Igreja Católica e Holocausto: Com ardente inquietação
Eugenio Pacelli (depois Pio XII) assina a Concordata entre a Alemanha nazi e o Vaticano numa cerimónia formal em Roma, realizada em 20 de Julho de 1933. Na fotografia, à esquerda de Pacelli senta-se o vice-chanceler nazi Franz von Papen; à direita Rudolf Buttmann, o embaixador alemão junto do Vaticano.
«Ninguém pensaria em impedir os jovens alemães de estabelecer uma verdadeira comunidade étnica, [baseada] num amor nobre da liberdade e lealdade ao seu país. Aquilo a que objectamos é o antagonismo voluntário e sistemático entre educação nacional e dever religioso»(…)
«Praticada com moderação e dentro de limites, a educação física é uma benesse para a juventude. Mas tanto tempo é agora dedicado a actividades desportivas que o desenvolvimento harmonioso do corpo e do espírito é esquecido e a observação do dia do Senhor negligenciada. (…) Mas esperamos da juventude católica, nas organizações mais favoráveis do estado, que mantenha o seu direito à santificação cristã do domingo».
Este é o conteúdo do ponto 34 da encíclica Mit brennender Sorge, (Com ardente inquietação, restrita à situação da Igreja no Reich, mais nada é abordado nela) de 14 de Março de 1937, «sobre a situação da Igreja Católica no Reich alemão» – «uber die Lage der katolischen Kirche im Deutschen Reich», a tal que é suposta condenar «o racismo nazista de modo solene». Só mesmo uma ardente imaginação permite concluir algo remotamente parecido desta encíclica, que tal como a análoga italiana «Não havia necessidade», reflecte apenas as quezílias inevitáveis entre instituições totalitárias: a Igreja e o Estado, nazi e fascista, respectivamente na Alemanha e em Itália.
As nuvens que toldavam um entendimento de outra forma perfeito tinham a ver com o domínio absoluto e exclusivo sobre certos sectores da sociedade, nomeadamente a educação dos jovens, que quer Estado quer Igreja consideram da sua competência. Em ambas as enciclicas Pio XI reclama uma fatia maior na doutrinação dos jovens, que ele vê usurpada pelo Estado dos dois países, não obstante verberar que tal é garantido pelas Concordatas assinadas entre o Vaticano e a Alemanha nazi e Itália fascista.
A encíclica «Com ardente preocupação», que se inicia relatando as dificuldades encontradas pelo Vaticano nas negociações da Concordata, acusa as autoridades alemãs de violar os termos da dita, especialmente, claro, no que diz respeito à educação. Referindo que existe uma «campanha contra as escolas confessionais, garantidas pela Concordata» responsável pela «extrema gravidade da situação, e da ansiedade de todas as consciências cristãs» coarctadas «do direito de uma educação católica aos seus filhos». Isto é, o que preocupa Pio XI e ele denuncia vivamente, nem sequer remotamente tem a ver com a situação dos judeus ou outros grupos perseguidos, apenas com … o proselitismo católico, que considera ameaçado!
De qualquer forma, o Sumo Pontífice expressa a sua esperança de que se «retorne à fidelidade aos tratados [Concordata] e a qualquer arranjo que seja aceitável ao episcopado». Mas este arranjo aceitável ao episcopado tem a ver apenas com a situação da Igreja católica, não há qualquer condenação de doutrinas ou ideologias, nem qualquer declaração de incompatibilidade do nazismo com o catolicismo. Mais uma vez temos apenas uma condenação de situações pontuais, relacionadas com a Igreja, que o Papa espera serem obviadas com a encíclica.
Aliás, a encíclica, na realidade um longo queixume do Papa, nem sequer menciona ideologias políticas ou algo que não seja relacionado com a perda de poder da Igreja, são necessários grandes dotes de imaginação (católica) para ver nela qualquer combate, ataque ou condenação à ideologia nazi.
Como escreveu Alfredo Pimenta, num artigo publicado em «A Nação» a 16 de Março de 1944 (um longo excerto do artigo pode ser encontrado aqui):
«A Encíclica Mit brenennder Sorge termina por palavras de esperança em melhores dias que deverão ser aproveitadas ‘na luta contra aqueles que negam Deus e arruinam o Ocidente cristão’ – ou seja o Comunismo! E tanto que o Osservatore Romano de 22 e 23 do mesmo mês de Março afirma não acreditar que houvesse um alemão que não apreciasse o desejo do Pontífice de ver a Alemanha ‘no seu lugar de honra entre as nações cristãs contra o satânico flagelo bolchevista’».