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Mês: Dezembro 2005

14 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A procissão do Senhor dos Passos

À frente os homens, mulheres atrás, como manda a tradição e os bons costumes, filas de dois que o sacristão alinhava com a vara e admoestava com voz sussurrada, a procissão fazia o seu percurso anual.

As crianças seguravam as asas que o uso e as colisões ameaçavam. As mães ralhavam e ameaçavam com tabefes os anjinhos que se lembravam de pedir xixi. As túnicas varriam o chão que o último rebanho deixara pejado de caganitas.

Sobre uma padiola, alombada por quatro mordomos, baloiçava dentro da camisa roxa um Senhor dos Passos de ar sofrido, com vontade de dar um piparote na coroa de espinhos, pôr a cruz de lado e mandar calar a banda.

Sob o pálio viajava ufano o padre, erguendo a custódia, com alguns acólitos, enquanto as varas eram empunhadas por validos impantes de glória e vazios de siso, convictos de que a bajulação lhes facilitava o caminho do Céu.

A banda de música acertava o passo e desafinava nos bemóis para recordar à efígie que no Paraíso o duplo ouvia música e assistia ao fogo de artifício. O pirotécnico deitava os foguetes e atroava os ares enquanto as beatas suspiravam com medo das canas e os créus deitavam contas à vida.

Os cânticos religiosos azucrinavam os ouvidos, um negociante acabava por comprar umas ovelhas e um pobre vendia o porco. O Cristo entrava na igreja ao som de ave-marias e era atirado para um canto da sacristia onde o pó e a humidade lhe fariam companhia. No ano seguinte repetia-se o número.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (III)

Como se não chegasse já a trapalhada, JCN prossegue dizendo que «não foi apenas a Física a revelar-se assustadora». E se eu não sabia que a Física era assustadora, fiquei também a saber que o Livro Vermelho de Mao é um produto do conhecimento científico! O despropósito faria corar o leitor que desconhecesse a tradição semanal de JCN. É que o Partido Comunista Chinês fez «uma avaliação lúcida da situação international e interna com base na ciência do marxismo-leninismo», como se lê num dos capítulos do livro de Mao.

Aqui JCN dá um valente tiro no pé – primeiro o marxismo-leninismo não é uma ciência; segundo, se era esta a “Ciência” a que se referia Schumpeter, então toda a anterior análise não só confirma a tal apropriação de linguagem de que falei como mostra que o contexto é completamente alheio ao de JCN. Mas o livre-debitador ou não repara nisso ou não quer reparar. O marxismo-leninismo e a teoria de superioridade racial nazi arrasaram ainda mais do que a bomba atómica, diz-nos JCN, certamente convencido que essas duas “teorias” são produtos da Ciência.

Não se tendo cansado de se contradizer, JCN continua, pondo desta vez em cena a mui famosa e pós-modernista «perda de objectividade da própria Ciência». Sim, porque a Ciência foi eleita a crença, uma forma de fé. E se o foi, de facto, por quem não a compreende não o foi certamente por culpa da própria Ciência. Depois da “pulverização” do conhecimento anterior chega o “relativismo” do debate científico – onde todos discutem sem que ninguém chegue a conclusão nenhuma. Isso é próprio dos meios pseudo-intelectuais ou movidos por interesses políticos, onde os sofismas valem mais que os factos. Mais uma vez, a apropriação indevida do calão tecno-científico por todos os que se querem fazer ouvir mancha a honra da Ciência, que nada tem a ver com isso! Quem paga é a reputação de cientistas sérios, que produzem Ciência a sério, longe das charlatanices de meia tigela dos que se pretendem sérios e rigorosos…

E JCN atira para o campo das discussões infrutíferas uma data de questões que o atormentam certamente: a natureza da homossexualidade, a origem da vida, etc., misturadas com questões de ordem sociológica como a frivolidade das dietas ou a estabilidade matrimonial, dizendo que está-se ainda mais confuso hoje do que no passado… Há 100 anos não se conheciam sequer as hormonas sexuais! O clítoris era alvo de fabulações psicológicas! A homossexualidade era desordem psicológica grave! Obviamente que na completa ignorância não há confusão absolutamente nenhuma – pois se não há conhecimento! Talvez para JCN haja coisas nas quais não se deva mexer – se para a Igreja todas essas questões estão resolvidas há séculos, de que maior prova de estabilidade precisamos?

Para finalizar JCN acusa a demagogia e o discurso pós-modernista. Dois métodos que usou sem descanso ao longo de todo o texto, diga-se! E JCN tem uma tal aversão à Ciência que nos remata com uma expressão da qual nunca me esquecerei:

«Em Oitocentos via-se o laboratório como em Setecentos se tinha visto o oratório. Novecentos descobriu-se num velório.»

Que posso eu concluir? Que para JCN a Ciência é a própria Morte! Nada traz senão destruição e confusão para os povos: bombas, ditaduras, caos! Substitui-se a Religião e veja-se no que deu! O Apocalipse! O relativismo dos valores! Nada a registar nos últimos 100 anos de Ciência senão um cinzento e triste velório condolente!

Aqueles que tentam denegrir a Ciência nunca o fazem sem defender a ignorância. Isto à custa da reputação daqueles que todos os dias trabalham para fazer do nosso mundo um sítio melhor e que acarretam uma injusta fatia da culpa do mau uso do conhecimento que nos dão. Esquecendo por completo todas as vidas que se salvaram graças à Ciência, desde a vacina para a raiva de Pasteur ao transplante de corações, passando pela cura da lepra, pela aspirina, pelos progressos feitos na agricultura, pelas tecnologias que melhoram as condições de trabalho de milhões de pessoas pelo mundo fora e, sobretudo, pela mais valia que é o espírito crítico – imprescindível para a Ciência e para a Humanidade.

João César das Neves devia ter vergonha. Tem medo da Ciência, aversão aos seus progressos e uma grande fé certamente. Mas o que devia ter era vergonha.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (II)

No seguimento das suas elaborações filosóficas JCN cita Schumpeter para descrever o estado da “Ciência”, retirando um excerto de um livro desse autor intitulado “Capitalism, Socialism and Democracy”:

«A junção das ânsias extra-racionais que o retrocesso da religião tinha deixado errantes como cão sem dono, com as tendências racionalistas e materialistas da época, então inelutáveis, que não toleravam nenhum credo que não tivesse conotações científicas ou pseudocientíficas»

Que a Ciência se tenha tornado um estandarte da seriedade e da objectividade para alguns e que preenchesse lacunas ideológicas de outros, é uma coisa. Que a Ciência tenha alguma coisa a ver com isso, é outra! Se o rigor científico entrava na ordem do dia isso acontecia precisamente porque a Ciência era conhecida por ser rigorosa. O mesmo se passa com o advento do “magnetismo” espiritista que mais não é que uma tentativa de tornar científica a crença em entidades sobrenaturais numa altura em que se começava a explicar os fenómenos electromagnéticos. É normal que haja quem se aproprie de termos científicos para tornar os seu discurso mais credível…

E os dividendos tecnológicos da Ciência em geral são tratados por JCN de uma forma absolutamente tétrica! Para além de se referir a bombas atómicas num dos mais famosos lugares-comuns dos males para os quais a Ciência foi utilizada, JCN enumera toda uma lista de tragédias que supostamente nos foram dadas pela Ciência. É ainda difícil para algumas pessoas separar a Ciência e o conhecimento científico dos fins que lhes damos.
Assim JCN fala no napalm e no aquecimento global… O napalm é um cocktail explosivo, uma receita caseira para matar gente, inventada por militares, que nada tem a ver com progresso científico. O aquecimento global é, quando muito, um efeito da indústria e que, mais uma vez, nada tem a ver com conhecimento científico senão com o uso que lhe damos… E assim vai JCN denegrindo o progresso científico, empurrando-o para uma galeria dos horrores da História da Humanidade – no fundo, um terrível pecado do Homem, qual incauto Prometeu brincando com o fogo. Mencionando convenientemente os embriões congelados e a clonagem, esses espectros que teimam em assombrar as opiniões semanais deste autor.

13 de Dezembro, 2005 fburnay

Momento Zen de Segunda-Feira (I)

Para João César das Neves não há almoços grátis. Mas fantasias gratuitas, sem ponta por onde se lhe pegar nem qualquer consideração pelos leitores, há e com fartura.

O opinador do Diário de Notícias presenteou-nos desta vez com um artigo sobre Ciência… Ou melhor, sobre aquilo que acha que a Ciência é, num misto de contradições, absurdidades e tiros nos pés.

Este ano correu alegremente o Ano Internacional da Física. Centenas de pessoas e de cientistas, divulgando a Física, dedicaram-se a relembrar e a dar a conhecer o annus mirabilis de Einstein, 1905, em que este publicou três importantes artigos que iriam mudar a História da Física e da Ciência.

Começando logo por aqui, JCN fala-nos de quatro artigos. São três os principais, sendo cinco no total. JCN chama à publicação de Einstein um «facto espantoso, que revoluciona a forma como vemos a matéria». A matéria? Revoluciona a nossa visão do Universo, certamente, e da matéria em particular. Depois fala de «teorias da relatividade» (ênfase no plural) quando somente a Relatividade Restrita faz parte desse conjunto – a Teoria da Relatividade Geral só estaria completa posteriormente.

Isto mostra a completa ignorância de JCN sobre os artigos de Einstein e suas implicações. Não me passa pela cabeça exigir de JCN um conhecimento detalhado da Física subjacente mas pedia-lhe, no mínimo, algum cuidado na substanciação daquilo que diz. Uma rápida pesquisa na Internet seria suficiente para dissolver estas gralhas… Sugestão: procurar ‘world+year+physics’ no Google. Não é aterradoramente simples? Viva a era da informação…!

O aplicado elucubrador segue descrevendo o estado civilizacional da Humanidade, anterior a Einstein, fascinada com a Ciência e que tão prontamente se desiludiu com a chegada da nova Física e seus derivados tecnológicos. Quanto à pulverização das «certezas evidentes», JCN deve estar a referir-se à vitória das Mecânicas Relativista e Quântica sobre a Mecânica Clássica. A questão que se põe aqui é que a Mecânica Clássica era tida pelos cientistas da altura como poderosa o suficiente para descrever matematicamente o Universo. É certo que se enganaram – mas os corolários clássicos ainda são utilizados correntemente em diversas aplicações da engenharia. A forma como JCN descreve o processo de falsificação do conhecimento é típica de quem não compreende a Ciência, acabando na situação caricata de apontar defeitos onde eles não existem.

De seguida JCN diz-nos que «a era nascida em 1905 veria muitos cientistas, incluindo Einstein, ansiosos por desaprender resultados desse progresso». O que quer JCN dizer com “desaprender”? Se a leitura que pretende fazer é a de que os resultados de alguns proveitos técnicos gerados pelo conhecimento científico, como a bomba nuclear, criaram algum remorso em cientistas como Einstein, então JCN está enganado. Einstein nada teve a ver com a bomba. E por muitas questões que esse tipo de problemas traga à sociedade isso nada tem a ver com desaprender seja o que for. Por muito que todos os cientistas envolvidos no projecto Manhattan se tenham arrependido, o que eles criaram foi conhecimento – a bomba foi criada por militares e posta em uso por políticos.

12 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Crónicas do Cavaleiro da Pérola Redonda

J. C. das Neves brindou-nos hoje com mais uma das suas crónicas inenarráveis. Neste puro delírio tomista, o inefável cavaleiro da Pérola Redonda não defende directamente a sua dama, a Igreja de Roma e seus ditames, mas fá-lo indirectamente com um ataque ao «dragão» que, desde Agostinho de Hipona, ameaça a sua hegemonia e autoridade: o uso da razão, mais concretamente a ciência.

O fazedor de opinião do Diário de Notícias aproveita para o seu ataque inano à ciência o facto de que decorre ainda o ano Internacional da Física. Ano em que se celebra o centenário do Annus Mirabilis de Einstein. Denominado assim porque em 1905, ainda funcionário do gabinete de patentes de Berna, Einstein publica não quatro como o excelso professor indica mas sim cinco artigos memoráveis* que mudaram para sempre a ciência.

E aparentemente o professor estava um pouco baralhado quando debitou a opinação em análise porque não só Einstein não «concebeu em 1905, quase de raiz, a mecânica quântica» como praticamente até à sua morte manteve um conflito permanente com a mecânica quântica, MQ. Conflito cuja expressão mais conhecida é um artigo que escreveu em 1935 com Podolsky e Rosen, onde se propunham demonstrar a grande inconsistência da MQ. O assunto é conhecido, no meio científico, como o Paradoxo EPR (de Einstein, Podolsky, Rosen).

Depois deste pouco auspicioso começo, o «filósofo», ou melhor, «téologo» da ciência tenta incutir no seu leitor (nesta altura perdido de riso se tiver um mínimo de cultura científica) a dúvida sobre a bondade do conhecimento científico. Lançando-se em lucubrações sobre a a vontade de Einstein, que morreu a trabalhar na sua teoria unificada, em «desaprender» ciência, aparentemente por causa da bomba atómica. Lucubrações completamente sem fundamento e teria sido útil ao spin doctor do DN ler qualquer coisinha sobre Einstein antes de se lançar nas suas habituais efabulações.

Nas palavras de Einstein a um historiador «Sugere que em 1905 eu devia ter previsto a possível construção de bombas atómicas. Tal era impossível, dado que a possibilidade da reacção em cadeia dependia da existência de dados empíricos que não podiam ter sido antecipados em 1905… E mesmo que tal conhecimento estivesse disponível, teria sido ridículo tentar esconder uma conclusão particular da teoria da relatividade restrita. Uma vez que a teoria existia, a conclusão existia».

Uma dos mimos com que J. C. das Neves nos obsequia neste indescrítivel artigo é a promoção de um economista keynesiano a «um dos seus (ciência) mais astutos observadores». Nomeadamente um representante de uma ciência não exacta que se socorre de termos e conceitos de uma ciência exacta, a física, para elaborar uma versão «respeitável» da «teoria» dos ciclos que tenta explicar as crises que o mundo capitalista atravessa e conjecturar sobre as várias «forças» actuantes. Na realidade ainda hoje alguma economia pede emprestada respeitabilidade à física, sendo um dos campos da moda actualmente a econofísica, tema de um workshop na Universidade de Évora em 27 de Janeiro próximo. Parecer-me-ia um pouco arriscado propor como um astuto observador da «assustadora» (J.C. das Neves dixit) física alguém que se socorre desta para se impor no seu próprio campo…

Fiquei na dúvida se J.C. das Neves é frequentador do Diário Ateísta porque o seu parágrafo seguinte poderia ser debitado por um qualquer dos crentes que comenta todos os assuntos em apreço com alusões a Pol Pot, Mao ou Stalin. Ou seja, por uma razão qualquer obscura J. C. das Neves promove a ciência o marxismo-leninismo usando-o como mais um papão para denegrir a ciência, essa malvada relativista que ousou destronar as verdades «absolutas» da Santa Madre Igreja, por exemplo a insustentável leveza das almas nos limbos!

Os verdadeiros motivos de J. C. Neves na escrita deste conjunto de inanidades revelam-se quasi no fim da opinação. Num parágrafo em que mais uma vez mistura ciências exactas com ciências sociais (não exactas) o ilustre spin doctor tenta lançar a confusão sobre os temas «fracturantes» sobre que tantas vezes nos mimoseou com as suas pérolas redondas de raciocínio. Nomeadamente o aborto e a homossexualidade. Em que tenta menorizar os argumentos científicos a favor do aborto ou que desmistifiquem os preconceitos homofóbicos da Santa Madre Igreja.

Imediatamente antes do seu final apoteótico (ou apopléctico?), em que carpe ter a ciência no século XIX substituido a religião nas respostas às questões da humanidade e sugere que a ciência é mortal (!?) para o homem, J. C. das Neves tem um lapso de lucidez. Não obstante ter indicado o «culpado» errado, que na realidade é o ressurgimento de fundamentalismos religiosos anacrónicos, a sua análise do problema dos tempos modernos está certa: esta nova fase místico-religiosa traduz-se no crescimento do «desprezo pela atitude racional e avança o misticismo e a magia, prosperam os charlatães e a mixordice intelectual», como são exemplo a super abundância de milagres produzidos pelo anterior Papa ou a recuperação do exorcismo pela Igreja católica. E concordo em absoluto que «Estão em risco séculos de avanços do conhecimento». Mais concretamente todos os séculos que medeiam desde o Renascimento, em que saímos da longa noite obscurantista imposta pela Igreja de Roma, até hoje!

*Os cinco artigos são publicados a um ritmo alucinante. Assim, em Abril Einstein publica um artigo que será igualmente a sua tese de doutoramente sobre a determinação das dimensões de moléculas (e em que prova inequivocamente a existência destas, algo que não era consensual à altura); em Março foi publicado o artigo que lhe valeu o prémio Nobel em que explica o efeito fotoeléctrico; em Maio um artigo sobre movimento browniano; em Junho um artigo intitulado «Electrodinâmica dos corpos em movimento» em que apresenta aquilo que hoje em dia chamamos relatividade restrita e finalmente em Setembro um suplemento ao artigo da relatividade em que pela primeira vez aparece a equação que é talvez o ex-libris de Einstein: E=mc2.

12 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Debate

Próxima quarta-feira, 14 de Dezembro
Debate sobre
LAICISMO E LAICIDADE
com
Luís Mateus e Ricardo Alves
da Associação Cívica República e Laicidade
na Companhia de Teatro
A Barraca

Depois da representação da peça «O Mistério da Camioneta Fantasma».O espectáculo tem início às 21.00 horas.

Bilhete simples: 12,50 euros
50% para os associados e amigos da Associação Cívica R&L.

Marcações para o 213965360 ou 213965275 até às 19:00 horas de quarta-feira.

Para mais informações: http://abarraca.planetaclix.pt/, [email protected] ou [email protected].

12 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Santíssima Trindade

Em tempos da beata ditadura salazarista, por lei de 1936, um Cristo sofrido tornou-se obrigatório nas escolas, ladeado por um idiota vestido de oficial general e pela figura sinistra do antigo seminarista de Santa Comba Dão.

Na 3.ª classe do ensino primário era obrigatório ensinar às criancinhas o dogma da Santíssima Trindade que, não sendo originalidade da ICAR nem do cristianismo, contribuía para o embrutecimento infantil e bovinidade dos professores que tinham por missão explicá-lo.

Dizia-se que «eram três pessoas iguais, distintas e uma só verdadeira». Todas eram uma e era Deus. Além de dogma era mistério. Além de mistério era estúpido, mas alimentava a fé.

A ICAR, no seu instinto comercial, deitou fora o Pai, encerrou num pombal recôndito o Espírito Santo e dedicou-se à comercialização do Filho. Segmentou o mercado e passou ao negócio da cruz, com ou sem atleta.

Depois de ter amadurecido o produto, em vez de impingir os outros dois artistas da tríade, criou o culto mariano. Passou a vender Nossas Senhoras como os tasqueiros vendem tremoços para acompanhar a cerveja.

Reparem, pios leitores, que o Pai apareceu a Moisés a ditar-lhe uns mandamentos no Monte Sinai e nunca mais regressou. Aconteceu o mesmo a alguns satélites artificiais.

Quanto ao Espírito Santo, os próprios cardeais não o vêem há várias épocas de caça.

Só o JC aparece de vez em quando a alguns bem-aventurados, como aconteceu à Irmã Lúcia que recebeu uma visita em Tuy. Quem aparece com frequência é a Virgem, que a tradição e as vantagens do negócio conservam imaculada, quase sempre a pessoas de instrução rudimentar e excessiva fé.

Mas agora o que está a dar são os santos, especialistas em cunhas a Deus, aptos a curar o mau olhado, a evitar possessões demoníacas e a render emolumentos ao Vaticano.

A fé é um negócio que alimenta a voragem do padres, a credulidade dos infelizes e a superstição de muito boa gente.

12 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

«A religiosidade nas escolas»

O EXPRESSO de 3-12-05, a propósito da persistência de crucifixos em salas de aula de escolas públicas, refere declarações do gabinete da ministra Lurdes Rodrigues e de um responsável sindical, afirmando que essas situações se verificam exclusivamente na região Norte de Portugal e que não ultrapassam a vintena – o título da notícia é mesmo: «Só 20 escolas têm crucifixos».

Ambas as informações são factualmente incorrectas e uma simples consulta ao repertório produzido pela Associação República e Laicidade permitiria verificar que existem escolas com símbolos religiosos permanentes distribuídas pela região Norte, pela região Centro, pela região de Lisboa e pela do Alentejo e, sobretudo, permitiria perceber que essas situações foram citadas a título meramente exemplificativo, sendo muitas outras aí deliberadamente omitidas para proteger a privacidade das pessoas que fizeram chegar a informação à associação.

Acrescente-se que a Associação República e Laicidade considera a medida entretanto tomada pelo Ministério da Educação – mandar retirar crucifixos de salas de aula a pedido explícito de encarregados de educação – claramente insuficiente: está constitucionalmente garantido aos cidadãos portugueses o direito de não serem, por forma alguma, postos na situação de terem que revelar convicções (positivas ou negativas) que mantenham, designadamente em matéria religiosa, e o exercício desse direito, que não se compadece com a postura agora adoptada pelo Governo, requer a retirada de todos os símbolos religiosos das salas de aula, garantindo assim, a par da não confessionalidade da escola pública, a separação entre o Estado e as igrejas e a igualdade entre todos os cidadãos independentemente das suas convicções em matéria de religião.

Ricardo Alves (membro da Direcção da A.R.L.)

(Texto publicado no Expresso de 10/12/2005 como carta de leitor.)
11 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Primeira Presidente chilena?

O poder quasi absoluto da Igreja Católica no Chile, um país onde o divórcio só é possível desde o ano passado, está prestes a conhecer o seu primeiro contratempo desde o assassinato em 1973 do presidente Salvador Allende durante o golpe de direita, chefiado pelo general Pinochet, um católico exemplar.

De facto, o resultado das eleições de hoje é quasi o equivalente a uma revolução pacífica, inesperada neste país sob tão marcada influência da Igreja de Roma. Assim, os resultados preliminares indicam que Michelle Bachelet, mãe solteira, de 54 anos, que nas suas próprias palavras encarna «todos os pecados capitais – socialista, a filha do seu pai, divorciada e ateísta» será muito provavelmente a primeira presidente chilena, tendo neste momento, com cerca de 13% dos votos apurados, quase tantos votos como a soma dos votos nos dois candidatos de direita, o empresário Sebastian Pinera e o ex-presidente da câmara de Santiago o ultra conservador Joaquin Lavin. Amanhã saberemos se haverá segunda volta e quem disputará a presidência com Michelle Bachelet, que a manterem-se as tendências actuais e contra a maioria dos prognósticos e ajuda divina, será Sebastian Pinera.

O pai que ela menciona como um dos seus pecados capitais foi um general progressista da Força Aérea chilena que fez parte do governo de Salvador Allende em 1972 e que morreu de ataque cardíaco quando torturado pelos algozes de Pinochet, um ano depois do golpe de estado.

Michelle e a mãe foram enviadas para o infame centro de tortura Villa Grimaldi mas as suas ligações com os militares evitaram que tivessem o destino de tantos milhares de chilenos desta época negra do país e partiram para o exílio.

Em 2000 o presidente Ricardo Lagos, nomeou Michelle ministra da Saúde, cargo que abandonou dois anos depois quando passou a ocupar a pasta da Defesa.

Talvez a razão do sucesso inesperado de Michelle seja bem resumido pela apreciação de Isabel Allende, filha de Salvador Allende e prima da escritora com o mesmo nome «Michelle reflecte um realidade há muito escondida no Chile, não a falsa imagem da família perfeita ou do político modelo».

Realidade que se revelou no voto secreto que cada eleitor depositou na urna, fora do escrutínio dos devotos católicos que tentaram demover os chilenos do voto em Michelle Bachelet «denunciando» a sua afinidade com o infame, anti-católico e ditatorial(?) Zapatero!