«O Crime do Padre Amaro», agora sem anticlericalismo
«O Crime do Padre Amaro» é um dos grandes clássicos do anticlericalismo português, a par de outras obras de Eça de Queiroz como «A Relíquia», do «Causas da decadência dos povos peninsulares» de Antero de Quental, de «A velhice do Padre Eterno» de Guerra Junqueiro, e de volumes de Tomás da Fonseca como «Sermões da Montanha» e «Na Cova dos Leões» (estes últimos, infelizmente, são difíceis de encontrar, mesmo em alfarrabistas). A sátira religiosa tem uma grande tradição em Portugal, com expressão popular em canções, quadras e anedotas. No cinema, tirando alguns momentos da obra de João César Monteiro, o anticlericalismo português tem poucos momentos de nota. A recente versão de «O Crime do Padre Amaro» consegue o milagre de retirar o anticlericalismo do romance de Eça de Queiroz.
Na obra original, a contradição entre as obrigações morais e «espirituais» dos homens do clero e as suas necessidades carnais são o fio condutor da narrativa. Na adaptação cinematográfica, as segundas são focadas, mas com a preocupação de não questionar as primeiras. Por exemplo: na cena do filme em que dois homens discutem a possibilidade de um deles vir a ser responsável por um aborto, nenhum deles está vestido como um padre, embora ambos o sejam, e o enquadramento esconde que a conversa tem lugar dentro de uma igreja. Eça de Queiroz exploraria a ironia da situação, em lugar de a temer.
Nota-se, em todo o filme, o cuidado de não ofender a igreja católica, e a atenção de até criar uma «estória paralela» que não existia no original e que evidencia a «acção social» do clero católico. Mais ainda, no final do filme o padre Amaro é vítima de uma tentativa de assassinato, enquanto no final do livro o padre Amaro é responsável por um infanticídio. A distância é a que vai da ousadia de Eça de Queiroz ao «religiosamente correcto» dos autores do filme. É pena, porque a combinação de nudez e anticlericalismo daria um filme inesquecível.