O protocolo de Estado e as implantações presumíveis
Foi ontem aprovada em comissão parlamentar a lei de protocolo de Estado. O PS cedeu no articulado final, que terá a seguinte passagem: «as autoridades religiosas, quando convidadas para cerimónias oficiais, recebem o tratamento adequado à dignidade e representatividade das funções que exercem, ordenando-se conforme a respectiva implantação na sociedade portuguesa». Só a inclusão da ordenação segundo a «implantação» satisfez o membro do Opus Dei Mota Amaral, que ao longo de todo o processo legislativo se bateu valorosamente por um lugar de destaque para a confissão religiosa a que pertence.
Sendo clarificador e positivo que o Cardeal Patriarca de Lisboa da ICAR deixe de ter um lugar específico no protocolo de um Estado separado dessa e de outras comunidades religiosas, a avaliação da «implantação» que as «autoridades religiosas» representam anuncia problemas novos que se me afiguram irresolúveis. Em primeiro lugar, as convicções religiosas são individuais, íntimas e inconstantes. Afirmar que, num dado momento, a autoridade religiosa A representa a convicção religiosa de mais cidadãos do que a autoridade religiosa B, é uma suposição que para ser confirmada exigiria controlar os pensamentos de dez milhões de pessoas. Em segundo lugar, para além da impossibilidade física de saber o que pensam as pessoas existe a interdição constitucional de lhes perguntar («ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa»). Finalmente, não podendo inquirir os cidadãos, o Estado terá que confiar às ditas autoridades a avaliação sincera e exacta da sua «implantação». E aí, imagino já o José Policarpo de punhos erguidos para o céu, naquela posição de futebolista que julga que acaba de marcar um golo: «nove milhões, novecentos e noventa e nove mil…». (Recorde-se, no entanto, que em 2001 a ICAR contou, confessadamente, um milhão e oitocentos mil praticantes, o que a torna apenas a maior das minorias religiosas…)
Implicitamente, ficou decidido que a ICAR será a primeira das confissões religiosas «implantadas» no protocolo. O problema é quem se segue na fila. Pessoalmente, estou convencido de que a Sociedade Torre de Vigia é a segunda confissão religiosa em número de praticantes, mas as Testemunhas de Jeová cultivam o distanciamento face ao Estado e à política, o que me parece uma atitude saudável para uma comunidade religiosa (embora a doutrina das transfusões de sangue seja nada saudável), e por isso deixarão a cadeira vazia. Em terceiro e quarto lugar, a menos que a Aliança Evangélica Portuguesa consiga que as dezenas de comunidades que federa se decidam por um representante único, virão o apóstolo Jorge Tadeu da Igreja Maná ou o representante da Igreja Universal do Reino de Deus, qualquer uma das quais terá dezenas de milhar de seguidores. Em quinto lugar, se contarmos os imigrantes ilegais, virá o sheik Munir ou um qualquer banqueiro wahabita. E depois virá a multidão de representantes hindus, budistas, da IOG, da IJCSUD e (porque não?) o delegado português da Federação Pagã Internacional, o representante da Federação Espírita Portuguesa, o dos rastafaris, o da Igreja Portuguesa de Cientologia e o da Associação Portuguesa de Satanismo, sem esquecer o professor Karamba, os simpáticos Bahá’ís e finalmente a senhora da Comunidade Israelita de Lisboa (uma religião com nome de país e com menos praticantes do que o jogo da laranjinha).
O espectáculo que se perspectiva é cortesia desse partido suposto laicíssimo que é o PS, e que, ao contrário dos seus congéneres espanhol ou francês, jamais afronta a ICAR, mesmo na mais pequena das questões. Efectivamente, o deputado Vera Jardim não hesita em sublinhar que existem dois regimes legais para os cidadãos portugueses no que concerne à liberdade de consciência, a Concordata e a Lei da Liberdade Religiosa, e que o primeiro regime legal torna os cidadãos católicos mais iguais do que os outros. No actual momento histórico, em que pelo menos dois terços dos portugueses não praticam religião alguma e em que assistimos a um processo de secularização rápido e sem precedentes, seria de esperar um pouco mais de coragem, no protocolo e em questões mais substantivas…