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Choque de civilizações?


«I cobble together a verse comedy about the customs of the harem, assuming that, as a Spanish writer, I can say what I like about Mohammed without drawing hostile fire. Next thing, some envoy from God knows where turns up and complains that in my play I have offended the Ottoman empire, Persia, a large slice of the Indian peninsula, the whole of Egypt, and the kingdoms of Barca {Ethiopia}, Tripoli, Tunisi, Algeria, and Morocco. And so my play sinks without trace, all to placate a bunch of Muslim princes, not one of whom, as far as I know, can read but who beat the living daylights out of us and say we are ‘Christian dogs.’ Since they can’t stop a man thinking, they take it out on his hide instead…» Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, As Bodas de Fígaro*

De Londres a Jakarta passando por Gaza e Islamabad, em suma em todo o mundo islâmico e nos locais onde a comunidade islâmica tem mais força, temos assistido àquele que parece o choque de civilizações preconizado por Samuel Huntington há mais de uma década. Pessoalmente não subscrevo todas as teses de Huntington mas as reacções desproporcionadas do mundo islâmico a um não acontecimento recordaram-me as minhas reflexões aquando da morte de Theo van Gogh. E considero ser um não acontecimento porque numa sociedade democrática em que, ao contrário do que se passa na maioria dos países islâmicos, há pluralismo de opiniões, liberdade de expressão e o estado não controla os meios de comunicação, não faz sentido responsabilizar todo um país pelos actos de uns poucos indíviduos.

Hoje, na Síria, milhares de manifestantes incendiaram as embaixadas da Noruega e da Dinamarca (destruindo o edifício de três andares onde se encontravam situadas as embaixadas da Suécia e do Chile) em Damasco. Em Londres os manifestantes que se deslocaram da mesquita de Regent’s Park para a embaixada da Dinamarca empunhavam cartazes onde se podia ler «Matem os que insultam o profeta» e «A única forma de isto ser resolvido será se os responsáveis forem entregues para serem punidos pela lei islâmica, para que possam ser executados».

O que fizeram os «responsáveis» que tantos milhares exigem punidos com uma pena que nenhum país europeu aplica e que despoletou este «choque de civilizações»? Simplesmente publicaram uns cartoons (inócuos na minha opinião) que representam Maomé e aludem à ameaça real que o fundamentalismo islâmico constitui actualmente! Se, como afirmava o Sheik Munir hoje na Sic, os muçulmanos se sentem ofendidos pelo facto de Maomé ser caricaturado com um turbante em forma de bomba e que tal supostamente implicaria que todos os muçulmanos são terroristas, então convenhamos que as reacções do mundo islâmico não são as mais apropriadas para demonstrar que tal não é verdade!

Pelo contrário, a escalada de violência a que temos assistido nos últimos dias pode ser classificada como puro terrorismo, que é simplesmente o uso da violência ou a ameaça do uso da violência contra civis por razões políticas, religiosas ou ideológicas.

Ceder, nem que seja um mílimetro, ao terrorismo islâmico em qualquer expressão é ceder nas duramente alcançadas conquistas civilizacionais ocidentais, construídas em torno do respeito dos direitos humanos e em que a liberdade de expressão foi e é a pedra basilar. Espero, para bem da civilização, que a proposta das organizações árabes que pretendem que a ONU aprove uma resolução banindo «desrespeito de crenças religiosas» esteja condenada ao fracasso! Ou outra longa noite obscurantista nos envolverá certamente…

Especialmente se considerarmos tudo o que é considerado um insulto ao Islão, desde questionar a legitimidade do apedrejamento até à morte de apóstatas, ursos de peluche e cruzes, igualdade de direitos para as mulheres, comer carne de porco, etc.. Não estou disposta a andar de burka, três passos atrás de um acompanhante masculino e sem poder conduzir o meu carro, simplesmente porque muitos políticos ocidentais estão reféns de um maniqueismo pré-queda do muro tão anacrónico e abstruso quanto as aberrações das leis islâmicas!

As reacções ao não acontecimento das caricaturas de Maomé, para além de caricatas, já que o suposto insulto residiu na associação de violência com o islamismo e de facto a associação foi efectuada não pelos cartoons mas pelos próprios manifestantes, são uma demonstração de totalitarismo, uma ameaça às fundações da nossa sociedade e à própria democracia! Como escreveu Ibn Warraq, o Ocidente não tem nada que pedir desculpas e não deveria pedir desculpas!

A liberdade de expressão é um valor em que assenta a nossa sociedade democrática e livre. Foi a liberdade de expressão que pemitiu a abolição da escravatura, a instituição da democracia, a igualdade de direitos para todos, independentemente de cor da epiderme, credo, sexo ou opção sexual. Não precisamos de «lições» de comportamento de sociedades que não respeitam os mais elementares direitos humanos, onde as mulheres são sub-humanos sem quaisquer direitos, a não ser o apedrejamento por suposto adultério, o mesmo destino dos homossexuais!

*As Bodas de Fígaro, com libreto de Lorenzo da Ponte, foi criada por Wolfgang Amadeus Mozart a partir de uma comédia escrita em 1784 por Pierre Augustin Caron de Beaumarchais, o mesmo autor de «O Barbeiro de Sevilha», escrita em 1775 e transformada em ópera por Rossini, e de «A mãe culpada», escrita em 1792.

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