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O rapto de Edgardo Mortara

A recente preocupação da Igreja de Roma com a família, que se tornou a desculpa para as manobras jurássicas de recuperação do integrismo perdido, de que este Encontro das Famílias foi palco privilegiado, seria no mínimo bizarra não fora ser evidente qua a Cúria Romana se está nas tintas para a família e que este é apenas um tema populista com que podem acirrar as hostes ululantes de fundamentalistas católicos.

De facto, se olharmos mesmo para a história recente da ICAR não encontramos esta preocupação com a defesa da família. Assim de repente lembro-me da criança judaica de 6 anos, Edgardo Mortara, que foi removida à força pela polícia papal da tutela dos seus pais numa Bolonha à época – 1858 – integrante dos Estados Pontíficios.

Os inquisidores que ordenaram o rapto da criança usaram o pretexto de que esta tinha sido baptizada in extremis por uma criada. Segundo as leis estabelecidas pelos Papas, que governavam de facto metade da Itália, era proibido judeus criarem crianças baptizadas. Apesar de raptos de crianças judias supostamente baptizadas por graça de um qualquer católico anónimo ser uma prática recorrente da Igreja-Estado, desta vez o caso teve repercussões internacionais dada a atmosfera de rebelião contra o poder temporal ditatorial da Igreja em Itália.

Assim, cerca de 20 editoriais do The New York Times foram devotados ao tema e quer o imperador Franz Joseph da Áustria quer Napoleão III de França pediram a Pio IX, beatificado em 2000 por João Paulo II* e o tal que inventou o dogma da infalibilidade papal, que devolvesse a criança aos pais.

Todos os apelos, inclusive dos pais que protestavam ser impossível o seu filho ter sido baptizado, foram infrutíferos: Pio Nono enclausurou Edgardo num mosteiro onde, ao fim de anos de lavagem cerebral, acabou por ser ordenado padre.

Para ser mais correcta os apelos dos pais tiveram alguma reacção do Vaticano: foi-lhes respondido que teriam o filho de volta no instante em que se convertessem ao catolicismo. Ao que os Mortara se recusaram e como tal o beato Pio Nono considerou que foram eles e a sua obstinação em «fechar o coração» à revelação e piedade cristãs os responsáveis por não terem recuperado o filho.

Ironicamente o rapto de Edgardo foi um factor não despiciendo no processo de unificação da Itália, o Risorgimento, que ditou o fim do poder temporal da Igreja de Roma. De facto, o destino desta criança, arrancada dos braços dos pais por uma Igreja anti-semita e déspota, simbolizou toda a campanha revolucionária de Mazzini e Garibaldi para acabar com o domínio da Igreja Católica, tirar a Itália das teias do obscurantismo e estabelecer um estado moderno, democrático e laico.

Mais recentemente, na altura em que João Paulo II, que já tinha beatificado um facínora do Holocausto, o cardeal Stepinac que ainda voltarei a abordar, pretendia beatificar Pio XII, foi divulgado – pelo historiador Alberto Melloni, professor de história religiosa da Universidade de Bolonha e um dos maiores especialistas mundiais em história cristã – que Pio XII terá ordenado à Igreja Católica francesa que não devolvesse aos seus pais ou a instituições judaicas as crianças judias baptizadas durante a ocupação nazi.

A história completa, assim como uma tradução do documento comprovativo das ordens de Pio XII pode ser encontrada no excelente Rua da Judiaria.

* O beato Pio IX é o fazedor de um dos santos mais representativos da Igreja de Roma: um dos inquisidores mais tristemente famosos de Espanha, Pedro Arbues de Epilae, apenas ultrapassado no zelo e na «eficácia» por Torquemada.

Um dos teólogos liberais da época, Johann von Dollinger, protestou aquilo que considerou a «exaltação de um homem que determinou o baptismo compulsório de judeus e depois os torturava para se convencer que as conversões eram sinceras».

Dollinger, que considerava ser a Inquisição a mola impulsionadora do domínio mundano da Igreja e do seu poder sem limites sobre as vidas e propriedades dos homens, associava o anti-semitismo da Igreja com o poder temporal coercivo do papado e com o pretensão da Igreja que apenas ela era a detentora da «verdade absoluta». O Sílabo dos Erros e o decreto da infalibilidade papal, que não aceitou e foi por isso excomungado, foram o corolário das suas teses.

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