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Mês: Maio 2006

28 de Maio, 2006 Carlos Esperança

Rätzinger na Polónia


O Papa Ratzinger foi à Polónia – a última reserva do catolicismo jurássico, na Europa -, dizer missas e apanhar um banho de multidão. Apanhou uma molha que encharcou 300 mil fiéis, quando se esperava um milhão.

A Varsóvia de hoje já não é a de 1979 nem B16 é JP2, um artista consumado na arte de encantar multidões que, nessa data, levou o público ao rubro.

Enquanto Deus zurzia os crentes e os curiosos e os fustigava com bátegas, os figurantes protegiam-se do céu com guarda?chuvas.

B16 lá pediu aos polacos que não deixassem que a prosperidade lhes corroesse a fé, sabendo como a miséria e a ignorância são aliados poderosos da crença no divino.

Na última missa, mais concorrida, no Parque Blonie de Cracóvia, ajudado por cerca de 1900 padres, dos quais 20 cardeais, 28 arcebispos e 120 bispos de um total de 16 países, afirmou que sentia «profunda comoção» ao recordar JP2.

JP2 vai ser canonizado brevemente. É do interesse da ICAR, da Polónia, e, em especial, do vice-primeiro-ministro e ministro da Educação, Jedrzej Giertych, «católico integrista, militante contra a homossexualidade e o aborto», tradicionalista radical, antiliberal e anti-europeu, como convém ao filho e neto de dois ideólogos da direita nacionalista polaca.

O passado de B16 na juventude nazi (mesmo que involuntário) criou embaraço na passagem por um campo de extermínio nazi da Polónia, um país que se distinguiu pelo anti-semitismo militante.

27 de Maio, 2006 Carlos Esperança

Mais uma beata no zoo da santidade

Ora aqui está uma impossibilidade absoluta, falsificar o que não existe, deturpar o que nunca foi dito, atribuir segundo sentido ao que não tem qualquer sentido.

A palavra de Deus é uma espécie de placebo sem excipiente, o fato do rei que ia nu, um artifício de que se alimenta o clero e que explora os supersticiosos.

Enquanto o Papa Ratzinger prossegue na campanha de marketing e no esforço de fazer regredir a humanidade, a ICAR dá a conhecer a próxima beata portuguesa – Rita Amada de Jesus (1848-1913).

No próximo dia 28 de Maio terá lugar na Sé de Viseu – dia em que o fascismo celebra oitenta anos do golpe de Estado que deu origem à mais longa ditadura europeia -, uma missa presidida pelo cardeal fabricante de beatos e santos, para proclamar a nova beata.

A freira Rita Amada de Jesus (lindo nome) «desde criança, manifestou especial devoção a Jesus Sacramentado, a Nossa Senhora, e a S. José e ainda um carinho muito particular pelo Papa que, por essas alturas vivia vida atribulada, a ponto de se ver exilado e, poucos anos depois espoliado dos Estados Pontifícios».

Além disso pedia às Irmãs Beneditinas do Convento de Jesus e conseguiu delas alguns «instrumentos de mortificação», adereços preciosos de que os elementos do Opus Dei e outros sadomasoquistas não prescindem.

A propaganda da ICAR está a aproveitar mais esta beatificação para a manipulação da população rural de Viseu, para atacar a primeira República e reabilitar um Papa que foi um autêntico facínora (Pio IX).

Esta saudade do poder temporal manifesta-se na ânsia de poder do actual pontífice, nas exigências clericais ao poder político dos países democráticos e no desespero com que a ICAR combate a secularização e a laicidade.

Cuidado, eles estão de volta. São poucos mas raivosos. O clero medieval está aí de novo para impor regimes ditatoriais e regressar aos métodos de Pio IX, o «papa atribulado» que considerou a Igreja católica incompatível com a liberdade e excomungou a democracia e o livre-pensamento.

27 de Maio, 2006 Palmira Silva

Vaticano e Itália – I

O jornal do Vaticano, L’Osservatore Romano, criticou na terça-feira dois ministros do novo governo italiano que se manifestaram, respectivamente, em favor da pílula abortiva e da legalização das uniões civis.

A ministra da Saúde italiana, Livia Turco, foi criticada por relançar a pílula RU486, proibida em Itália desde Janeiro deste ano pelo governo do grande paladino de óvulos e espermatozóides Silvio Berlusconi, pouco depois de Bento XVI ter exortado os médicos a não prescreverem este medicamento e ter afirmado que o governo italiano não deveria «introduzir medicamentos que de uma forma ou outra escondem a grave natureza do aborto».

Como esperado, o Osservatore Romano não perdeu tempo a lamentar a atitude da nova ministra da Família, Rosy Bindi, que defendeu o reconhecimento das uniões de facto.

O jornal do Vaticano classificou como «desconcertante» a pressa com que o Governo de Prodi aborda «matérias particularmente delicadas» (para o Vaticano, claro).

Para se perceber no seu real enquadramento, que nem remotamente tem a ver com uma suposta «ortodoxia» (i)moral, este início das hostilidades entre o Vaticano e o governo de Romano Prodi, que com as suas primeiras medidas já mostrou não ser tão permeável aos «conselhos» do Vaticano como o seu antecessor, e porque estes ataques ir-se-ão certamente intensificar se Prodi ousar defrontar abertamente o ditador do Vaticano como o fez Zapatero, é necessário compreender o que está subjacente a esta guerra: poder político que por sua vez é necessário para manter os benefícios financeiros, nomeadamente total isenção de impostos, do Vaticano.

E a influência política da ICAR em Itália, como demonstrado pelas últimas eleições, já não é o que era. O Vaticano precisa com urgência de mostrar ao governo que não perdeu o ascendente político no país e nada melhor para isso que acirrar as guerras das ditas «questões fracturantes»! Caso contrário, o primeiro-ministro italiano, a braços com uma grave crise económica e a maior dívida da zona euro, pode ter ideias peregrinas para resolver de uma assentada a crise, como revogar a isenção de impostos aos negócios, completamente sem nada a ver com religião, do Vaticano.

Isto é, passarem a pagar impostos os muitos negócios e investimentos que o Vaticano detém em Itália, como a maior imobiliária italiana, a Società Generale Immobiliare, para não falar nas participações em multinacionais como a Morgan Guaranty, Credit Suisse, Chase Manhattan ou a Continental Illinois. Esta absurda isenção total de impostos foi concedida por Mussolini e nunca foi revogada, embora Aldo Moro tenha tentado. Mas foi assassinado, supostamente pelas Brigadas Vermelhas, antes de o conseguir

27 de Maio, 2006 Palmira Silva

Aviso aos fundamentalistas católicos

«Tolerância ilimitada leva necessariamente ao desaparecimento da tolerância. Se formos de uma tolerância absoluta, mesmo com os intolerantes, e não defendermos a sociedade tolerante contra os seus assaltos, os tolerantes serão aniquilados e com eles a tolerância. Assim, devemos reivindicar, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. »
Karl Popper The Open Society and Its Enemies (1945)

Quando o Diário Ateísta, então Diário de uns Ateus, iniciou a sua experiência na blogosfera nacional pretendia fazer do espaço de comentários uma espaço completamente aberto, livre e democrático, onde crentes e ateístas pudessem debater no espírito que pretendemos seja a sociedade nacional: tolerante, plural e civilizada. Já contávamos com inevitáveis ataques, críticas e insultos dos crentes mais exaltados mas nunca pensámos que o fanatismo religioso tivesse atingido cá no burgo a virulência que alguns comentadores demonstram.

De facto, à medida que o DA foi ganhando mais leitores e alguma notoriedade, foi ganhando igualmente comentadores que baixam o nível do debate a extremos em que este é impossível. Os fundamentalistas católicos que entretanto pousaram no DA obrigaram-nos a meditar seriamente no paradoxo da tolerância de Karl Popper.

Mesmo após a panóplia de insultos pessoais, ameaças à integridade física e até uma ameaça de morte, com que temos sido mimoseados por estes fanáticos, optámos por não impôr qualquer restrição aos comentários. Todos nós, como ateístas assumidos há muitos anos, sabemos como reajem os católicos mais devotos à mera existência de quem se atreve a descrever a sua crença por aquilo que é: mais uma mitologia. Não nos esquivamos ao debate nem nos fazemos de virgens ofendidas e muito menos enfermamos da característica indissociável do cristianismo, a mania da vitimização e perseguição.

Mas estes fundamentalistas católicos foram usurpando o espaço de discussão, agredindo e insultando todos os comentadores ateístas, despejando lixo nas caixas de comentários a tal ponto que muitos dos frequentadores habituais deste espaço, que relembro se intitula Diário Ateísta, se queixam que é impossível ou pelo menos penoso comentar. De facto, os fundamentalistas, na falta de argumentos, resolveram recorrer às tácticas terroristas que caracterizam todos os fundamentalismos, neste caso sabotagem pura e dura: desde ataques constantes ao nosso server, passando pelos insultos mais vernáculos, multiplicação de nicks por uma mesma pessoa e pela utilização da assinatura de outros comentadores e de colaboradores do DA em comentários de nível abaixo de cano de esgoto.

Assim sendo, dizemos basta aos intolerantes! Reivindicamos, em nome da tolerância, o direito de não tolerar os intolerantes. Pelo menos neste espaço, obrigá-los-emos a respeitar as regras da sociedade tolerante, civilizada e democrática que é a nossa: é permitida a total liberdade de opinião, todos são bem-vindos a discordar do que escrevemos e a fundamentar como quiserem essa discórdia.

Não são permitidos insultos pessoais, ameaças à integridade física ou a utilização de nicks ou nomes de outrem. Os comentários que não obedeçam a estas regras simples serão apagados. Assim como serão substítuidos pelos links apropriados (à Opus Dei, Comunhão e Libertação, etc.) todos os muitos e extensos comentários copy&paste com que habitualmente nos mimoseiam.

Os nossos leitores, crentes e ateus, têm o direito a comentar neste espaço. Direito que lhes estava a ser sonegado por uns poucos fanáticos totalitários, inimigos da nossa sociedade aberta e tolerante.

26 de Maio, 2006 jvasco

Parábolas simples, distorções complexas

Os textos do evangelho são simples. Jesus falou aos discípulos numa linguagem simples, precisamente para que a sua palavra estivesse ao alcance de todos.

Mas a mensagem evangélica, se bem que fosse o ideal para se espalhar entre os escravos e oprimidos do faustoso império romano, não era muito adequada para uma instituição poderosa com relações mais ou menos promíscuas com um poder político de uma potência económica dominante.

É que a mensagem evangélica, entre outras coisas, é socialista. Diz claramente que os ricos não chegarão ao céu – que estes não se devem ficar pela caridade, mas sim dar tudo o que têm aos pobres.

A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) encontrou uma forma engenhosa de conciliar a mensagem evangélica com as suas diversas directrizes que ao longo da história têm estado, segundo a própria assume, em directa contradição com o evangelho (Cruzadas, Inquisição, etc..).

Tentou dificultar o acesso generalizado ao evangelho, e criou um mito segundo o qual a interpretação do evangelho era uma verdadeira ciência, tão profunda que estaria apenas ao alcance dos seus teólogos, que a ela dedicam toda uma vida. Dessa forma, tornou-se fácil conseguir defender tudo o que quisesse: desde a condenação de Galileu, até à santificação de S. Escrivá.

Foram os protestantes quem primeiro começou a imprimir e a traduzir as Bíblias, e a primeira reacção da ICAR foi de oposição. E hoje os evangélicos e protestantes conhecem muito melhor a Bíblia que os católicos. É toda uma tradição de a esconder dos crentes…

O que eu acho curioso é que quando qualquer um pode identificar os erros dos inspirados teólogos católicos ao longo da história (em cuja humanidade a ICAR não deixa de se justificar) ninguém pode pôr em causa os teólogos actuais.

Se alguém com uma tese de mestrado associada ao estudo da história e cultura da Estremadura em finais do sec XIX, e uma tese de doutoramento acerca d’ «A problemática do “realismo niilista” na literatura portuguesa» me vier dizer que eu interpreto Os Maias demasiado literalmente, e que a Maria Eduarda é o Pedro disfarçado, que voltou da 9ª dimensão para tentar matar Afonso, vou precisar de muito bons argumentos para aceitar tamanho dislate… Não basta falar na enorme importância de conhecer o contexto sócio-cultural d’Os Maias para os poder interpretar convenientemente.
Se acredita que o conhecimento profundo do contexto pode justificar tal interpretação, então ainda bem que o conhece, pois pode expor com clareza os pontos em que baseia a sua interpretação.

Da mesma forma, não aceito de ânimo leve que o Jesus dos evangelhos não deixasse de condenar a riqueza. Leiam estas passagens:

«Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e mesmo quem tem mantimentos faça o mesmo» Lc 3:11

«Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuires, dá o dinheiro aos pobres» Mt 19:21

«Em verdade vos digo que dificilmente entrará um rico no reino dos céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo na ponta de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus» Mt 19:23,24

«Mas ai de vós ricos que recebestes a vossa consolação» Lc 6:24

Como ateu, não reconheço qualquer valor de ciência económica ao que está escrito nestes fragmentos do folclore mitológico dessa zona conflituosa onde hoje estão a Palestina e Israel. Mas quem acredita que os evangelhos são a palavra de Jesus tem de entender que a doutrina da ICAR continua, na boa tradição do seu passado, a ser incoerente com os evangelhos que reconheceu.

Se a ICAR não reconhece como evidência que, à luz do evangelho que declara sagrado, ser rico é pecaminoso, que credibilidade tem para quaisquer outras interpretações que questione da parte daqueles que fazem uma leitura crítica?

26 de Maio, 2006 Palmira Silva

Relativismo moral – I

Se, pois, os falsificadores de moedas e outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares, com muito mais razão os hereges podem não somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte
Tomás de Aquino, Suma Teológica II/II 11, 3c

Desde o início do seu pontificado como Papa, o discurso de Ratzinger tem sido pautado pela denúncia daquilo a que chama «ditadura do relativismo», ou seja, supremacia da tolerância, da razão e ciência em detrimento do obscurantismo e totalitarismo da fé. Ratzinger que se lamentava não ser «bom sinal que muitos ambientes cristãos se caracterizem hoje não pela fé na Trindade, mas na fé de uma tríade repetida como mágica: ‘Paz, justiça, respeito pela natureza’» e que praticamente declarou guerra à modernidade, liberalismo (entendido como a democracia moderna) e liberdade de pensamento e consciência na homilia que deu início ao conclave que o elegeu.

O discurso do Papa é ecoado por algumas das suas mais beatas correias de transmissão, que com um ar de pseudo-superioridade moral rematam qualquer discussão para a qual não têm argumentos com a estafada e falsa afirmação de que «sim, tudo isso é muito bonito mas eu tenho valores, absolutos e universais, assentes na verdade revelada por nosso senhor. Tu não passas de uma relativista moral sem nada em que apoiares as tuas posições». Lembro-me por exemplo de um momento na Sic Notícias em que Maria José Nogueira Pinto disparou esta afirmação contra o seu oponente num debate sobre o aborto.

Na realidade, muitos dos apregoados «valores morais e verdades absolutas» da ICAR são-no muito recentemente. Algumas verdades absolutas do passado da ICAR foram desmistificadas (com grande oposição e muitas fogueiras inquisitoriais pelo meio) pela ciência, como o geocentrismo ou o criacionismo bíblico, mas também alguns «valores morais universais e absolutos» foram, com grande resistência, abandonados pela Igreja de Roma.

O anti-semitismo, a defesa da escravatura, a perseguição e assassínio de bruxos, hereges e apóstatas, a defesa do uso de tortura, a legitimidade das guerras «santas», a negação dos direitos dos homens, a defesa de regimes de «direito divino» e a condenação da democracia, a condenação da liberdade de expressão, a luta contra a emancipação da mulher, enfim, uma série de «erros» morais por alguns dos quais, difíceis de apagar dos livros de História, João Paulo II fez me(i)a-culpa.

Mas todas estas ex-verdades absolutas católicas só são reconhecidas hoje como abominações morais após muita resistência da Igreja, muitos discursos e encíclicas condenando os erros da modernidade, em tudo menos no assunto idênticas às prelecções contra a «ditadura do relativismo» do actual Papa. Que autoridade e credibilidade para falar em «valores morais universais e absolutos» tem uma Igreja que tantas vezes impôs «valores morais universais e absolutos» que hoje repudiamos? Que perseguiu, torturou e muitas vezes queimou como hereges os que se atreveram a questioná-los?

Que (i)moralidade existe então nas posições actuais da Igreja?

25 de Maio, 2006 Carlos Esperança

Causas da decadência ética em Portugal

A mãe que reza o rosário para que o filho passe no exame está a meter uma cunha à santa para que influencie o júri que o há-de julgar.

O construtor civil que manda um cabaz de Natal a casa do engenheiro da Câmara agradece o último andar do empreendimento que tem em construção.

O funcionário que promete ir a Fátima, se for promovido, quer apenas que Deus se lembre dele para a vaga que por mérito pertenceria a um colega.

O cordão de ouro que a minhota deixou no andor do Senhor dos Passos para que o seu homem deixasse a galdéria que o transtornou e voltasse para ela, sabe bem que sem a renúncia ao ouro o Senhor não lhe levaria de volta o bandalho do marido.

Sempre que há promessas para obter do santo especializado em certo tipo de subornos, um qualquer benefício, é a confissão do carácter venal da Providência. É o cabrito que se manda ao chefe na véspera das actualizações salariais.

Ao santo pede-se que interceda junto de Deus para fazer ao mendicante o que não faz a outros. Ao chefe solicita-se que trame o parceiro em benefício próprio.

Portugal é um país venal, de pequenas e vis corrupções, país feito à imagem da religião que o marcou, uma espécie de ferro que indica a ganadaria e o distribui os portugueses por paróquias e dioceses como animais da respectiva quinta.

Mas que pode esperar-se da Igreja do Papa JP2 que acreditou que a Virgem lhe dirigiu a bala por sítios não vitais e o poupou a ele mas não nos poupou dele a nós?

A mentalidade beata cria pessoas que Vêem o empenho, o suborno e o compadrio como virtudes canónicas, que fazem na vida o que lhes ensinaram a fazer com Deus.

Felizmente ainda há gente séria. O mesmo não se pode dizer da fauna mística que povoa o Céu, um grupo de agiotas onde se chega através de agentes, à custa de missas, terços e oferendas e da renúncia aos prazeres da vida.

25 de Maio, 2006 Ricardo Alves

O pensamento de Josemaría Escrivá (2): obediência

(continuação)

Como foi explicado no artigo anterior, o método Escrivá de sujeição do indivíduo funciona entre dois pólos: humilhação e obediência. A humilhação tem a finalidade de abater a vontade do indivíduo e de prepará-lo para obedecer. E a enfase na obediência nas palavras de Escrivá é tão chocante quanto a insistência na procura da dor e da humilhação.

  • «Obedecer… – caminho seguro. Obedecer cegamente ao superior… – caminho de santidade. (…)» (941) «Obedecei, como nas mãos do artista obedece um instrumento – que não pára a considerar porque faz isto ou aquilo, certos de que nunca vos mandarão fazer nada que não seja bom e para toda a glória de Deus.» (617)

Este dever de obediência, que teoricamente é devido a um «Deus» que não dá ordens porque não existe, é transferido para o «director espiritual», que é um personagem importantíssimo no sistema de controlo do Opus Dei.

  • «Director. – Precisas dele. – Para te entregares, para te dares…, obedecendo. – E Director que conheça o teu apostolado, que saiba o que Deus quer;» (62)

O «director espiritual» funciona como figura parental de substituição e como «representante de Deus». A sua autoridade é portanto enorme, e é reforçada pela devassa sobre a vida privada praticada através da confissão.

Como é evidente, ao castrar os afectos terrenos (os únicos reais), a recompensa que o Opus Dei oferece em troca encontra-se noutro mundo, ilusório.

  • «Que nenhum afecto te prenda à Terra, além do desejo diviníssimo de dar glória a Cristo e, por Ele e com Ele e n’Ele, ao Pai e ao Espirito Santo.» (786)

Mas o «director espiritual» não é uma ilusão, é bem real, e Escrivá cuidou até de protegê-lo da crítica.

  • «(…) E nunca o contradigas diante dos que lhe estão sujeitos, mesmo que não tenha razão.» (954)

Aliás, nunca se pode sublinhar demais que o pensamento de Escrivá é o oposto exacto do ideal iluminista de pensamento crítico e de liberdade individual. Escrivá encontra-se do lado daqueles que crêem que existem assuntos acima da crítica (a sexualidade de «Cristo», os cartunes do profeta) e que a autonomia pessoal é um perigo.

  • «É má disposição ouvir as palavras de Deus com espírito crítico.» (945) «No Apostolado, estás para te submeteres, para te aniquilares; não para impor o teu critério pessoal.» (936)

Tudo o que temos construído nos últimos 200 anos assenta na capacidade de cada indivíduo usar o seu próprio juízo e ter liberdade de escolha. Escrivá defende o oposto de tudo isto, e a sua organização não apenas pratica essa cultura internamente como a tenta difundir na sociedade. Note-se que o Opus Dei aspira a formar «chefes» (empresários, professores universitários, políticos), que coloquem as suas actividades profissionais ao serviço da causa.

  • «Aburguesar-te? Tu… da multidão?! Mas, se tu nasceste para chefe! Entre nós não há lugar para os tíbios. Humilha-te, e Cristo voltará a inflamar-te com fogo de Amor.» (16) «Dá um motivo sobrenatural à tua actividade profissional de cada dia, e terás santificado o trabalho.» (359)

O risco de que haja desvios do «Caminho» é constante. E por isso Escrivá insiste bastante em que há um único caminho, e que não se deve resistir a obedecer.

  • «Por essa demora, por essa passividade, por essa tua resistência em obedecer, como se ressente o apostolado e como se alegra o inimigo!» (616) «Que bem entendeste a obediência quanto me escrevias: “Obedecer sempre é ser mártir sem morrer”!» (622) «Se a obediência não te dá paz, é que és soberbo.» (620)

A obsessão de que existe um único caminho é fundamental para manter a ovelha no rebanho, e necessita de uma castração contínua, de uma renúncia a tudo o que não é útil para uma finalidade pretensamente sobrenatural.

  • «Tudo o que não te leva a Deus é um estorvo. Arranca-o e atira-o para longe.» (189)

O pensamento de Josemaría Escrivá é genuinamente católico. A mesma procura do sofrimento contra o prazer, a mesma defesa da humilhação contra a dignidade e a mesma imposição da obediência contra a liberdade podem ser encontradas nas encíclicas papais e nas práticas populares, por exemplo em Fátima. Mas o pensamento de Escrivá é o catolicismo exacerbado, exponenciado. E o Opus Dei é uma «seita» no mesmo sentido em que o são a Igreja da Cientologia ou o Templo do Sol, porque a vida dos indivíduos é totalmente colocada ao serviço da organização, com a cenoura enganosa do «sobrenatural» e com o chicote bem real das privações sensoriais.

Repito, como já o fiz dezenas de vezes, que as pessoas devem ser livres de aderir ao Opus Dei. No entanto, os pais católicos têm o direito de saber qual é o tipo de «espiritualidade» que se pratica numa organização para a qual os seus filhos adolescentes podem ser recrutados a partir do colégio privado ou da paróquia. E a sociedade tem o direito de se defender denunciando e criticando. Porque não há democracia sem democratas, nem a liberdade pode durar muito se grande parte dos cidadãos obedecem a uma organização autoritária e totalitária.

25 de Maio, 2006 Palmira Silva

Código da Vinci: Igreja católica contra-ataca

Na Europa e em locais onde a laicidade do estado impede que a Igreja tenha sequer ilusões sobre o sucesso da sua pretensão de censurar o Código da Vinci, esta pretende uma indiferença (mal conseguida) e opta por supostamente desvalorizar «o fenómeno ‘O código Da Vinci’».

Apenas nos locais onde a conjuntura político-religiosa o permite, a verdadeira posição dos responsáveis católicos face ao fenómeno da Vinci é revelada. Já aqui indicámos o desvario católico em relação ao filme na Índia, em tudo análogo ao desvario muçulmano na guerra dos cartoons, agora actualizamos a informação com mais locais onde o poder político da Igreja de Roma impôs a proibição do filme.

Hoje foi noticiado que o presidente do Sri Lanka, Mahinda Rajapakse, ordenou à Comissão Nacional de Espectáculos Públicos (PPB) que proíbisse a estreia do filme nos cinemas do país.

Segundo o jornal local «The Daily News», a decisão do presidente cingalês atende a um pedido da Conferência Episcopal do Sri Lanka. Os dignitários católicos neste país consideraram o filme «produto de uma mente totalmente pervertida» e «uma apresentação odiosa, falsa, injusta e irreverente de Jesus Cristo e da Igreja Católica».

De igual forma, o filme foi banido na Samoa, o arquipélago considerado o «cinturão biblíco» do Pacífico, por pedido do arcebispo local, Alapati Mataeliga, e restantes dignitários integrantes do Conselho de Igrejas da Samoa.

Mataeliga afirma que o filme iria afectar as crenças dos jovens cuja fé não fosse forte, medo partilhado pelos representantes do Vaticano na vizinha Fiji onde a organização «Catholic League For Religious and Civil Rights Movement» pediu a proibição do filme.

«O filme destrói o cerne da crença cristã e o Conselho de Censura, dando luz verde à sua exibição pública, confirma a sua insensibilidade à nossa cultura».

24 de Maio, 2006 Ricardo Alves

O pensamento de Josemaría Escrivá (1): humilhação

A principal obra de Josemaría Escrivá, o fundador do Opus Dei, chama-se Caminho e consiste em 999 «considerações espirituais». É uma leitura imprescindível para quem queira compreender a autêntica «lavagem ao cérebro» a que esta organização submete os seus membros.

Os temas recorrentes do livro (para além do apelo à oração e outras trivialidades cristãs) são a humilhação e a obediência. A intenção, como se compreende pela leitura do livro e pelas descrições conhecidas do funcionamento interno da organização, é a mesma de qualquer outra seita em que se submete o indivíduo para melhor o utilizar: destruir tudo o que estrutura a personalidade do sujeito, nomeadamente o seu orgulho e os seus instintos, fazendo dessa terraplanagem da personalidade uma virtude, e recompensando-a com a progressão dentro da organização. As citações seguintes, todas retiradas do livro Caminho, ilustram a glorificação da humilhação segundo Josemaría Escrivá.

  • «- Nega-te a ti mesmo. – É tão belo ser vítima.» (175) «Quando te vires como és, há-de parecer-te natural que te desprezem.» (593) «Não te esqueças de que és… o depósito do lixo. (…) Humilha-te; não sabes que és o caixote do lixo?» (592) «Não és humilde quando te humilhas, mas quando te humilham e o aceitas por Cristo.» (594) «Mortificação interior. – Não acredito na tua mortificação interior, se vejo que desprezas, que não praticas a mortificação dos sentidos.» (181) «Onde não há mortificação, não há virtude.» (180)

Escrivá encoraja os seus seguidores não apenas a humilhar-se ou a fazer humilhar-se por outros (convido o leitor a imaginar a cena…), mas convence-os também a procurar activamente a dor moral e até física que, numa inversão de valores típica do pensamento católico, considera «bendita».

  • «Bendita seja a dor. Amada seja a dor. Santificada seja a dor… Glorificada seja a dor!» (208) «Se sabes que essas dores – físicas ou morais – são purificação e merecimento, bendi-las.» (219) «Não esqueças que a Dor é a pedra de toque do Amor.» (439)

Escrivá encoraja ainda os seus adeptos a reprimirem ferozmente os instintos mais naturais de qualquer animal (comer e procriar), elevando sempre a repressão destes instintos a virtude. É evidente que quer os prazeres da cama quer os prazeres da mesa podem desviar as suas ovelhinhas do rebanho, e «perdê-las» da seita…

  • «Quando te decidires com firmeza a ter vida limpa, a castidade não será para ti um fardo: será coroa triunfal.» (123) «O matrimónio é para os soldados e não para o estado-maior de Cristo. – Ao passo que comer é uma exigência de cada indivíduo, procriar é apenas uma exigência da espécie, podendo delas desinteressar-se as pessoas individualmente. (…)» (28) «A gula é um vício feio. (…)» (679) «À mesa, não fales de comida; isso é uma grosseria, imprópria de ti. (…)» (680) «No dia em que te levantares da mesa sem teres feito uma pequena mortificação, comeste como um pagão.» (681)

Portanto, qualquer membro do Opus Dei se deve privar, em todas as refeições, de enchidos ou de açúcar no café, de água ou de vinho, de sobremesa ou de prato principal, como forma de «mortificação». Assim se assegura que o membro não se distraia perante uma mesa cheia de bons petiscos e bons vinhos. (Felizmente existe o contrário desta vida castradora: as delícias do hedonismo…)

O corpo, porque pode levar o jovem a desviar-se do caminho, é visto, obviamente, como um inimigo a tratar com violência, e a auto-tortura é inevitavelmente considerada uma virtude.

  • «Se sabes que o teu corpo é teu inimigo, e inimigo da glória de Deus, por sê-lo da tua santificação, porque o tratas com tanta brandura?» (227)

Convencido o jovem de que é «lixo», destruído o seu amor-próprio e controlados os seus instintos mais naturais, o «lixo» pode ser reciclado. Como? Obedecendo…

  • «Padre: como pode suportar todo este lixo? – disseste-me, depois de uma confissão contrita. Calei-me, pensando que, se a tua humildade te leva a sentires-te isso – lixo, um montão de lixo – ainda poderemos fazer algo de grande da tua miséria.» (605)

É neste ponto, quando a personalidade do jovem está submetida, que Escrivá lhe recomenda que se entregue aos pés de um «director espiritual» que o dirija, pense por ele, escolha livros por ele, e possivelmente lhe dê ordens não apenas «espirituais»…

(continua)