Totalitaritarismo e vitimização: a invenção da cristofobia
Como já referi, as religiões alimentam-se de «mártires» e sem estes fenecem. Em particular a ICAR agita incessantemente a bandeira de supostas perseguições a cristãos, pois como afirmou Edward Novak, secretário da Congregação para as Causas dos Santos, «De um mártir» nascem «centenas, milhares» de novos fiéis. Isto é, para angariar clientela e inflamar os fundamentalistas é necessário inventar perseguições e glorificar os «mártires» que se «sacrificam» em nome de uma qualquer «causa» cristã, seja ela o aborto ou a Inquisição «anti-católica» que rejeitou Rocco Buttiglione.
O cúmulo do absurdo da cristianovitimização pode ser apreciado nas manobras e pressão exercidas pelo Vaticano para que seja aprovado um novo termo: a «cristianofobia».
Este termo recente foi rapidamente incorporado no léxico dos fundamentalistas que querem submeter todos aos ditames do Vaticano, com especial reprodução mediática após a publicação do livro «Política sem Deus. Europa e América, o cubo e a catedral» (Edições Cristandade), do teólogo católico George Weigel. De facto, desde a sua publicação que os fanáticos cristãos gritam «cristofobia» sempre que os poderes públicos não condescendem em transcrever na letra da lei os anacrónicos (e acéfalos) ditames da Igreja de Roma.
George Weigel, conhecido por ser o biógrafo de João Paulo II («Testemunho de esperança»), interroga-se sobre as razões que levam os intelectuais europeus a serem «cristianofóbicos» (sinónimo de laicos para os fundamentalistas católicos). Claro que a resposta óbvia é completamente ignorada e para conduzir os mais incautos à resposta convoluta e falsa que a ICAR pretende passar – e como subproduto alimentar a desconfiança em relação aos intelectuais de cuja influência perniciosa se devem afastar os «simples» cristãos – Weigel lança-se numa série de lucubrações erróneas.
Nomeadamente sobre a razão porque a «nata» da intelectualidade neste continente não reconhece que os males que assolaram (e assolam ) a Europa desde o início do século XX, proeminente entre esses males a II Guerra Mundial e concomitantemente o nazismo, se devem a uma «laicidade radical», ao «drama do humanismo ateísta», termo cunhado pelo jesuita Henri de Lubac no livro homónimo.
Lubac argumentava, na linha do revisionismo histórico Icariano, que a crise civilizacional que atravessou a Europa durante a II Guerra, isto é países católicos ou predominantemente católicos contra os aliados (países anglicanos, protestantes e ateus) se devia à rejeição de Deus em nome da liberdade humana. Na realidade, a série de posts (incompleta) sobre o que se passou na época revela como absurda a pretensão católica. Não foi a rejeição de Deus que motivou o Holocausto, Deus esteve presente em todos os discursos que convenceram os cristãos habitantes dos países do Eixo de que aquela era uma «guerra justa». «Guerras justas» que continuam a ser a praga anacrónica da modernidade.
A «guerra justa» movida pelo devoto teólogo é agora a desacreditação dos intelectuais europeus, incluindo católicos «liberais», que supostamente manifestam em elevado grau essa cristofobia porque assumem (correctamente) que o «único espaço público que garante o pluralismo, tolerância, civismo e democracia é um espaço público que é completamente ateu», isto é um espaço público laico, uma abominação aos olhos dos fundamentalistas cristãos.
Assim, Weigel identifica oito aspectos ou dimensões que, na opinião de Weigel, dissociam a «ética» cristã, especialmente na versão exegética do Vaticano, da ética expressa no direito da Europa, segundo ele comprometida com os direitos humanos, com a democracia e com o império da lei. Quais são então para o teólogo católico as 8 fontes de «cristofobia»?
Alguns das fontes identificadas são constatações de factos, históricos e político-sociais, embora com algumas omissões e distorções que pretendem conduzir um leitor menos esclarecido às conclusões (erradas) pretendidas, nomeadamente que todos os males do mundo advêm da rejeição de Deus da praça pública.
O ponto 1 é absolutamente certeiro e verdadeiro. Se abstrairmos o revisionismo histórico católico que persiste em lavar a História e tentar vender o nazismo como sinónimo de ateísmo, reproduzido em itálico, não podia estar mais de acordo com o teólogo:
1. [A primeira componente dessa cristofobia é] a experiência do Holocausto no século XX e a convicção que se tem em círculos intelectuais e políticos europeus de que as atrocidades genocidas da shoah foram consequência lógica do antijudaísmo cristão que atravessa a história europeia. Por conseguinte, uma Europa que grita «Nunca mais» ante a tragédia de Auschwitz e todas as outras, tem de dizer «Não!» à possibilidade de que o Cristianismo tenha algo a ver com uma Europa tolerante.
O ponto 4 é absolutamente cretino, isto é, o teólogo que esquece convenientemente quem deu o poder ou quem estava no poder nos países que se aliaram a Hitler e na própria Alemanha, carpe a «contínua quebra do papel dominante» dos «partidos políticos democrata-cristãos na Europa». Ou seja, para Weigel os eleitores que votam em outros partidos fazem-no não por razões políticas mas sim porque são «cristofóbicos».
Carpimento que continua na quinta dimensão em que Weigel considera cristofobia o facto de se «identificar o Cristianismo com a direita» e muitos descreverem a democracia cristã «como xenófoba, racista, intolerante, fanática, estreita de visão, de corte nacionalista e tudo o que Europa não deveria ser».
A sétima dimensão é um dos pontos, em conjunto com o primeiro, mais importantes da lista (porque revisonistas da História) já que neste ponto Weigel ulula contra os intelectuais que alimentam «uma visão distorcida da história europeia» que enraíza a «democracia no Iluminismo» raízes «que são as que alimentam o projecto democrático» e esquecem as raízes cristãs da «democracia na Europa cristã anterior ao Iluminismo». Não sei se o devoto católico inclui, como alguns dos nossos leitores, esse instrumento fundamental para a democracia (?) e tolerância cristãs medievais que foi a Inquisição…