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Mês: Dezembro 2005

17 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Maria (1)

Naquele tempo, Maria, os teus pais julgavam-se descendentes do rei David e, assim, disfarçavam a pobreza e aliviavam a fome que grassava nos lares humildes da Judeia.

Joaquim e Ana pouco tinham para além da árvore genealógica, se é que eles sabiam, ou inventaram-na os vindouros para fazer do filho teu a fantasia universal.

Quando conheceste José ficaste aflita, acordaram os sentidos, subiu-te o rubor à face e só a timidez e os costumes te impediram de abraçar o carpinteiro jovem de Nazaré, trocar beijos húmidos e seguir como a natureza manda e a hipocrisia condena.

Sabemos pouco de ti. Não sonhaste que viesses a interessar alguém quando escutavas a oração matinal do teu pai a bendizer Deus por tê-lo feito judeu e não escravo…nem mulher. Nem te davas conta da injustiça, conformada com a sorte de seres fêmea.

Quando, pela vez primeira, achaste José a percorrer-te o corpo, sentiste arrepios que o bafo quente ampliava, e pareceram-te veludo as mãos que ora subiam os montes, ora se detinham nos vales da tua anatomia, quando atingiste o êxtase e sentiste que há vida para lá das orações.

Foram tempos exaltantes e, em breve, soubeste o que te ia nas entranhas. A seita que se apropriou de ti inventou um anjo para te anunciar a gravidez como se a mulher não percebesse, como se um anjo fosse o teste de gravidez ou um tubo de ensaio com urina e reagentes.

No fim do tempo que é devido nasceu um varão para alegria tua e de José que as fêmeas valiam pouco. Tão satisfeita ficaste que o chamaste Jehoshua que queria dizer «Javé é a salvação», depois transformado em Jesus.

Algum tempo depois, vá-se lá saber porquê, havias de emigrar para o Egipto, facto que daria origem a uma história fantasiosa para colorir as origens de uma nova seita que ainda hoje floresce.

Quando aos 12 anos Jesus se esgueirava de casa para se livrar do pai e da oficina e se refugiava no templo onde os doutores aproveitavam a ociosidade para conversar com ele, mal podias adivinhar, Maria, que a populaça havia de ver nele o Cristo predito nos escritos que o templo guardava.

Da adolescência, dos desejos reprimidos ou satisfeitos, dos sonhos e pesadelos dessa idade nada se sabe do teu menino. Nem do jovem adulto.

Aos trinta anos baptizou-o nas águas do Jordão um indivíduo habilitado, João Baptista de seu nome, e – diz-se -, Jesus abalou depois para o deserto onde resistiu às tentações do demo, como se o lugar fosse adequado a consumar desejos, e jejuou quarenta dias.

16 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

A escola e o presépio da minha infância

Bem crucificado e suavemente chagado, numa cruz de madeira dependurada na parede, penava um Cristo de bronze em resignada agonia, ladeado à direita por uma fotografia de um homem de bigode, fardado, conhecido por marechal Carmona, e à esquerda por um eterno seminarista, com ar de gato-pingado, que infundia terror – o Professor Salazar.

Na mesma parede, em frente dos alunos, a razoável distância e muitos fungos depois, quedava-se a Senhora de Fátima, poisada numa mísula, alheada da conversão da Rússia e da salvação do mundo. Mais abaixo, à esquerda, ficava o quadro preto e o mapa do corpo humano e, à direita, rasgados, um mapa de Portugal Continental, outro das Ilhas Adjacentes e das Colónias e o mapa-múndi.

O soalho resistia aos buracos, numerosos e amplos, que a humidade e o uso se encarregavam de alargar. As carteiras alinhavam-se em rigorosa geometria com lugares destinados a cerca de quarenta garotos de ambos os sexos distribuídos pela primeira, segunda e quarta classes. Entre quinze a vinte estavam na sala oposta a frequentar a terceira, confiados à senhora Noémia, regente escolar.

Nos dias de chuva subvertia-se a ordem, numa complexa gincana de carteiras, para evitar que os pingos de água que escorriam do tecto acertassem nos tinteiros e salpicassem de azul a roupa das crianças e os tampos de madeira.

No intervalo, meninos e meninas, em amplas correrias e direcções opostas, procuravam os quintais próximos para se aliviarem dos fluidos que os apoquentavam.

À entrada da escola o presépio anunciava todos os anos o Natal. Na armação de tábuas e pedras cobertas de musgos, um menino de barro, seminu e de perna alçada, jazia em decúbito dorsal sobre uma caminha de palha centeeira. Era o Menino Jesus. De um lado uma virgem colorida, moderadamente recatada e com pouco uso, substituía a que se partira, interessada na companhia do filho que herdara. Do outro, um S. José, a quem a corrosão deixara em pior estado do que o dogma da Imaculada Conceição, parecia um erro de casting, indiferente ao aspecto, perdidas as cores, diluídas as formas, conformado com os olhares e as súplicas, incapaz de operar milagres, resignado com o frio de Dezembro.

O burro e a vaca comportavam-se a preceito, facilmente se adivinhando o gosto por erva se eles e esta fossem verdadeiros.

Os reis magos, eternos almocreves com ar de ladrões de camelos, virados para uma estrela recortada em papel colorido, permaneciam imóveis na lendária caminhada, quais amoladores de tesouras, à espera de fregueses para ganharem o sustento e um presente para o Menino.

As ovelhas que placidamente decoravam a montanha eram figurantes experientes, desinteressadas da importância que acrescentavam ao quadro e do exemplo de submissão que transmitiam. Nem um só carneiro as acompanhava, talvez para lembrar que é na renúncia ao prazer que se encontra a redenção da alma. Apenas um cão e o pastor.

Reflicto hoje sobre a predilecção por musgos, muitos musgos, para cobrir o chão do presépio. Na religião tudo se deve cobrir ou, no mínimo, disfarçar. Talvez esteja na ocultação dos órgãos de reprodução, característica das plantas criptogâmicas, a razão da preferência, a funcionar como metáfora.

Ah! Já me esquecia, pintados de branco, anjos de barro, junto ao caminho de serradura que conduzia à manjedoura, voavam baixinho, com asas quebradas, incapazes de regressar ao Céu. E o algodão em rama imitava os flocos de neve que lá fora rodopiavam ao sabor do vento. Eu gostava do Presépio. Não era o catecismo a aterrorizar-me com o Inferno onde as almas que ali frigiam, em perpétua flutuação no azeite fervente, eram mergulhadas com um garfo de três dentes empunhado pelo diabo.

A minha escola caiu, pelo Natal, ficando de pé uma única parede e a fé das pessoas que atribuíram à protecção divina a ausência de aulas durante a derrocada.

16 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Guerra contra o Natal

Tudo começou com um inocente postal de boas festas enviado pela Casa Branca que continha um salmo bíblico, apesar de não fazer qualquer referência ao Natal. Tal não caiu bem nos grupos de apoiantes religiosos (ou grupos religiosos de apoiantes), que resolveram denunciar este «sectarismo louco».

Para estes simpáticos senhores, todos os municípios e lojas que chamem «pinheiros» às árvores de Natal, usam a imagem do Pai Natal em vez da de Jesus Cristo ou recorrem à expressão «boas festas» em vez de «feliz Natal» devem ser denunciados e boicotados. Isto porquê? Porque é tudo uma grande conspiração anticristã não liderada apenas por judeus, ela tem também «aspectos puramente políticos» com a esquerda a «procurar vingar a derrota nas presidenciais de 2004». A teoria é do apresentador da FoxNews John Gibbons.

Esta polémica está relacionada com a «reindeer rule», decisão do Supremo Tribunal de Justiça em que se afirma que as representações da natividade em locais públicos devem ser contrabalançadas com símbolos seculares, como o Pai Natal ou as renas, por forma a assegurar a laicidade do Estado.

Entretanto, mais de 1500 advogados ofereceram-se para processar os municípios que retirem os presépios das representações natalícias dos espectáculos de Natal e 8000 escolas públicas estão preparadas para denunciarem as respectivas direcções se forem retirados os cânticos de Natal das festas de fim de ano.

Para além desta guerra, os cristão americanos têm andado a ocupar o seu tempo a decidirem o que as lojas devem ou não vender, nomeadamente o DVD de «Jerry Springer: The Opera». A retirada do dito DVD de algumas lojas motivou um movimento de união bloguístico contrário que quer ver a ópera de volta nas prateleiras.

E é assim que as glórias do mundo se passam nos Estados Unidos da América.

Para mais informações:
What War On Christmas?;
Happy holidays? Not if the Christian right has its way;
A Very Wary Christmas;
Palavras

16 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Retrocesso fundamentalista na Turquia?

As propostas do governo de Recep Tayyip Erdogan da imposição de uma lei seca no centro das cidades turcas, que exilariam para os subúrbios os locais onde se pode beber álcool, reacenderam os receios de um relapso fundamentalista na Turquia.

De facto, o partido do governo, AKP, tem sido repetidamente acusado por grupos seculares de tentar forçar um estilo de vida islâmico ao mesmo tempo que implementa reformas «ocidentais» desenhadas para facilitar o processo de adesão à CEE.

Como há muito alertamos, a conjuntura internacional de crise que vivemos torna as populações vulneráveis aos ataques fundamentalistas (de todas as religiões) que alocam a desvios ao integrismo religioso respectivo as razões da crise. Os grupos seculares de defesa da imprescíndivel para a paz e tolerância laicidade são assim essenciais para que não assistamos a um retrocesso civilizacional, já que os moderados de todas as fés desculpam por norma os excessos cometidos em nome da respectiva religião. Como o filósofo Sam Harris explica, a atitude complacente em relação às religiões é uma ameaça latente para o modelo de sociedade que queremos construir, uma sociedade justa, de paz e tolerante. Os exemplos que nos chegam de todo o mundo e de todas as confissões religiosas indicam claramente que precisamos despertar desta complacência e não transigir no mínimo desvio à laicidade!

15 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

A não perder

An Atheist Manifesto.
Eis a nota do editor devidamente traduzida:

Numa altura em que a religião fundamentalista tem uma influência sem paralelo nos mais altos níveis de governo dos Estados Unidos e o terror baseado na religião domina o palco mundial, Sam Harris argumenta que a progressiva tolerância da desrazão religiosa é uma ameaça tão grande como a própria religião. Harris, filósofo graduado em Stanford, que estudou religiões ocidentais e orientais, ganhou o prémio PEN de 2004 com o livro «The End of Faith», que examina e explora de forma explosiva os absurdos da religião organizada. «Truthdig» pediu a Harris que escrevesse uma resenha da sua tese que defende que a crença em Deus e o apaziguamento dos extremistas religiosos pelos moderados de todas as crenças foi e continua a ser a maior ameaça para a paz mundial e um assalto continuado à razão.

15 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Acção de rua

O senhor bispo do Algarve, Manuel Neto Quintas, visitou a Escola Básica 2+3 de Monchique – no âmbito de uma visita pastoral que o levou também ao Jardim de Infância e Escola de S. Roque, na vila-sede e à escola do 1.º ciclo da freguesia de Alferce -, onde os alunos de três turmas tiveram a oportunidade de privarem com tal personagem.

O objectivo da visita de Manuel Quintas à escola não é certo. O Diário de Notícias tentou averiguá-lo, mas a vice-presidente do conselho executivo da escola escudou-se num poderoso argumento: a questão é «descabida», limitando-se a afirmar que todos os encarregados de educação foram informados da visita do bispo.

Apesar de o artº 9º, nº 1, al. a) da Lei da Liberdade Religiosa estabelecer expressamente que ninguém pode «ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa», o bispo do Algarve acha que é necessário «dar uma palavra de estímulo aos professores, em relação à sua missão, que não é fácil, e desmistificar perante os alunos a figura do bispo como alguém distante, inacessível». Notem: «aos professores» (numa conveniente generalização) e não… aos professores de religião e moral.

Por sorte, ainda há alguém minimamente ajuízado. Albino Almeida, o presidente da Confederação das associações de Pais, reagiu a esta visita, lamentando «que não tenha havido da parte do bispo do Algarve o bom senso de evitar fazer da escola um local de disputa religiosa. Com a sua atitude, qualquer fundamentalista ganhou o direito de ir fazer propaganda religiosa às escolas».

Quanto à questão dos crucifixos, Albino Almeida entende que «o Estado se define constitucionalmente como laico e deve haver coerência entre a Constituição escrita e a praticada – e sempre que não houver cabe ao Estado garantir que haja». Portanto, «os símbolos religiosos não fazem sentido das escolas, estão lá a mais».

Relativamente ao argumento da tolerância, o presidente da Confederação das associações de Pais acha que «a prioridade número um em termos de religião deve ser fraternidade e tolerância. E se há uma determinada confissão que se considera em maioria tem obrigações suplementares em relação às minorias. Neste caso, se há intolerância, é da parte dos católicos».

15 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Cada coisa no seu lugar

Os mapas de Portugal, ilhas adjacentes, colónias e o mapa-múndi devem ser retirados das igrejas.

Igual procedimento devem merecer a cadeia do agrimensor, as medidas de capacidade e os sólidos geométricos. Não é justo que uma pirâmide de madeira ocupe a patena ou as medidas de peso viagem no turíbulo por entre o fumo do incenso.

A custódia é para pôr o Senhor e não para mostrar o círculo e a circunferência. Quando se celebra a missa não se deve medir a tonsura do pároco com um compasso, para calcular a área e ensinar o valor de Pi, porque o bico pode ultrapassar o coiro cabeludo.

O altar deve ser aliviado do quadro preto e do giz. O transepto não se destina à ginástica nem as capelas laterais a instalações sanitárias. O confessionário não serve para provas orais. A sacristia não é local de recreio nem sala de reuniões pedagógicas.

É preciso respeitar os locais de culto para que os devotos respeitem as escolas. O facto de excluir o material didáctico das igrejas não significa que se expulse o conhecimento dos templos, apenas se respeita o espaço recreativo dos fiéis e o local de confraternização com o divino.

O Cristo que decora o altar não deve servir para aulas de anatomia nem as cruzes que exornam as paredes ser usadas para ensinar as contas de somar. Deve evitar-se a pia de água benta para ensopar a esponja que apaga o quadro preto ou fazer aí experiências para provar a lei de Arquimedes.

Se respeitarmos as igrejas, como devemos, estou certo de que os crentes saberão respeitar o carácter laico da escola pública.

15 de Dezembro, 2005 jvasco

Já chega de vitimização

Não quero que chegue o dia em que alguém seja perseguido por ser crente em Portugal. Na China isso tem acontecido e foi denunciado pelos autores deste blogue (o Carlos Esperança). Felizmente é delirante pensar que possa acontecer em Portugal (se bem que a atitude de parte da Igreja Católica face à IURD e outras igrejas evangélicas torne o cenário menos absurdo).

A perseguição religiosa é intolerável. Todos os autores deste blogue consideram que a perseguição religiosa é intolerável.

Quando nos batemos pela laicidade e certos crentes agitam os fantasmas da perseguição religiosa e do medo de serem perseguidos por serem cristãos, não tomo isso como um delírio absurdo qualquer. Sinto-me insultado com esse constante receio. Não tenho nada contra alguém por ser crente (de todo!), mas espero dos crentes a atitude recíproca. Quando argumento, por exemplo, sobre a retirada dos crucifixos nas escolas, espero argumentos sobre os crucifixos. Não espero fantasias acerca dos autores deste blogue feitos inquisidores. Nunca tive vocação para isso.

Tenho repetido isto até à exaustão nos comentários. Pelos vistos tem sido insuficiente…

14 de Dezembro, 2005 Mariana de Oliveira

Quem espera desespera

Quando o filho de António Sobral entrou para a escola básica de S. Pedro, em Monchique, este verificou que existiam cruxifixos na sala de aula e pediu a sua retirada. Para além disso, enviou um requerimento com o mesmo pedido à Direcção Regional de Educação do Algarve (DREA), fundamentando-o na Constituição da República e na Lei da Liberdade Religiosa. Só que «os crucifixos continuam lá».

«Aceitaram tirar o crucifixo só de uma sala onde ele tem aulas, mas não das outras”, explica. Mas nunca recebi qualquer resposta do conselho executivo», disse o pai do aluno. O porquê de tal silêncio é de estranhar já que a DREA lhe respondeu, em finais de Outubro, informando-o da remetissão da «matéria em apreço para o órgão de gestão do agrupamento de escolas de Monchique de modo a que aquela entidade possa proceder em conformidade». No entanto, a carta não contém nenhum esclarecimento sobre o que é «agir em conformidade».

Segundo o director da DREA, António Libório, não existe «qualquer orientação ministerial quanto a símbolos religiosos» e «nem há razões para isso, as leis são antigas e claras».

Claras para uns, não tão claras para outros. De facto, Graça Batalim, vice-presidente do conselho executivo do agrupamento a que pertence a escola de S. Pedro, entende que «só estamos a ver a Constituição por um lado». «Penso que a liberdade de uns acaba onde começa a dos outros. Estamos num concelho maioritariamente católico, a maioria dos alunos da escola até anda na catequese… Esse pai quer que se tire o crucifixo e os outros pais querem que permaneçam…». É exactamente por a liberdade de uns acabar quando começa a dos outros é que os símbolos religiosos nas escolas públicas não devem ser afixados. Esta senhora não pensa é no conteúdo negativo do princípio da laicidade – que coexiste em igualdade de circunstâncias com o positivo -, ou seja, os não-religiosos têm o direito de, no espaço público, não serem obrigados a suportar uma pretensa supremacia de uma religião sobre as suas convicções.

Entretanto, enquanto se fizerem interpretações aberrantes e infundadas da Constituição e da lei, continuaremos a ver crucifixos nas nossas escolas públicas sempre lembrando aos mais incautos que há uma religião maioritária que se arroga do direito de dar as cartas.

14 de Dezembro, 2005 Ricardo Alves

A laicidade explicada aos católicos

Na sequência de uma «polémica dos crucifixos» que ficará na história das relações entre o Estado e as igrejas em Portugal, o Diário Ateísta (o blogue de referência para ateus, agnósticos e crentes não clericais) foi descoberto por uma turba de católicos com os quais tenho tentado manter diálogos construtivos – sempre com a minha paciência de ateu que anda desde a escola primária a explicar a católicos e outros que a virtude não depende da crença, e que o Estado não existe para resolver os problemas hipotéticos do «Céu», mas sim os problemas, indubitavelmente reais, da Terra.

Como alguns desses crentes não querem fazer o esforço de confirmar nos arquivos do Diário Ateísta o que afirmo efectivamente, talvez lhes aproveite explicar novamente que defendo a laicidade porque essa é a forma de conciliar a liberdade individual de todos: os que seguem a religião maioritária, os que aderem a uma religião minoritária, e os que não têm religião alguma. Só se o Estado for incompetente em matéria religiosa, se abstiver de se pronunciar sobre religião (quer assumindo símbolos religiosos quer apoiando uma confissão religiosa) é que seremos efectivamente livres de seguir esta ou aquela opção em matéria religiosa. Se assim não for, as confissões religiosas apoiadas pelo Estado terão vantagens indevidas, e a confusão entre espaços estatais – como a escola – e espaços privados – como as igrejas – instalar-se-á.

A distinção entre domínio público e domínio privado parece ser difícil para muitos católicos. E no entanto, é essencial que no domínio público (nos serviços públicos, nomeadamente) não haja qualquer coacção religiosa ou ideológica sobre os cidadãos, e que seja preservado o seu direito à privacidade em matéria de convicção. No domínio privado (e associativo), cada um faz o que quer e como quer, desde que não infrinja os direitos de outrem.

Muitos católicos afirmam, equivocadamente, que assim se interdita a expressão religiosa no «espaço público». No entanto, a laicidade é uma exigência de neutralidade do espaço estatal. As ruas, por exemplo, são um espaço público em que a manifestação de uma religião deve ser livre – desde que reste espaço para outras manifestações do foro privado (como as marchas do «orgulho guei») e para irmos trabalhar, às compras ou passear.

Outro equívoco consiste em confundir laicismo de Estado e ateísmo de Estado. Porém, tirar os crucifixos das escolas públicas, ao contrário do que dizem alguns católicos bastante disparatados, não é impor o ateísmo de Estado: é aprofundar a laicidade escolar. Impor o ateísmo de Estado seria fechar coercivamente as igrejas, proibir a prática do culto mesmo que em privado e colocar um cartaz em cada sala de aula com os dizeres «Deus não existe». Eu não defendo isso (e já agora, não conheço ninguém que o defenda).

A laicidade, tal como a entendo, inclui em si limites que não podem ser ultrapassados. Por exemplo, não se pode obrigar um cidadão a praticar ou não praticar um dado acto religioso. Embora, evidentemente, a liberdade religiosa não possa justificar que violações aos direitos humanos (como mutilações sexuais) não sejam consideradas crime.

Finalmente, a laicidade não é uma opção filosófica entre várias. É um tipo de regime. E não pode ser considerada uma ideologia, tal como a democracia – uma forma de governo – também não é considerada uma ideologia.

(A quem quiser aprofundar a noção de laicidade, sugiro a leitura de «Dieu et Marianne» ou «Qu´est-ce que la laïcité» ou qualquer outro livro de Henri Peña-Ruiz.)