Igreja Católica e Holocausto: perspectiva judaica
Ao longo da série de posts sobre o Holocausto, em que Pio XII ainda nem sequer foi abordado, a posição pessoal de alguns judeus louvando o Papa é um argumento recorrente utilizado pelos crentes que frequentam estas páginas para tentar, infrutiferamente, defender a versão revisionista da Igreja de Roma sobre a actuação do Vaticano durante a II Guerra Mundial, especialmente sob o papado do referido Papa. As nossas caixas de comentários foram inundadas com cópias repetidas ad nauseam das palavras de judeus proeminentes, Albert Einstein e rabis sortidos entre eles, como se a opinião deles fosse comprovação suficiente de que Pio XII se opôs aguerridamente aos regimes fascista e nazi.
Nenhum dos referidos judeus é um historiador, muitos dos testemunhos que são citados são-no de sobreviventes do Holocausto que foram salvos por católicos. Como escrevi logo na primeira série sobre o tema, o envolvimento do Vaticano com os nazis e seus regimes satélites não nega o facto de que muitos católicos, padres, freiras ou simples leigos, combateram heroicamente os nazis e foram solidários com os judeus e outros perseguidos.
Aliás, se considerarmos que quer a Alemanha – nomeadamente o Sul, o Norte era maioritarimente protestante – quer esses regimes satélites eram países católicos tal era apenas expectável: muitos são os crentes que desde os primórdios do cristianismo não seguem acefala e acriticamente os ditames das hieraraquias religiosas se esses ditames vão contra as suas consciências. E os posts analisam não as posições individuais de católicos mas sim a posição das cúpulas. E é inegável que a actuação das cúpulas da hierarquia católica, nesses países satélites e não só, do Vaticano, de Pio XI e especialmente de Pio XII, o Papa nazi para muitos, é matéria que incomodou e incomoda muitos crentes.
Compreendo que seja difícil reconhecer as culpas e os erros da hierarquia católica para um crente numa religião em que acima da razão e da crítica deve estar a obediência a Deus e aos seus «representantes» na Terra, mas factos são factos e negar e reescrever a História não é a solução para esse incómodo.
Há muitos anos, ainda era eu estudante de licenciatura, tive oportunidade de conhecer um ateu fascinante, sobrevivente dos ghettos e dos campos de trabalho da sua Polónia natal, Roald Hoffmann, um químico que colaborava com alguns professores do Técnico. O Roald, com quem mantive correspondência durante uns anos, era fascinante não só pelo seu trabalho pioneiro numa área que hoje em dia é indispensável a qualquer químico, a química teórica, mas igualmente pelo seu eclectismo de saber. Numa das conversas com ele o tema do post foi exactamente o assunto sobre que nos debruçámos.
O Roald e a mãe foram salvos do destino do pai, assassinado pelos nazis, por um ucraniano que os escondeu até ao final da guerra no sotão de uma escola. Apesar de ele ser uma criança à altura, não esquece nem os horrores por que passou nem a dívida de gratidão para com o seu salvador. O horror desse tempo escondido num exíguo sotão nunca o abandonou, horror exponenciado pela falta de informação, pela incerteza de um quotidiano tornado possível por um único homem, o centro da vida deles durante esse tempo, quasi um Deus omnipotente que podia ditar a sua sentença de morte com uma simples palavra.
Segundo o Roald, um ateu para quem a tradição judaica é importante exactamente por ser um sobrevivente do Holocausto, toda a objectividade para analisar as escassas informações disponíveis à época desapareceu dos sobreviventes face aos horrores da sua vivência e à gratidão por terem sido salvos. Por outro lado, durante o Holocausto, todos os rumores ou boatos que alimentassem a esperança, vindos de que quadrante viessem, eram aumentados e acarinhados em cada transmissão. Por isso, segundo ele, para um sobrevivente era difícil distinguir realidade de ficção especialmente se essa ficção fosse alimentada pelos seus salvadores.
Sendo assim, não é de espantar que muitos relatos de judeus sobreviventes ao Holocausto pela mercê da consciência humanista de católicos estejam tingidos pelos respectivos ordálios e vivências pessoais. Por outro lado, os rumores das tentativas de intervenção da hierarquia católica em favor dos judeus baptizados assim como os boatos (falsos) acerca de intervenções em favor dos judeus franceses causaram demonstrações de agradecimento por parte de lideres judaicos, verdadeiros disparates, como relata o historiador do Holocausto Avraham Milgram*, que atribuiram erroneamente a Pio XII feitos jamais por ele realizados.
Imagem errónea alimentada igualmente pelo facto de que a partir de finais de 1942, depois de ter sido informado pelos aliados que estes pretendiam uma vitória total contra os nazis e se tornou evidente que o conseguiriam, Pio XII decidiu que seria politicamente vantajoso para a hierarquia católica na Alemanha começar a insurgir-se, debilmente, em público contra o massacre de judeus.
Imagem errónea explorada pelo Vaticano no documento de 1998 – Nós lembramos – uma reflexão sobre o Shoah, em que são atribuídas a Pio XII as acções individuais de católicos que salvaram judeus : «[Pio XII] pessoalmente ou através dos seus representantes salvou centenas de milhares de judeus». A esmagadora maioria dos historiadores judeus não engoliu esta tentativa de lavagem da História nem de lavagem da imagem de Pio XII. As cartas individuais de agradecimento a Pio XII de judeus salvos por católicos, escritas a «quente» imediatamente após a derrota nazi, abundantemente citadas ao longo do referido documento, não são aceites pelos historiadores como provas testemunhais objectivas pelas razões que expus.
Na realidade, Pio XII pouco ou nada fez para salvar os judeus e pouco sucesso teve no auxílio a judeus baptizados, considerados membros efectivos da Igreja Católica. As tentativas de obtenção de vistos para a América Latina, católica e fora do conflito, para os católicos não arianos da Alemanha foram infrutíferas devido aos sentimentos anti-semitas da esmagadora maioria dos núncios apostólicos destes países, especialmente os do Chile e Bolívia.
Avraham Milgram Os judeus do Vaticano. A tentativa de salvação de católicos – não-arianos – da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942). São Paulo, Imago, 1994.