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Mês: Dezembro 2005

6 de Dezembro, 2005 fburnay

Reacções alérgicas

Eu sou a favor da remoção dos crucifixos das salas de aula públicas. São símbolos particulares, representativos de crenças pessoais e não devem ser mantidos em locais cuja neutralidade ideológica o Estado se prestou a garantir.

Mas de resto vejo uma enorme reacção alérgica na sociedade por causa disso. Os defensores da remoção dos símbolos são acusados de

1) Laicismo fanático;
2) Passar ao lado do problema real da Educação;
3) Quererem impôr a sua mundividência aos outros;
4) Negarem a tradição aos portugueses;
5) Perderem tempo com um assunto irrelevante.

Quanto ao “laicismo fanático”, tenho apenas a dizer que o meto no mesmo saco que a “fé céptica” e o “dogmatismo científico”. Simplesmente não faz sentido caracterizar conceitos incompatíveis com as ideias das quais deriva a adjectivação… É, no mínimo, orwelliano. O laicismo serve para permitir a convivência no espaço público providenciado pelo Estado sem sobreposições ideológicas nem fanatismos.

O argumento de que os portugueses têm mais com o que se preocupar do que com os crucifixos não vale nada – de facto, existem uma série de problemas aos quais se pode atribuir uma ordem prática de importância. Mas essa ordem é relativa e seja como for nada impede que se resolvam os problemas de forma simultânea. Senão teríamos de esperar pela resolução do problema da fome mundial antes que pudéssemos abordar a questão da Ota. O mesmo se aplica à educação. De facto a iniciativa de remover os ditos crucifixos não é uma reforma educativa nem pretende minimizar o estado da Educação em Portugal.

Os defensores da remoção dos crucifixos não pretendem impôr ideologia nenhuma a ninguém. Aqui há uma confusão recorrente entre ateísmo e laicismo, como se não houvesse crentes do lado dos defensores do laicismo nas escolas públicas. Se há imposição de alguma coisa é da iconografia de uma crença particular à comunidade que pode não se rever nessa crença. De facto é a Igreja que quer impôr a sua leitura – os crucifixos simbolizam a Paz e o Amor para os católicos logo devem simbolizar o mesmo para toda a gente… Se é verdade que há pais que não podem pagar uma educação religiosamente orientada aos filhos também é verdade que há pais que não podem pagar para garantir uma educação livre de religião aos filhos.

O argumento da tradição é velho e falacioso demais. De facto a “tradição” dos crucifixos começou com o Estado Novo e se nas políticas totalitárias do salazarismo há alguma herança cultural que se aproveite digamos que não é propriamente subscrita por ninguém que eu conheça. De resto a questão dos crucifixos é vista como um ataque à Igreja Católica (leia-se Igreja Católica Apostólica Romana) como se os crucifixos ou aquilo que simbolizam fossem propriedade desta religião. Que eu saiba, os crucifixos são símbolos assumidamente cristãos mas a sua utilização não é exclusiva de uma só confissão mas de várias. Portanto mesmo que se tratasse de um ataque, nunca seria um ataque unilateral.

Para cúmulo, ainda têm o descaramento de vir dizer que os crucifixos são irrelevantes e que não fazem mal a ninguém. Se o assunto é assim tão irrelevante, acho no mínimo insólita a forma como praticamente todos os comentadores e opinion makers da nossa praça se pronunciaram sobre o assunto – especialmente os que se opõem ao cumprimento da Constituição. Alguns chegando a afirmar coisas absurdas como o “agnosticismo do Estado”, no caso de Francisco Sarsfield Cabral. Claramente alguém se sente muito incomodado com a remoção dos “inofensivos” crucifixos.

6 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo: Inquisição

Na minha análise das razões que explicam o obscurantismo imposto pela Igreja católica durante a Idade Média figura proeminentemente a Inquisição e a perseguição de hereges, crentes em outras fés e «bruxas». A definição de herege dada pelo teólogo proscrito por Bento XVI, Leonardo Boff, é a minha favorita até porque ilustra perfeitamente as causas biológicas, a serem explanadas em breve, dessa longa noite obscurantista.

Segundo Leonardo Boff o herege é:
«(…) aquele que se recusa a repetir o discurso da consciência colectiva. (…) Por isso está mais voltado para a criatividade e o futuro do que para a reprodução do passado.».

Para o catolicismo medieval eram consideradas heresias todas as formas de pensamento que não obedecessem estritamente às emanações da hierarquia da Igreja. Ou seja, eram hereges todos os que ousassem sair do controle rígido efectivado pela Igreja, todos os que não aceitassem as orientações, práticas, concepções e preconceitos da Igreja como sendo a verdade «absoluta». Assim, eram hereges todas as pessoas que acreditavam, aceitavam ou mesmo divulgavam quaisquer ideias que se desviassem minimamente da doutrina concebida pela Igreja romana, o que incluía, obviamente, quem ousasse usar perversa e culpadamente a razão em incursões proibidas pela «má» ciência de Agostinho de Hipona.

A Inquisição foi a forma a que a Igreja recorreu para perseguir tudo e todos que não se conformassem aos moldes que esta impunha, nomeadamente que se permitiam ao uso «blasfemo» da razão.

Problema que começou a surgir nos finais do século XII, quando a dita Reconquista da Península Ibérica começou a ter sucesso, (dita Reconquista porque o objectivo foi a recuperação de terras sob domínio árabe às quais os cristãos acreditavam ter direito) graças à fragmentação do califado de Córdoba. Reconquista que pôs os incultos cristãos em contacto com uma civilização cultural e cientificamente muito mais avançada e cujos focos de infecção principal se situaram na Córdoba cosmopolita, elegante e educada, com uma comunidade judaica muito importante de que se destaca um dos seus mais prestigiados filósofos, Maimonides (1135-1204), e na académica Toledo, que expuseram o mundo cristão não só à filosofia aristotélica sem censuras (o que determinou o período seguinte da escolástica) mas também à matemática dita árabe.

E especialmente a matemática porque o crescimento económico de cidades como Florença, Veneza e Pisa, implicava a existência de conhecimento impossível de satisfazer pelos mistícos scholasticus. Conhecimento que possibilitasse cálculos prosaicos como os envolvidos em empréstimos e juros, preços de revenda, investimentos, custos dos seguros das viagens, etc. As necessidades económicas ditaram a criação de uma nova instituição educativa: a Botteghe ou Scuole d’abaco (Escola de Ábaco), cujo primeiro Maestri d’abaco (mestre de ábaco, ou cálculo) foi, provavelmente, o famoso Fibonacci da série que tem o seu nome ou Leonardo de Pisa (ca. 1175-1250). Estas escolas, dirigidas a um público diverso desde filhos dos mercadores, aspirantes a funcionários públicos a aspirantes a pintor (Piero della Francesca frequentou uma escola de Ábaco), escultor ou arquitecto, ensinavam essencialmente a matemática indo-árabe. Fibonacci estudou com um mestre árabe e, tal como Fibonacci, cada vez mais europeus se atreviam a algo proibido até então: usar os neurónios para algo mais que lucubrações sortidas sobre Deus e os Evangelhos.

Assim a Igreja precisava de um «cão de fila», a Inquisição, que exercesse não só uma severa vigilância sobre o comportamento dos fiéis, assegurando que não eram contaminados com toda a produção cultural e inovações científicas que o contacto com os infiéis catalizou, como controlar e tentar cercear toda esta produção intelectual anti-cristã. Na verdade, a Igreja receava que as ideias inovadoras conduzissem os crentes à dúvida religiosa e à contestação da autoridade do Papa. As novas propostas filosóficas ou científicas eram examinadas (e cortadas radicalmente) pela Inquisição, exame que mais tarde, depois da invenção da prensa por Gutenberg que dificultou o trabalho inquisitoral, culminou na criação do Index auctorum et librorum prohibitorum, o catálogo dos livros cuja leitura era proibida aos católicos, sob pena de excomunhão.

A origem da Inquisição remonta ao século IV, quando se iniciam as perseguições contra os hereges. Nesta época, o movimento ainda não era institucionalizado, e no período que vai dos séculos VI ao IX o seu poder era restrito. A partir do século X, a Inquisição vai assumindo um papel cada vez mais importante. Com o IV Concílio de Latrão, de 1216, o papa Inocêncio III estabelece o metodo inquisitio e após o Concílio de Toulouse, em 1229, a sua organização foi formulada, sendo oficializada em 1231 pelo Papa Gregório IX. Inserido num cenário ainda de poder eclesiástico absoluto e soberano este Tribunal é instaurado essencialmente para perseguir os hereges que começavam a incomodar os alicerces do poder da Igreja católica. Em 1252 o poder da Inquisição é reforçado com a santificação da tortura pelo Papa Inocêncio IV que no Ad Extirpanda, diz que os hereges «podem ser torturados a fim de revelar os próprios erros e acusar os outros, como se faz com os ladrões e salteadores» e em que propõe que os heréticos irrecuperáveis devem ser queimados vivos na fogueira. Na prática, um testemunho era suficiente para justificar o envio para a câmara de tortura do acusado e quanto mais débil a evidência do crime, mais severa era a tortura.

O Manual dos Inquisidores, o Directorum Inquisitorum (escrito em 1376 por Nicolau Eymerich e revisto e ampliado em 1576 por Francisco de la Peña) é uma compilação da praxis da Inquisição desde a sua criação formal, um tratado dividido em três partes: a) o que é a fé cristã e seu enraizamento; b) a perversidade da heresia e dos hereges; c) a prática do ofício do inquisidor que importa perpetuar, dá conta, na secção b), que:

«Aplicar-se-á, do ponto de vista jurídico, o adjectivo de herético em oito situações bem definidas. São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja Romana sobre um ou vários artigos da fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.»

Nestas oito alíneas cabem todos os que não aceitavam de cruz o que a Igreja de Roma determinava ou qualquer um que se considerasse ter ofendido os costumes (as tradições ainda tão invocadas hoje em dia) e a fé cristã da Santa Madre Igreja, para além dos culpados do costume: judeus, cristãos novos, marranos, sodomitas e bruxas (boa parte parteiras que, inspiradas pelo demo, ajudavam parturientes a «escapar» ao castigo ordenado pelo Senhor de parirem em dor).

6 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A ICAR e os milagres

O culto necrófilo de JC está de acordo com a demência veneradora que a ICAR presta aos mártires e aos poderes que atribui aos mortos. A morte é, aliás, o alimento da fé, a droga que sustenta a religião e o medo que submete os vivos.

A ICAR recusa milagres de vivos, destina-os aos mortos. Os santos são padrinhos da Mafia que rodeia Deus. Quem acredita na catadupa de milagres obrados após JP2 ter sido alcandorado ao trono pontifício pelo Opus Dei, terá de interrogar-se como puderam obrar milagres patifes de alto coturno como Pio IX ou Escrivá.

O negócio dos milagres é a ilustração da mentalidade católica: a atenção que se solicita, a cunha que se mete, o lugarzinho que se mendiga. O padre-nosso é o cabrito da dívida, a ave-maria o queijinho da subserviência, a novena e o terço o óbolo para o partido político sem cuidar onde se perde ou o destino que lhe cabe.

Às vezes os milagres acontecem por mérito próprio mas urge que se atribuam ao divino para lhe dar prestígio e aumentar a clientela. «Graças a Deus» – grunhem ministros a piscar o olho aos padres, invertebrados a dar graxa ao patrão, locutores a despedirem-se dos beatos ou para serem ouvidos por patrões comprometidos com o clero.

Um deus que se deixa subornar por orações, que só ouve os gritos de desesperados por intermédio de cadáveres bem vistos no Vaticano, é um deus venal e falso, uma criatura pusilânime e interesseira, um aldrabão de feira e um crápula.

O deus dos padres, que manda a doença para que um bem-aventurado lhe peça a cura, é um biltre que faz chantagem, um corrupto que aguarda a paga, um ser repugnante que usa poder discricionário e se diverte com o sofrimento humano.

5 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Um clerical anglófilo e francófobo

João Carlos Espada (JCE) constitui para mim uma referência intelectual de gabarito comparável a João César das Neves e Boaventura Sousa Santos. Sou um leitor habitual das suas colunas sociais do Expresso, onde fala sempre de clubes britânicos, idas à missa e outros comportamentos exóticos que me fascinam. No seu artigo deste Sábado, JCE defende a permanência dos crucifixos nas salas de aula das escolas públicas a partir de princípios políticos comunitaristas e tradicionalistas. O artigo consiste numa sucessão de estorietas sonsas em segunda mão, das quais não se segue qualquer conclusão óbvia, a não ser a de aceitar submissamente os preconceitos e constrangimentos nelas evocados.

A primeira estorieta, contada de forma deliberadamente capciosa, refere um artigo de Umberto Eco. A acreditar em JCE, o escritor italiano veria «com crescente preocupação o ataque ao cristianismo em nome do laicismo», um ataque que conduziria a um «vazio» logo preenchido pelo «paganismo», por leituras do «Código Da Vinci» e finalmente pelo fascismo, e ao qual Umberto Eco resistiria fazendo o presépio com o neto. Como rejeito tanto o cristianismo como o pós-modernismo, afoitei-me a procurar o artigo de Umberto Eco. Não foi tempo perdido: na realidade, JCE induziu os seus leitores em erro. O escritor italiano não refere qualquer «ataque do laicismo» ao cristianismo: esmera-se a condenar as tontices pós-modernistas da «Nova Era» e a fúria consumista (o que eu compreendo e aplaudo) e a opôr-lhe a religião, que considera uma necessidade natural da espécie humana (o que eu já não acompanho).

A segunda estorieta diz respeito a David Cameron, o candidato favorito à liderança do Partido Conservador. JCE, fanático dos princípios anglo-saxónicos segundo os quais «o pessoal é político» e a identidade religiosa deve ser explorada para fins eleitorais, elogia Cameron por este «afirmar claramente a sua fé cristã» numa entrevista televisiva. Creio que JCE não se apercebe de que quem legitima a exibição pública do privado, quer este seja o privado religioso ou familiar, justifica também a devassa pública da intimidade de quem assim se exibe, e dos seus desvios aos mandamentos religiosos ou às lealdades conjugais. Também por isso e ao contrário de JCE, parece-me preferível que o debate político se centre em questões de interesse público, e não em sentimentos privados, sejam eles a fé ou a «identidade» religiosa.

A terceira estorieta é sobre outro cronista do Daily Telegraph que, aparentemente, protestou contra a retirada de símbolos religiosos dos espaços públicos, embora não seja claro se as escolas britânicas aí se incluem. Esta estorieta parece-me suspeita, quanto mais não seja porque não é um hábito muito protestante andar a espalhar símbolos religiosos, particularmente crucifixos, pelas escolas.

A quarta estorieta é sobre a Elizabeth, por acaso rainha do Reino Unido, e líder formal da Igreja Anglicana. JCE, que (por preguiça?) não consegue escrever um artigo inteiro sem citar longamente terceiros, transcreve uma passagem de um discurso da senhora, em que ela nos diz que «todas as pessoas (…) podem encontrar significado e propósito no Evangelho de Jesus Cristo». Nem Elizabeth nem JCE parecem querer conceder-nos a possibilidade de recusarmos o cristianismo como referência de vida, uma opção que, no entanto, constitui para muitos de nós uma consequência elementar da liberdade de consciência.

No parágrafo final, JCE tira uma conclusão que não surpreenderá os seus leitores habituais: a culpa é dos franceses. Se fosse tudo como em Inglaterra, se todos tentássemos ser lordes britânicos e falar com batatas quentes na boca, se todos espumássemos de raiva cada vez que ouvíssemos falar francês ou falar da França (seja do laicismo ou dos cruássans), então o mundo seria um paraíso. Mais, JCE sugere que a solução perfeita será a adaptação das leis gerais do Estado a todas as «realidades locais» e «circunstâncias particulares», incluindo naturalmente a adaptação da Constituição a todas as tradições religiosas e costumes comunitários. Porém, se seguíssemos esta sugestão, não apenas os crucifixos continuariam nas escolas públicas portuguesas de todo o país, como seriam substituídos na península de Setúbal pela foice e pelo martelo, e na Madeira seriam acompanhados pelo retrato de Alberto João Jardim. Esta perspectiva horroriza-me, mas parece maravilhar JCE. Sugiro a JCE que seja mais ousado ainda e assuma que defende também que as leis que criminalizam as mutilações genitais efectuadas a menores sejam adaptadas às tradições das comunidades. Não é suficiente manter em vigor uma Concordata que em cada alínea faz uma discriminação positiva a favor da ICAR: cada comunidade que faça as suas leis. Com JCE como Grande Timoneiro, voltaremos à Idade Média. Em frente, para trás!
5 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

Só a laicidade garante a liberdade de consciência de todos

Num artigo publicado na quarta-feira no Diário de Notícias e na sexta-feira no Público, António Pinheiro Torres apresentou alguns argumentos em defesa da permanência de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas portuguesas.

Nesse artigo, Pinheiro Torres assegura-nos de que «na retirada dos crucifixos, aquilo a que assistimos é (…) a adopção do laicismo (aquela atitude que consiste em afastar a religião do espaço público) como religião do Estado». No entanto, um preceito metapolítico de neutralidade estatal – a laicidade – não pode ser considerado uma religião, pois não constitui, por si só, uma forma de relação com o sobrenatural ou uma sistematização de mitos sobre o universo. O laicismo, ao contrário das religiões (sobretudo as mais clericais como o catolicismo ou o islamismo), não obriga o cidadão a uma crença qualquer – pelo contrário, liberta-o de coacções (como a imposição de crucifixos em espaços estatais) para que possa acreditar, ou não, naquilo que quiser.

Pinheiro Torres afirma ainda que «o Estado é incompetente em matéria religiosa, não podendo imiscuir-se na fé individual» e que «[para os católicos] o ponto fundamental é este: o da liberdade». Concordo com a primeira afirmação, e regozijo-me com a segunda. Mas compete justamente aos católicos mostrar que não valorizam apenas a liberdade de que gozam quando manifestam a sua fé, e que também respeitam a liberdade dos outros de não lhes ser imposta uma fé. Para tal, não podem desejar que o Estado manifeste uma fé, como continuará a acontecer enquanto tivermos crucifixos em salas de aula de escolas públicas. Portanto, que se cumpra a Constituição e que se retirem os crucifixos.
4 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Andam créus no Diário Ateísta

Há na última vaga de peregrinos em romagem ao Diário Ateísta uma sanha reforçada, um proselitismo agudo e uma demência mística que não era usual.

Acredito que os confessores os isentaram das orações e que a penitência, após confissão bem feita, se converteu, para expiação dos pecados, em peregrinação ao blog dos ateus.

É uma forma de porem a fé à prova, sem necessidade de genuflexões.

Substituem os pai-nossos e ave-marias com que embrutecem o espírito e desencardem a alma por insultos aos infiéis, ameaças aos blasfemos e profecias sobre o destino dos sacrílegos. São caminhos tão sinuosos como os da fé.

Uma santa alimária já profetizou a morte deste modesto escriba a apelar ao deus dele, enquanto uma rata de sacristia ameaçou golpear-me com os pés todos.

Os directores espirituais, uma espécie de polícias da consciência, conhecem os riscos que correm as ovelhas, capazes de se tresmalharem do redil, mas é um risco que vale a pena. As que resistirem ao Diário Ateísta ficam aptas para a insanidade, o martírio e a violência com que julgam ganhar o Paraíso.

Às vezes parecem sair disparadas da missa com a hóstia mal deglutida, ainda húmidas da aspersão do hissope, cheias de Espírito Santo, em loucas arremetidas contra os ateus.

Que sejam bem-vindas tais ovelhas. Nada temos contra os crentes, apenas combatemos as crenças e os trampolineiros da fé.

4 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Dois milénios de obscurantismo: a escolástica pré tomista

Como referi logo no primeiro post devotado ao tema, considero que o início da longa «noite de mil anos» cristã se situa no Natal de 800, data da coroação de Carlos Magno por Leão III, que investiu o rei franco da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. Simultaneamente Leão III conseguiu desta forma cimentar o poder da Igreja na Europa medieval, que já detinha um poder económico considerável uma vez que a Igreja de Roma, a única instituição que sobreviveu à queda do Império Romano, possuía cerca de um terço das áreas cultiváveis, a base da riqueza medieval, da Europa ocidental.

Carlos Magno (768-814) reinava assim sobre um continente europeu fragmentado e desorganizado. Para restaurar o império, precisava do apoio da Igreja, a única estrutura organizada sobrevivente. A consequência cultural e civilizacional da união entre a Igreja e o Estado foi o que alguns apelidam de renascimento carolíngio que na realidade se traduziu no início de um obscurantismo de que o Ocidente só começou a sair na Renascença. Um longo período da História em que a civilização europeia cristã foi acorrentada aos dogmas das Escrituras e sujeita a vigilância constante e repressiva pela Igreja.

De facto, a supremacia total da Igreja sobre o pensamento da época, que se traduziu não só na asfixia na difusão do conhecimento como na perseguição de quem diferisse uma vírgula das emanações da Igreja, deve-se a Carlos Magno que criou uma quase obrigatoriedade de fornecer instrução aos cidadãos europeus por parte da Igreja. Pretendendo imitar o Império Romano e assegurar a unidade do seu vasto império, como a única estrutura sobrevivente passível de tal tarefa era a Igreja, encarregou-a de educar religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Para além disso Carlos Magno precisava urgentemente de preparar uma classe dirigente e, em especial, de dispor de funcionários letrados, capazes de cumprir tarefas que assegurassem a funcionalidade do império.

Assim, criou um grande número de escolas em mosteiros, conventos e abadias, para além de fundar, junto da sua corte e no seu próprio palácio, a chamada Escola Palatina, precursora das Universidades (sob domínio católico, claro) que começaram a surgir na Europa a partir do século XII. Estas escolas deveriam ser presididas por um eclesiástico, scholasticus, dependente directamente do bispo, daí o nome de escolástica dado à doutrina católica a partir do século IX.

Os traços característicos da escolástica são, tal como na patrística, a subordinação à teologia do pensamento antigo, especialmente dos filósofos gregos, Platão, mais concretamente o neoplatonismo, na escolástica pré-tomista, Aristóteles na escolástica tomista e de novo o neoplatonismo na versão agostiniana do pós Tomás de Aquino. Em todas as vertentes da escolástica afirma-se a supremacia da Igreja em relação às instituições seculares, nomeadamente defende-se (e implementa-se) que o direito deve ser elaborado a partir da teologia, pois Deus é o seu fundamento.

Um dos pomos de discórdia entre os vários períodos da escolástica tem a ver com o livre arbítrio, uma vez que para os neoplatónicos do período inicial da Escolástica, tanto a vontade, como a razão de Deus, determinavam o justo, pois só «Deus é criador do Justo». Daí serem chamados de voluntaristas. Já a linha tomista é não-voluntarista, pois o que determina a justiça é a natureza das coisas e a natureza racional do homem. Nesse sentido, Deus é apenas conselheiro e guia do Justo.

O teólogo mais proeminente do período inicial da escolástica é Scoto Eriúgena, um teólogo originário da Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua céltica, daí o nome de Scoto Eriúgena. Em 874 é chamado à corte de Carlos o Calvo, para presidir e leccionar na escola palatina. A sua obra principal, De Divisione Naturae, (847)uma obra marcadamente neoplatónica, com uma interpretação realista dos universais (um conceito mental, a natureza intrínseca das realidades expressas por palavras universais como homem, árvore, animal, etc.), foi posteriormente condenada pela Igreja em 1225…

O facto do saber neste período medieval partir exclusivamente dos clássicos e ser reproduzido com muita interpolação em enciclopédias sortidas, de acordo com o autor «copista» mas seguindo as piedosa censura proposta por Agostinho, impediu a inovação do conhecimento. Por outro lado como se procedia à «purga» dos clássicos de forma a «comprovar» as opiniões da Igreja muito do conhecimento perdeu-se, irremediavelmente não fora ter sido conservado pela civilização árabe. Foi um período em que a aversão pelo empirismo propiciou o desenvolvimento de lendas sortidas, em que se acreditava nas coisas mais mirabolantes como são exemplo os bestiários medievais. Estas obras compiladas por monges pretendiam, como não podia deixar de ser, ensinar ao homem o caminho da redenção, e atribuiam a cada animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Nas páginas dos bestiários abundam animais míticos como a fénix, o unicórnio, a sereia, cavalos alados e afins. Lendas como a do reino de Prestes João, um mítico reino cristão situado «para lá da Pérsia e da Arménia», governado por um rei-sacerdote denominado Iohannes Presbyter, descendente de um dos Reis Magos, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, preenchiam o imaginário dos europeus oprimidos e crédulos.

Foi um período de obscurantismo supersticioso em que reinou o maravilhoso, uma fuga ao insuportável quotidiano determinado estritamente pela Igreja, o mirabilis (o maravilhoso de origens pré-cristãs), o magicus (o sobrenatural maléfico) e o miraculosus (o maravilhoso cristão, o milagre que ainda hoje perdura).

De facto, a característica principal deste período escolástico pré-tomista, que se estendeu até ao século XIII, é a luta dos teólogos mais influentes, ou seja, os místicos, contra a ciência e a filosofia por eles considerada um resíduo pagão, uma distracção mundana, uma demonstração de vaidade e orgulho intoleráveis num cristão. Mistícos bem representados por São Pedro Damião no século XI e São Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII.

Este último, que pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária», combateu especialmente a linha filosófica dos chamados dialécticos, escola de pensamento cristão iniciada por Anselmo de Aosta (1033-1109), que cometiam a heresia de advogarem o uso da razão.

Segundo Bernardo, estes «hereges» «desvirtuavam a fé exigida pelos mistérios de Deus» e perseguiu Pedro Abelardo, o sucessor de Anselmo no uso blasfemo da razão, que, acusado de heresia, foi condenado em dois concílios, Soissons e Sens.

3 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Zâmbia bane IURD

Na passada terça feira a Igreja Universal do Reino de Deus foi banida na Zâmbia depois de ser acusada de praticar satanismo e sacrifícios humanos. Já em 1997 o governo da Zâmbia tinha banido a IURD, por «práticas anti-cristãs», mas esta apelou da sentença obtendo a revogação da decisão no Supremo Tribunal.

O Ministro do Interior da Zâmbia, Peter Mumba, informou os repórteres que «O governo decidiu suspender as operações da Igreja na Zâmbia com efeitos imediatos, (…) de forma a permitir investigações das alegações, que consideramos muito sérias».

A decisão governamental foi tomada escassos dias depois de milhares de pessoas se terem manifestado violentamente em frente a um dos templos da IURD na capital, Lusaka, devido à existência de rumores de que existiriam pessoas raptadas, prestes a serem sacrificadas, no seu interior. Depois de a polícia ter sossegado os ânimos dos manifestantes, os dois homens que a multidão afirmava terem sido raptados para rituais satânicos, sairam, pintados dos pés à cabeça, de dentro do edifício. Ambos não se recordavam do que lhes tinha acontecido nem como tinham ido parar ao interior da Igreja.

No dia seguinte uma multidão incendiou uma igreja da IURD em Kanyama, uma cidade ao sul de Lusaka, e marchou para uma recém-construída catedral de muitos milhões de dólares que a IURD era suposta inaugurar na semana que decorreu.