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Heresia e totalitarismo

Heresia: do grego hairesis significa escolha, preferência, gosto particular, escolha filosófica, inclinação ou preferência filosófica ou por uma escola de pensamento.

O aggiornamento que o Concílio Vaticano II se propunha a fazer pretendia não integrar a Igreja no projecto civilizacional moderno, contra o qual esta tinha lutado de unhas e dentes, mas sim «lavar» a imagem de uma Igreja totalitária demasiado comprometida com a II (e I) Guerra Mundial, com a Inquisição, etc.. Para sobreviver a Igreja necessitava parecer reconciliar-se com o mundo moderno, com os seus valores – tais como os direitos do homem, a igualdade, a liberdade, a fraternidade e a democracia – contra os quais tanto combateu, recorrendo a meios que o homem pós II Guerra Mundial reconhecia como abominações morais e éticas.

E posteriormente apropriar-se destes valores como se fossem seus, fazendo passar a mensagem de que, nas palavras, por exemplo, do «modernista» cardeal Kasper, «a modernidade foi construída fora da Igreja, em grande medida contra a Igreja, mas fundada em valores evangélicos».

Assim, a inquisição, os anátemas e a apologética do século XIX eram estigmas de uma postura que precisava ser superada, e foi desenvolvida uma teologia dos «sinais dos tempos», na qual se inclui a teologia da libertação, que substituiu a teologia apologética que pareceu durante o final do século XIX e início do século XX a única racionalidade teológica possível para fazer frente ao modernismo anatematizado e demonizado por Pio X.

Esta teologia nunca foi aceite de facto pela Igreja, não apenas pelas facções mais conservadoras que a consideram abertamente uma «heresia» modernista, devidamente condenada por Pio X no Decreto Lamentabili Sane e na encíclica Pascendi Dominici Gregis. Heresia modernista que Bento XVI, um seguidor confesso da patrística, se devotou erradicar, chamando-lhe relativismo, agora que o objectivo do Concílio foi atingido, isto é, a imagem da Igreja foi convenientemente lavada.

Torna-se assim interessante analisar as evoluções heréticas ao longo da história do cristianismo, recordando que um elemento fundamental na acusação de «heresia» é o «pecado» do orgulho. Orgulho que consiste em não aceitar os ditames da «autoridade» com base em lucubrações próprias.

De facto, as religiões organizadas não são mais que formas de controle social disfarçadas de religião e/ou ética. E para manter o controle é necessário arranjar um rótulo que identifique quem não aceita a autoridade da Igreja como pertencente aos «maus», aos «outros». Vemos essa necessidade em qualquer sistema totalitário, seja ele político, religioso ou uma amálgama de ambos.

Assim, as religiões procuram explicar os comportamentos humanos com mitos destinados a manipular e controlar, simultaneamente impedindo alterações do status quo. Estas explicações simples, maniqueístas, destinadas a gente simples – que precisa de alguém para odiar e desprezar, alguém sobre o qual sente uma «legítima» superioridade «moral» e contra o qual tudo é justificado – dividem o mundo em «bons» e «maus», «nós» e os «outros», eleitos e excluídos, consoante a sua obediência ou não à autoridade.

É necessário inventar palavras anatematizantes que descrevam inequivocamente os adversários, recorrendo aos mitos que forem necessários para desacreditar e demonizar o «inimigo», simplesmente aquele que não aceita a autoridade. Assim surgiram palavras como epicurista, donatista, arianista, maquiavélico, relativista, etc.. que em conjunto identificam o «herege», aquele que se atreve a pensar pela sua cabeça, o homem livre, o grande inimigo de qualquer forma de autoritarismo.

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