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Mês: Abril 2006

23 de Abril, 2006 Carlos Esperança

Ratzinger – 1 ano de conspiração

«B16: balanço de um ano na luta católica contra a modernidade» é um dos melhores textos sobre a actuação do último déspota de tiara. Ricardo Alves escalpeliza com precisão cirúrgica os 12 meses de despotismo, protagonizados pelo sucessor de JP2.

O Sapatinhos Vermelhos, que gosta de encobrir as orelhas dentro de um confortável camauro, tem a mesma sede de poder do seu antecessor, sem o ridículo da superstição nem a mais leve suspeita de acreditar no Deus que lhe alimenta o fausto.

A religião foi sempre uma forma de repressão, instrumento de poder absoluto, a Espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça dos livres-pensadores. O peso das religiões varia na razão directa do poder do clero e na inversa dos direitos dos cidadãos.

A ICAR tem atrás de si um passado pouco recomendável, que se esforça por minimizar, mas não deixa de reivindicar a influência passada quando pretende impor, em nome da tradição, a prepotência e os privilégios.

Apesar da desolação do movimento «Nós Somos Igreja», uma associação que pretende reconciliar o catolicismo com a modernidade e os Direitos Humanos, nomeadamente a igualdade entre os sexos, ninguém esperava deste inquisidor a mais leve hesitação no regresso às práticas mais retrógradas da ICAR.

O que surpreende muitos observadores é o silêncio das vozes moderadas, dos núcleos democráticos, dos crentes não fanatizados. Creio que há uma única explicação, essas vozes há muito trocaram Deus pela democracia, o Papa pela sua consciência e a hóstia pela liberdade.

Hoje, enquanto as igrejas ficam vazias e os seminários desertos, Ratzinger procura no modelo islâmico o paradigma da sua própria Igreja: o proselitismo demente, o martírio de crentes fanatizados e um Paraíso à medida das aspirações mais doentias, com casas de alterne cheias de virgens à espera das santas bestas que antecipam a viagem.

Por ora, enquanto perde crentes, vai conquistando poder. Ameaça governos, infiltra aparelhos de Estado e influencia partidos políticos. O sonho do autocrata é a teocracia católica.

O Papa não ignora que a democracia, a separação do Estado e da Igreja, a emancipação da mulher e a Declaração Universal dos Direitos Humanos são o triunfo do laicismo contra a tirania do poder eclesiástico.

É contra este estado de coisas que o pastor alemão espuma de raiva no antro do Vaticano.

23 de Abril, 2006 Palmira Silva

Uma serpente com pernas


Os últimos tempos têm sido fertéis na descoberta de fósseis de transição entre espécies, evidências indiscutíveis da evolução que os fundamentalistas cristãos negam acefalamente em favor da sua absurda mitologia.

Na última Nature (link para o resumo do artigo, o acesso à versão completa é reservado a assinantes) foi apresentado um trabalho de uma equipa sul-americana que pode pôr fim a uma acesa controvérsia sobre a evolução das serpentes, de animais marinhos ou terrestres. O zoólogo Hussam Zaher, cientista do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, em colaboração com o palentólogo Sebastián Apesteguía, do Museu Argentino de Ciências Naturais Bernardino Rivadavia, apresentam os detalhes anatómicos dos fósseis da mais antiga espécie de cobra já encontrada, a Najash rionegrina, uma serpente que viveu no Cretáceo Superior (há 90 milhões de anos) e que apresenta patas traseiras funcionais, completas com femora, fibulae, e tibiae, e pélvis.

«A gente espera que esse trabalho provoque uma certa revoluçãozinha, trazendo uma baforada de ar fresco sobre o debate da origem das serpentes e rejeitando a hipótese da origem marinha» afirmou Zaher.

Os criacionistas do site humorístico «Respostas no Genésis», AiG, que ainda têm atravessada uma espinha do Tikataalik rosae, continuam a debitar prosas hilariantes no seu afã de refutarem as evidências experimentais da evolução. Em relação à Najash rionegrina acho especialmente divertido o parágrafo que reza:

«A AiG é cautelosa acerca da comparação desta serpente fóssil com a serpente de Génesis 3:14 [a tal que provocou a dentadinha no proíbido fruto do conhecimento]. Em primeiro lugar, não sabemos muito acerca da anatomia dessa serpente. Mas podemos oferecer uma sugestão razoável de que seria capaz de andar ou rastejar; depois da serpente ser amaldiçoada foi pronunciado que «no teu ventre rastejarás» sugerindo que antes da queda se movia usando apêndices. De igual forma este fóssil resulta provavelmente do Dilúvio de Noé, um acontecimento que teve lugar 1500 anos depois de a serpente ser amaldicoada a rastejar sobre o ventre».

Ou seja, os criacionistas cristãos advertem os crentes para não confundirem esta serpente que tem «só» 4500 anos com a serpente andante do pecado original porque esta última viveu… há 6000 anos! Santa ignorância! Em relação aos argumentos imbecis, incoerentes e mutuamente contraditórios que usam para afirmarem que a Najash não é uma evidência para a evolução, parecem os argumentos invocados para chamar à banana «o pesadelo dos ateístas» (vale a pena seguir o link e ver em vídeo, ao vivo e a cores, os delírios criacionistas cristãos no seu esplendor, especialmente do tempo 3:30 ao 4:36. Quem tiver paciência pode assistir a 28 minutos de puro disparate, ou antes, pura «lógica» cristã, tipo provar que não existe urânio em Portugal porque por (re)definição o urânio é um metal que não existe em Portugal).

Tanto quanto eu saiba o Discovery Institute, que recentemente se insurgiu por ser correctamente descrito como um «think tank conservador cristão» num artigo de um jornal de estudantes na Universidade de Baylor, ainda não produziu nenhuma falácia IDiota sobre a serpente com pernas.

23 de Abril, 2006 Palmira Silva

A teoria da evolução é uma invenção demoníaca

Para a semana John Mackay, um criacionista australiano, inicia uma tournée de dois meses pelos redutos fundamentalistas cristãos britânicos, sossegando crentes da inenarrância da Bíblia, mais concretamente do Genesis, com prelecções imbecis sobre a real idade da Terra (alguns milhares de anos e não milhões) e dissertações surreais sobre supostas provas «científicas» que suportam o criacionismo, o grande dilúvio e a arca de Noé e refutam a evolução.

Mackay é um firme crente e fervoroso disseminador da teoria que a «crença» na evolução foi introduzida por Satanás, uma perversão que infiltrou as sociedades ocidentais e que os missionários cristãos têm como obrigação impedir de se espalhar pelo Terceiro Mundo:

«Satanás só recentemente iniciou a introdução da evolução no Terceiro Mundo com o objectivo de destruir o esforço missionário. Armemo-nos primeiro com a nossa armadura espiritual e providenciemos aos missionários do Terceiro Mundo e a outros as armas para levar a guerra contra as subtilezas de Satanás que procura minar a confiança na palavra de Deus e no trabalho missionário»

A tournée (humorística, não fora ser tão preocupante) inclui um retiro de uma semana com 40 famílias, a Family Creation Conference, em que são abordadas questões tão importantes como: antes do pecado original as abelhas davam ferroadas? Ou havia migrações dos pássaros? E que comiam os grandes tubarões brancos?

O problema com o criacionismo em Inglaterra reside no facto de ser ensinado em muitas escolas evangélicas e na sua versão mais soft, o neo-criacionismo ou IDiotia, sob os auspícios da ministra da Educação Opus Dei, Ruth Kelly, do governo de Tony Blair, ir ser apresentado a todos os estudantes britânicos. Como afirma Steve Jones, um especialista em genética, sugerir que o criacionismo em qualquer forma seja ensinado lado a lado com a evolução é equivalente a «iniciar uma aula de genética discutindo a teoria de que os bébés são trazidos por cegonhas». A Royal Society aliás expressou recentemente a sua preocupação com os ataques cerrados à ciência e à evolução por parte dos fundamentalistas cristãos e as suas manobras para introduzir nos currricula de ciências a teoria cientificamente absurda de que Deus criou mundo.

Steve Jones citou Darwin «a ignorância gera confiança mais frequentemente que o conhecimento; são aqueles que sabem pouco e não aqueles que sabem muito que asseguram que este ou aquele problema nunca serão resolvidos pela ciência» para concluir «A ciência tem provas sem pretender certezas, os criacionistas – têm certezas sem provas».

De facto, o problema das religiões é em minha opinião exactamente esse: todas as religiões são detentoras da verdade absoluta «revelada» que pela sua própria natureza não pode ser alvo de dúvidas, discussão ou refutação. Se um dos aspectos desta fé, que se traduz numa segurança confortável e confortante, é posto em causa ou dá origem a dúvidas então todo o sistema pode colapsar. Por isso o pior inimigo das religiões é o conhecimento, nomeadamente o científico.

Por outro lado este fundamentalismo, esta fé no absolutismo das verdades reveladas, é um catalizador para violência. Se a segurança de alguém está ligada a um sistema de crenças, a uma religião que se afirma a detentora da verdade absoluta revelada por Deus, que recompensará no «Além» os seus seguidores e que afirma que quem refuta essas verdades são aliados do demo, então é perfeitamente legítimo destruir os demoníacos não crentes na defesa e propagação dessas verdades absolutas!

22 de Abril, 2006 Palmira Silva

Fundamentalismo islâmico no Irão

Durante a presidência de Mohammed Khatami os símbolos mais evidentes da recuperação de liberdades individuais, cruelmente suprimidas durante as décadas de governo dos ayatollahs, expressava-se na forma como as mulheres, o alvo favorito de repressão por parte de qualquer fundamentalismo religioso, torneavam os estritos ditames de vestuário.

Durante a campanha eleitoral que culminou com a sua controversa eleição, Ahmadinejad assegurou que o Irão tinha problemas mais urgentes que suprimir estas liberdades individuais.

No entanto, quiçá como retaliação às recentes manifestações populares de repúdio ao regime teocrático e porque, como denunciou Nader Shariatmaderi, um aliado político de Ahmadinejad, estas modas são «prejudiciais aos princípios revolucionários e islâmicos» e porque «Na situação internacional presente nos temos de unir em torno de princípios conhecidos» uma série de medidas de repressão social e política de linha dura foram anunciadas há uns dias.

Assim , a polícia de Teerão tem ordens para prender as mulheres que se vistam de forma não conforme aos ditames do governo teocrático. As «transgressoras» das normas «morais» islâmicas seram punidas com multas e penas de prisão até dois meses. A polícia deterá igualmente homens com cortes de cabelo ocidentais e pessoas que passeiem cães, uma actividade há muito merecedora de ululações de blasfémia anti-islâmica pelos piedosos mullahs.

De igual forma os milhões de pessoas que dispõem de antenas satélite, uma abominação que lhes permite terem fontes isentas de informação (e informação factual não digerida pelos dignitários religiosos é algo que todas as religiões execram, não apenas a islâmica) verão as multas por tal posse ilegal subirem de cerca de 90 para cerca de 4500 euros.

Face à crescente revolta popular contra a anacrónica imposição das barbaridades islâmicas, expressas recentemente na adesão massiva a rituais persas tradicionais, banidos como pagãos pelos fundamentalistas islâmicos, como o Tchahr Shanbe Souri (festa do fogo) e o Sizdeh-Bedar, o fim de ano persa, diria que as últimas medidas repressivas servirão apenas para alienar ainda mais os iranianos contra o regime teocrata.

21 de Abril, 2006 Ricardo Alves

Os «civilizacionistas»

Existe, visível em artigos de jornais e em alguns recantos da blogo-esfera, uma corrente política que expressa um repúdio veemente pelo clericalismo islâmico e pelos seus crimes, mas que se esquece de condenar os clericalismos católico ou judaico.

Chamemos-lhes «civilizacionistas».

São geralmente os mesmos que defendem que a laicidade evoluiu a partir do cristianismo (um erro clamoroso…) e que jamais poderá florescer em países que tiveram ou têm outras religiões maioritárias. São os mesmos que se entusiasmam com as «guerras de civilizações» e que disfarçam (nem sempre com sucesso…) um ódio surdo aos imigrantes. Que condenam a excisão e a circuncisão quando feitas num contexto islâmico, mas desculpam a circuncisão quando feita entre judeus. No fundo, defendem que libertarmo-nos da cultura de origem é anátema, e que devemos tratar os indivíduos e os países em função da sua religião suposta.

Mas enganam-se. O catolicismo ou o judaísmo estão mais próximos do Islão do que da cultura iluminista. Foi o século das luzes, de Voltaire e Thomas Paine, que lançou as sementes da descrença e da laicidade, que geraram as democracias laicas onde vivemos. Contra as igrejas e contra o cristianismo, e não por influência destes. Convém não esquecê-lo.

20 de Abril, 2006 Ricardo Alves

B16: balanço de um ano na luta católica contra a modernidade

Qual é o balanço de um ano de reinado de Bento 16, Papa dos católicos e monarca absoluto da última ditadura da Europa ocidental?

Para este ateu que acompanha, com justificada atenção, as actividades da maior organização totalitária e obscurantista do mundo, o primeiro ano de B16 evidenciou sobretudo um fechamento da ICAR em posições nitidamente mais clericais e mais obscurantistas do que as do seu antecessor. Se JP2 era um inimigo da liberdade mas apenas um conservador (com uma boa gestão da sua imagem mediática), B16 pretende ser um ideólogo reacionário (mas com uma imagem pública tão caricata que já foi «baptizado» com alcunhas como «Pastor Alemão» ou «Sapatinhos Vermelhos»…).

Politicamente, Ratzinger conseguiu acalmar os católicos de esquerda ao receber Hans Küng, embora simultaneamente desse passos muito mais significativos na direcção que lhe interessa, abrindo a porta aos católicos fascistas da Fraternidade Sacerdotal São Pio X (a franja lunática, lefebvrista, do catolicismo, que é fanaticamente anti-semita, teocrática sem disfarces e abertamente defensora da Inquisição). Curiosamente, Ratzinger fora obrigado a promover a exclusão destes integristas (depreende-se agora que contra a sua própria vontade) quando era líder da Congregação para a Doutrina da Fé.

No geral, B-16 tem-se mostrado um continuador do combate de JP2 contra as liberdades. Beneficia de uma comunicação social condicionada pelo religiosamente correcto católico, de modo particularmente flagrante em Portugal, onde o repúdio claramente expresso de Ratzinger e de Policarpo pela liberdade de expressão não foi apontado por quase ninguém. E no entanto, esse foi um dos momentos em que ficou evidente que, ao contrário de uma ideia falsa que Ratzinger tenta fazer passar, os valores da ICAR de B16 estão mais próximos daqueles do Islão fundamentalista do que dos valores laicos que fundam as democracias europeias…

Na frente do combate contra a ciência, Ratzinger deu uma ajuda preciosa aos cristãos literalistas dos EUA ao aceitar o «Desenho Inteligente». Deve notar-se que, com Wojtyla, a ICAR tinha uma posição (prudente) que consistia ou em aceitar a teoria da selecção para todos os animais à excepção do animal humano, ou em até aceitar a teoria da evolução para a nossa espécie, mas «suplementada» com uma «inoculação da alma» em estágio evolutivo e momento histórico incertos. B16 começou por ser pressionado por um seu amigo (o Cardeal Schonborn) para que promovesse o obscurantismo criacionista. Após ceder a essa pressão, conseguiu ocultar mediaticamente a sua defesa do criacionismo ao permitir a um académico próximo do Vaticano um artigo do Osservatore Romano. Mas quem manda no Vaticano é o Papa, não um académico qualquer…

Em Janeiro, Ratzinger publicou a sua primeira encíclica, essencialmente uma crítica aos «católicos progressistas» que praticam a caridade motivados ideologicamente, mas que contém também uma condenação anacrónica do marxismo e umas banalidades sobre o «amor» (um sentimento que a ICAR começou a destacar apenas no século 20, numa das suas poucas adaptações inteligentes à modernidade).

Há um ano atrás, especulei sobre se alguns católicos sairiam da ICAR. Os exemplos parecem ser poucos, mas Ratzinger pode multiplicá-los. B16 fará com certeza alguns ateus, mas o mais importante é que gera um natural (e saudável) anticlericalismo. Eu, que sou ateu e anticlerical, nada tenho contra a fé quando genuinamente espiritual e portanto civicamente discreta. Mas combato o clericalismo pela ameaça que representa para as nossas liberdades e para o progresso da ciência. Ratzinger é a imagem quase perfeita do avesso da modernidade.

Adenda: o comunicado de imprensa do Vaticano sobre a crise dos cartunes (onde se diz que a publicação das caricaturas e a violência que se lhe seguiu são «igualmente deploráveis») e o discurso de Ratzinger perante os deputados do Partido Popular Europeu (onde B16 dá orientação de voto sobre questões legislativas em discussão na Europa) são dois documentos para ler e guardar.

20 de Abril, 2006 Ricardo Alves

95 anos de Separação da Igreja do Estado

O Governo Provisório da República faz saber que em nome da República se decretou, para valer como lei, o seguinte:

Capítulo I

Da liberdade de consciência e de cultos

Artigo 1º

A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda aos estrangeiros que habitarem o território português.

Artigo 2º

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português.

Artigo 3º

Dentro do território da República ninguém pode ser perseguido por motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa.

Artigo 4º

A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e por isso, a partir do dia 1 de Julho próximo futuro, serão suprimidas nos orçamentos do estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.

(…)

(Assinalam-se hoje 95 anos sobre a Lei da Separação da Igreja do Estado; agradeço ao Cozido à Portuguesa ter-mo recordado.)
19 de Abril, 2006 lrodrigues

O Pogrom de Lisboa

Foi exactamente há 500 anos.

O dia 19 de Abril de 1506 amanheceu pacífico e soalheiro.
Na igreja de São Domingos, em Lisboa, a missa dessa manhã decorria provavelmente com a calma modorra do costume.
Mas, de súbito, a placidez da missa foi interrompida por um estranho fenómeno que se oferecia perante os olhos de todos os fiéis: a imagem do Cristo pregado na cruz que se encontrava sobre o altar estava iluminada por uma estranha e misteriosa luz.
A superstição e a exacerbada crença dos fiéis imediatamente os fez acreditar estar na presença de um milagre: a imagem do Cristo parecia até que irradiava luz própria.
Todos se ajoelharam em fervorosas preces, em êxtase perante aquele milagre que se lhes oferecia, ali mesmo, à frente dos seus olhos.
Mas há sempre um desmancha-prazeres em histórias como estas: um dos fiéis mais afoitos logo se apressou a explicar aos seus colegas de missa que a luz nada tinha de misteriosa, pois provinha simplesmente do reflexo de uma candeia de azeite que estava ali próxima.
E pronto! Caiu o Carmo e a Trindade!
A primeira coisa que alguém descobriu foi que o chico-esperto era um cristão novo, um judeu convertido à pressa mas, pelos vistos, demasiado depressa.
Foi o suficiente para logo dali o arrastarem pelos cabelos para o adro da igreja, onde foi imediatamente chacinado pela multidão dos fervorosos tementes a Deus, e o seu corpo queimado no local.
O êxtase místico da multidão logo se propagou a toda a cidade.
Lisboa parecia ter ela própria enlouquecido.
Respeitáveis representantes do clero católico saíram dos seus pacatos refúgios de oração e percorriam as ruas de um lado para o outro empunhando crucifixos e gritando: «Heresia! Heresia!».
A multidão depressa foi engrossando e, ajudada até por marinheiros holandeses e dinamarqueses que se encontravam no porto, iniciou uma gigantesca rusga por toda a cidade.
Para evitar o caos e a anarquia, sempre más conselheiras, os padres e frades dominicanos tomaram a piedosa responsabilidade de organizar convenientemente o tumulto: judeu ou cristão-novo que era identificado ou apanhado, era imediatamente preso e levado para o Rossio e ali era queimado em gigantescas fogueiras que os escravos municiavam ininterruptamente de lenha.
Os judeus e os cristãos novos, homens e mulheres, que se refugiavam em casa eram arrancados à força dos seus esconderijos. Até as crianças de berço eram fendidas de alto a baixo ou esborrachadas de encontro às paredes.
Como mesmo nestas coisas da fé é sempre bom juntar o útil ao agradável, o misticismo assassino daqueles fervorosos e bons católicos não os impediu de pilhar as casas por onde passavam e de ajustar velhas contas com inimigos que muitas vezes nada tinham a ver com o judaísmo.
Mesmo os que se refugiavam nas igrejas e se agarravam desesperadamente às imagens dos santos eram levados e arrastados à força para o Rossio e queimados vivos.
A chacina durou dois dias e só terminou por puro cansaço da populaça.
Relatos da época falam no sangue que escorria pelas ruas abaixo no Bairro Alto ou na Mouraria.
Calculam os historiadores que nesta matança em nome dos mais sagrados princípios e da pureza do catolicismo morreram mais de 4.000 pessoas.
Tudo, claro, em nome dessa coisa extraordinária que algumas pessoas têm e que tanto se orgulham de ter, que se chama «Fé».
Tudo feito por bons católicos.
Tudo em nome de Deus.
Como não podia deixar de ser, adiro entusiasticamente ao extraordinário desafio lançado pelo Nuno Guerreiro:
Também eu irei hoje ao Rossio acender uma vela simbólica em memória destas vítimas do fanatismo religioso católico.

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

19 de Abril, 2006 Ricardo Alves

O pogrom de Lisboa segundo Damião de Góis

«…Nos dois derradeiros capítulos desta primeira parte, tratarei de um tumulto e levantamento que, a dezanove de Abril de 1506, Domingo de Pascoela, houve, em Lisboa, contra os Cristãos-novos.

No mosteiro de São Domingos existe uma capela, chamada de Jesus, e nela há um Crucifixo, em que foi então visto um sinal, a que deram foros de milagre, embora os que se encontravam na igreja julgassem o contrário. Destes, um Cristão-novo (julgou ver, somente), uma candeia acesa ao lado da imagem de Jesus. Ouvindo isto, alguns homens de baixa condição arrastaram-no pelos cabelos, para fora da igreja, e mataram-no e queimaram logo o corpo no Rossio.

Ao alvoroço acudiu muito povo a quem um frade dirigiu uma pregação incitando contra os Cristãos-novos, após o que saíram dois frades do mosteiro com um crucifixo nas mãos e gritando: “Heresia! Heresia!” Isto impressionou grande multidão de gente estrangeira, marinheiros de naus vindos da Holanda, Zelândia, Alemanha e outras paragens. Juntos mais de quinhentos, começaram a matar os Cristãos-novos que encontravam pelas ruas, e os corpos, mortos ou meio-vivos, queimavam-nos em fogueiras que acendiam na ribeira (do Tejo) e no Rossio. Na tarefa ajudavam-nos escravos e moços portugueses que, com grande diligência, acarretavam lenha e outros materiais para acender o fogo. E, nesse Domingo de Pascoela, mataram mais de quinhentas pessoas.

A esta turba de maus homens e de frades que, sem temor de Deus, andavam pelas ruas concitando o povo a tamanha crueldade, juntaram-se mais de mil homens (de Lisboa) da qualidade (social) dos (marinheiros estrangeiros), os quais, na Segunda-feira, continuaram esta maldade com maior crueza. E, por já nas ruas não acharem Cristãos-novos, foram assaltar as casas onde viviam e arrastavam-nos para as ruas, com os filhos, mulheres e filhas, e lançavam-nos de mistura, vivos e mortos, nas fogueiras, sem piedade. E era tamanha a crueldade que até executavam os meninos e (as próprias) crianças de berço, fendendo-os em pedaços ou esborrachando-os de arremesso contra as paredes. E não esqueciam de lhes saquear as casas e de roubar todo o ouro, prata e enxovais que achavam. E chegou-se a tal dissolução que (até) das (próprias) igrejas arrancavam homens, mulheres, moços e moças inocentes, despegando-os dos Sacrários, e das imagens de Nosso Senhor, de Nossa Senhora e de outros santos, a que o medo da morte os havia abraçado, e dali os arrancavam, matando-os e queimando-os fanaticamente sem temor de Deus.

Nesta (Segunda-feira), pereceram mais de mil almas, sem que, na cidade, alguém ousasse resistir, pois havia nela pouca gente visto que por causa da peste, estavam fora os mais honrados. E se os alcaides e outras justiças queriam acudir a tamanho mal, achavam tanta resistência que eram forçados a recolher-se para lhes não acontecer o mesmo que aos Cristãos-novos.

Havia, entre os portugueses encarniçados neste tão feio e inumano negócio, alguns que, pelo ódio e malquerença a Cristãos, para se vingarem deles, davam a entender aos estrangeiros que eram Cristãos-novos, e nas ruas ou em suas (próprias) casas os iam assaltar e os maltratavam, sem que se pudesse pôr cobro a semelhante desventura.

Na Terça-feira, estes danados homens prosseguiram em sua maldade, mas não tanto como nos dias anteriores; já não achavam quem matar, pois todos os Cristãos-novos, escapados desta fúria, foram postos a salvo por pessoas honradas e piedosas, (contudo) sem poderem evitar que perecessem mais de mil e novecentas criaturas.

Na tarde daquele dia, acudiram à cidade o Regedor Aires da Silva e o Governador Dom Álvaro de Castro, com a gente que puderam juntar, mas (tudo) já estava quase acabado. Deram a notícia a el-Rei, na vila de Avis, (o qual) logo enviou o Prior do Crato e Dom Diogo Lopo, Barão de Alvito, com poderes especiais para castigarem os culpados. Muitos deles foram presos e enforcados por justiça, principalmente os portugueses, porque os estrangeiros, com os roubos e despojo, acolheram-se às suas naus e seguiram nelas cada qual o seu destino. (Quanto) aos dois frades, que andaram com o Crucifixo pela cidade, tiraram-lhes as ordens e, por sentença, foram queimados

Damião de Góis, na «Crónica de D.Manuel I», capítulo CII da Parte I.

18 de Abril, 2006 Palmira Silva

Revista ligada à Opus Dei publica caricatura de Maomé

Dante Alighieri para Virgílio (apontando para o profeta cortado ao meio): «Aquele ali não é o Maomé?”
Virgílio. «Sim, e ele está dividido em dois porque causou a divisão da sociedade». «Aquele ali com as calças em baixo é a política italiana em relação ao Islão».

O periódico italiano «Studi Cattolici», muito próximo da Opus Dei, publicou no sábado esta caricatura de Maomé no Inferno. A publicação gerou ondas de protesto nos meios islâmicos.

Cesare Cavalleri, director da revista e membro da Opus Dei, afirmou «ter ficado surpreso» pela repercussão do desenho. «Se, ao contrário das minhas intenções e as do autor, alguém se sentiu ofendido nas suas crenças religiosas, peço perdão do coração».

Considerando que este cartoon era francamente mais… er… directo que aqueloutros na origem da recente guerra dos cartoons fico um pouco surpresa com a ingenuidade do piedoso Opus Dei.

Aguardo com um frémito de impaciência para ver se o nosso cavaleiro da pérola redonda se pronuncia sobre o ocorrido e se considera que foi igualmente obra de «fanáticos» laicos. Ou se mais algum escriba católico, daqueles que exigem «respeito» às crenças religiosas (católicas, claro), consegue com um qualquer golpe de rins assacar este cartoon a «provocações dos fundamentalistas laicos do Oeste» aqueles que cometem a heresia de defender «o humanismo laico, a democracia participativa, a cidadania vigilante, os direitos do homem»…