A guerra dos cartoons na RTP
Ontem assisti ao programa «Prós e Contras» na RTP1 que debatia a questão que incendeia a opinião pública internacional, os cartoons de Maomé. Contra a publicação dos cartoons estavam Manuel Clemente, Bispo Auxiliar de Lisboa, David Munir, Imã da Mesquita de Lisboa e Ângelo Correia; do lado da liberdade de expressão, Vasco Rato e os cartoonistas António e Luís Afonso. A prestação do lado dos «contras» foi muito fraquita, com excepção da de Ângelo Correia, que tentou analisar a desproporcionada e violenta reacção do mundo muçulmano do ponto de vista histórico e político. Posso não concordar com boa parte do que Ângelo Correia disse, mas devo reconhecer que tentou ser intelectualmente honesto, não fugiu às questões e não balbuciou apenas platitudes non sequitur, como os dois clérigos, em resposta a questões concretas.
A estrela da noite foi sem sombra de dúvida António, o cartoonista do Expresso, que de forma desassombrada e muito directa, pôs os pontos nos i’s em relação a esta pseudo-polémica. E relembrou aos clérigos, que clamavam por um tratamento de excepção para as religiões, que não existem, nas sociedades democráticas, apenas crentes. Os ateus são uma parte integrante da «cidadania» e os ateus têm tanto direito à liberdade de expressão e à indignação quanto os crentes. A censura preconizada (mas nunca directamente admitida) pelos dois clérigos não só viola um dos direitos mais fundamentais para o desenvolvimento ético da humanidade, a liberdade de expressão, como silenciaria efectivamente todos os ateus, que para ambos se deveriam coibir, por suposto «respeito» ao «outro» (em que este «outro» se refere apenas aos que professam outra religião), de manifestar a sua repulsa pela violação dos seus valores humanistas por matérias religiosas com consequências para toda a sociedade e não apenas para os crentes.
António referiu, entre algumas questões que violam a sua consciência, a polémica do aborto e a criminosa oposição da Igreja Católica ao uso de preservativo como prevenção da SIDA, que motivou o famoso cartoon de João Paulo II com um preservativo no nariz, e as questões da falta de liberdade, do terrorismo, da burka e genericamente do tratamento das mulheres em relação ao islamismo. E declarou que pela sua parte vai continuar a criticar tudo o que violar os seus valores democráticos, tenha origem religiosa ou não!
Concordo em absoluto com todas as intervenções de António. Para os religiosos só é falta de respeito qualquer crítica não só às suas mitologias como a concretizações de inspiração «divina» com consequências para todos. O facto de essas acções concretas, como as referidas por António, serem uma ofensa para qualquer humanista, não necessariamente ateu, não só não lhes merece consideração como é considerado igualmente uma ofensa pelos intolerantes clérigos, que não disfarçaram o seu incómodo durante o programa em relação a algumas intervenções acutilantes de António.
Mais do que esclarecer as poucas dúvidas que teria em relação à posição (decalcada da mesma cartilha) de ambos os clérigos em relação à pseudo-polémica dos cartoons, o programa foi inestimável para confirmar que para ambos a religião deve estar acima de qualquer crítica, isto é, que deve existir censura religiosa, e, especialmente, que o «respeito» pelas ideias (religiosas claro, as humanistas não merecem alguma consideração) se deve sobrepôr ao respeito pelos indíviduos e pelos seus direitos fundamentais! Como consequência ressalta que para ambos é implicitamente inadmíssivel a liberdade de expressão dos ateus, que não constam dos «outros» e como tal não merecem respeito ou sequer direitos!