Parábolas simples, distorções complexas
Os textos do evangelho são simples. Jesus falou aos discípulos numa linguagem simples, precisamente para que a sua palavra estivesse ao alcance de todos.
Mas a mensagem evangélica, se bem que fosse o ideal para se espalhar entre os escravos e oprimidos do faustoso império romano, não era muito adequada para uma instituição poderosa com relações mais ou menos promíscuas com um poder político de uma potência económica dominante.
É que a mensagem evangélica, entre outras coisas, é socialista. Diz claramente que os ricos não chegarão ao céu – que estes não se devem ficar pela caridade, mas sim dar tudo o que têm aos pobres.
A Igreja Católica Apostólica Romana (ICAR) encontrou uma forma engenhosa de conciliar a mensagem evangélica com as suas diversas directrizes que ao longo da história têm estado, segundo a própria assume, em directa contradição com o evangelho (Cruzadas, Inquisição, etc..).
Tentou dificultar o acesso generalizado ao evangelho, e criou um mito segundo o qual a interpretação do evangelho era uma verdadeira ciência, tão profunda que estaria apenas ao alcance dos seus teólogos, que a ela dedicam toda uma vida. Dessa forma, tornou-se fácil conseguir defender tudo o que quisesse: desde a condenação de Galileu, até à santificação de S. Escrivá.
Foram os protestantes quem primeiro começou a imprimir e a traduzir as Bíblias, e a primeira reacção da ICAR foi de oposição. E hoje os evangélicos e protestantes conhecem muito melhor a Bíblia que os católicos. É toda uma tradição de a esconder dos crentes…
O que eu acho curioso é que quando qualquer um pode identificar os erros dos inspirados teólogos católicos ao longo da história (em cuja humanidade a ICAR não deixa de se justificar) ninguém pode pôr em causa os teólogos actuais.
Se alguém com uma tese de mestrado associada ao estudo da história e cultura da Estremadura em finais do sec XIX, e uma tese de doutoramento acerca d’ «A problemática do “realismo niilista” na literatura portuguesa» me vier dizer que eu interpreto Os Maias demasiado literalmente, e que a Maria Eduarda é o Pedro disfarçado, que voltou da 9ª dimensão para tentar matar Afonso, vou precisar de muito bons argumentos para aceitar tamanho dislate… Não basta falar na enorme importância de conhecer o contexto sócio-cultural d’Os Maias para os poder interpretar convenientemente.
Se acredita que o conhecimento profundo do contexto pode justificar tal interpretação, então ainda bem que o conhece, pois pode expor com clareza os pontos em que baseia a sua interpretação.
Da mesma forma, não aceito de ânimo leve que o Jesus dos evangelhos não deixasse de condenar a riqueza. Leiam estas passagens:
«Quem tem duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma, e mesmo quem tem mantimentos faça o mesmo» Lc 3:11
«Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuires, dá o dinheiro aos pobres» Mt 19:21
«Em verdade vos digo que dificilmente entrará um rico no reino dos céus. Repito-vos: é mais fácil passar um camelo na ponta de uma agulha que um rico entrar no reino dos céus» Mt 19:23,24
«Mas ai de vós ricos que recebestes a vossa consolação» Lc 6:24
Como ateu, não reconheço qualquer valor de ciência económica ao que está escrito nestes fragmentos do folclore mitológico dessa zona conflituosa onde hoje estão a Palestina e Israel. Mas quem acredita que os evangelhos são a palavra de Jesus tem de entender que a doutrina da ICAR continua, na boa tradição do seu passado, a ser incoerente com os evangelhos que reconheceu.
Se a ICAR não reconhece como evidência que, à luz do evangelho que declara sagrado, ser rico é pecaminoso, que credibilidade tem para quaisquer outras interpretações que questione da parte daqueles que fazem uma leitura crítica?