Civilizacionistas pseudo-laicos contra clericais
A emissão de ontem do programa popularmente conhecido como «Prós e Prós» foi menos desequilibrada do que eu esperava. Fátima Bonifácio e António Barreto (duas escolhas surpreendentes para representar a perspectiva laica…) estiveram razoavelmente bem, embora Bonifácio seja mais conservadora do que a generalidade dos laicistas quanto ao casamento entre homossexuais, e Barreto tenha evitado deliberadamente discutir a interrupção voluntária de gravidez. Quanto ao público, é francamente escandaloso que tenha sido escolhida «uma chusma de “Morangos com Açúcar”, a tresandar a colégio com nome de santo» para servir de claque ao Talibã das Neves, e que não tenham sido convidados ateus e agnósticos para o público, ao contrário do que acontecera em ocasiões anteriores.
Nestas condições, o cardeal Saraiva conseguiu difundir a mentira habitual segundo a qual o tratado constitucional europeu «ofendeu» de alguma forma os católicos por o Preâmbulo não conter uma referência ao cristianismo, sem que nenhum dos «laicos» lhe recordasse que a ICAR, ao garantir um direito de consulta institucional através do artigo I-52º, conseguiu uma vitória tal que em França os bispos até apelaram ao «sim» no referendo, e que em Portugal Policarpo se preparava para fazer o mesmo.
Saraiva foi também espalhando números fantasiosos sobre os muçulmanos residentes na Europa (os 35 milhões que referiu são um exagero enorme, mesmo contando com os habitantes de Istambul) e apelando implicitamente a uma «Cruzada» contra o Islão, a única religião que segundo os participantes do programa de ontem tem «fundamentalistas». Aliás, Bonifácio convergiu com Saraiva na preocupação quanto à destruição da «identidade cultural» europeia, o que é paradoxal quando se considera que Fátima Bonifácio foi impecável na defesa da liberdade individual como fundamento da nossa polis (e assim encostou César das Neves à parede de forma exemplar), liberdade individual essa que, cara senhora, acarreta o direito de abandonar a «identidade cultural» e de não ser oprimido por esta. Implica o direito de ter filhos quando se quer ou mesmo de não os ter, mas também pode resultar numa Europa que não seja branca nem cristã, o que não compreendo que a incomode se defende efectivamente a herança iluminista.
César das Neves atreveu-se a dizer que os conflitos religiosos em Portugal foram curtos, sem que ninguém lhe tivesse recordado que cristãos e muçulmanos estiveram em guerra no nosso território de 711 a 1249; que em 1496 os judeus foram convertidos à força e em 1506 massacrados no pogrom de Lisboa; que a Inquisição se estabeleceu em 1536 e durou até 1821; que em 1846 ainda se perseguiram protestantes na Madeira; e que as minorias religiosas só começaram a sair da clandestinidade em 1911, com a República.
Rendo no entanto a minha homenagem a César das Neves, que tentou explicar que a verdadeira clivagem se nota nas questões de família, e é entre laicistas e clericais (sendo estes muçulmanos ou católicos), ao contrário do que pensam Bonifácio e Barreto, que me pareceram excessivamente obcecados com a sua «guerra civilizacional». E quero destacar a intervenção de um jovem católico que se mostrou pronto para ser terrorista (e consequentemente matar milhares de pessoas) se o proibissem de usar um penduricalho que trazia ao peito. Esse jovem mostrou a quem quiser ver qual é raiz de acontecimentos como o 11 de Setembro: a imunidade ética que a religião confere aos crentes.