Dar a outra face
A mensagem da Bíblia é, no seu global, extremamente bélica e intolerante.
Tanto no Antigo Testamento, como no Novo Testamento.
Jesus é esclarecedor: «não vos venho trazer a Paz, mas a Espada».
Apesar de dezenas e dezenas de citações que comprovam estas minhas alegações (e apesar das maiores igrejas cristãs terem todo um historial que as ilustra em actos, guerras e agressões e respectivas fundamentações teológicas), todos os cristãos que conheço acham tais alegações disparatadas.
Tentam refutá-las com base em interpretações distorcidas que traiem a mensagem bíblica. Caso a caso, citação a citação, é fácil desconstruir tais patéticas interpretações que tentam negar o óbvio: o carácter bélico da mensagem bíblica.
Outra linha de argumentação, e esta já merece mais crédito, é a exposição de outras passagens que evocam a mensagem oposta. Apelam à Paz e à piedade. Em actos concretos.
É óbvio que tais passagens são dezenas de vezes menos frequentes que as restantes (e não exagero: é mesmo outra ordem de grandeza!). Mas as mensagens não se medem «ao litro»: se bem que tal disparidade na frequência dos apelos para a guerra e para a paz não possa ser ignorada, a verdade é que cada um dos apelos à paz merece ser estudado com cuidado, para que se poder concluir algo a respeito do teor mais ou menos bélico da Bíblia.
Uma das mais importantes afirmações que Jesus faz a este respeito é a seguinte: «Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a esquerda» (Mt. 5, 39).
Importa debruçarmo-nos sobre esta passagem. Ela é muito importante, uma das que mais influencia a percepção (distorcida) que as pessoas têm daquilo que é a mensagem de Jesus. Quando eu era mais novo (e cristão) achava estas palavras ousadas, revolucionárias, e seu conteúdo profundo. Muita gente acha isso…
…E não se apercebe que são um enorme e patético disparate.
Se mais pessoas seguissem este conselho, o mundo seria pior. Os agressores teriam mais incentivos (e menos riscos) para agredirem. Os agredidos eram mais humilhados e injustiçados. Os povos conheceriam melhor o domínio, o saque e a pilhagem, e os corruptos, os invasores, os saqueadores teriam ainda menos quem lhes fizesse frente.
Se a Inglaterra, a Rússia, e os Estados Unidos tivessem dado ouvidos a Jesus, não saberemos quantas suásticas teriam sido edificadas, após o domínio nazi que teria sido incontestado. É um exemplo insignificante, pequeno, no imenso oceano de exemplos em todas as escalas, em tantos episódios no dia-a-dia. Se muitos seguissem tal conselho, as guerras e agressões não iriam diminuir, aumentariam alimentadas por tão delicioso incentivo.
Não há razões para preocupação, é claro. A verdade é que as palavras de Jesus são tão disparatadas, que não existe sequer o risco de serem levadas a sério, mesmo por aqueles que as acham tão belas. Mesmo esses facilmente se apercebem que não as podem pôr em prática, pois o bom senso sobrepõem-se, e existe uma noção intuitiva de que a justiça não poderia prevalecer dessa forma (e isso dificilmente seria louvável) e de que as consequências de tal atitude seriam o abuso incondicional por parte dos piores entre os piores. Muitos podem continuar a gostar de tal passagem, desligando-a completamente daquilo que seria afectar a sua vida por tais palavras. E bendita incoerência essa!
Não me interpretem mal: não venho aqui defender que nunca se deve perdoar, ou outras teses bélicas do género propaladas na Bíblia (lembram-se do «olho por olho»?). Há casos em que se deve retaliar, e outros em que se deve perdoar – qualquer incondicional será disparatado. Os estudiosos da ética e da teoria dos jogos têm chegado a resultados muito interessantes a este respeito. O jogo do prisioneiro, tão simples, tem dado bases sólidas para que o conhecimento avance neste domínio e se chegue cada vez mais longe.
Há casos em que a agressão deve ser perdoada, e outros em que se deve retaliar. Mas no que respeita à informação, o ideal é que o agressor espere sempre a retaliação, para que diminua o seu incentivo para agredir. O erro presente neste disparate de Jesus não está, portanto, apenas ao nível do incondicional como ao nível da informação. Ou seja: não é apenas errado perdoar sempre, e em qualquer situação, como também é indesejável que os agressores esperem que tal aconteça.
Assim sendo, depois de tantos incentivos que a Bíblia dá para a guerra e para agressão, nesta passagem apelando à Paz, só não se incentiva mais a guerra porque, por ser tão disparatada, está fora de questão que seja posta em prática.