreja de Roma sobre a sociedade, em que os «Santos» Padres se arrogavam ao direito de decidir sobre todas as matérias, mesmo as científicas. Assim, encoraja uma prática católica tridentina, virada para o passado e obscurantista, exponenciando com as suas prelecções constantes os preconceitos anti-Iluminismo e anti-democráticos dos católicos mais fanáticos.
Prelecções de que a recente palestra em Regensburg, que continuarei a analisar, é apenas mais um exemplo…