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Mês: Dezembro 2005

24 de Dezembro, 2005 lrodrigues

O Natal dos Deuses Cristãos

As primeiras manifestações de religiosidade do Homem relacionavam-se com o culto das forças da natureza e, mais ainda do que de uma explicação divina para uma «vida depois da morte», elas nasceram do temor e da falta de compreensão para os fenómenos naturais, desde o vento à chuva ou aos relâmpagos, até à própria periodicidade dos ciclos solar ou lunar.

É por isso absolutamente normal que o Homem, animista nas suas origens religiosas, fosse também natural – e quase geneticamente – politeísta.
O desenvolvimento e a evolução do Homem vieram ao longo de milhares de anos trazer uma maior complexidade aos seus cultos religiosos, sempre com uma natureza politeísta.
No entanto, nalgumas civilizações da antiguidade ainda assistimos a tentativas mais ou menos sucedidas de unificação de divindades, embora normalmente protagonizadas por sacerdotes ou por governantes mais interessados na unificação e no poder temporal que daí poderia resultar.

O crescente desenvolvimento do cristianismo encontrou no Império Romano uma população de uma profunda religiosidade e, também por isso, uma riquíssima mitologia, com deuses para todos os gostos, feitios e ocasiões.
De tal modo, que em determinada altura o próprio Imperador Constantino (também influenciado pela sua própria mulher, Santa Helena, entretanto convertida) acabou por achar melhor adoptar o sábio princípio: «se não os podes vencer, junta-te a eles».

Sem nunca se ter convertido, Constantino acabou por tolerar o cristianismo e, juntamente com Licínio, o tetrarca Oriental (a quem escassos onze anos mais tarde mandou matar, assim tomando o controle de todo o Império Romano) assinou em 313 o Édito de Milão, que proclamava a independência do Império em relação a quaisquer credos religiosos, fazendo devolver aos cristãos as propriedades e os lugares de culto confiscados.

A partir de então, em todo o Império Romano o cristianismo convive pacificamente com a religião tradicional pagã (no sentido de religião politeísta ou não cristã, embora a designação se aplique também às religiões distintas da judaica, que também beneficiou desta tolerância e convivência pacífica inter-religiosa).

Mas muito havia para esclarecer, explicar e estabelecer nessa nova religião que era o cristianismo.
Até que no ano 325 Constantino convoca o Concílio de Niceia.
Com a presença de mais de 300 bispos (nomeados por líderes religiosos locais e pelo próprio Constantino), o primeiro concílio ecuménico ? que marca o início da Igreja Católica ? visava antes de mais condenar o «Arianismo», uma heresia que nega a divindade de Jesus Cristo.

O «mistério» da Santíssima Trindade encontra nesta concílio as bases da sua fundamentação, com a aprovação pela maioria dos bispos presentes (e não pela sua unanimidade, tendo ficado célebres as perseguições de Constantino aos bispos discordantes) da ideia de que Jesus é da mesma ?substância? e da mesma ?essência?, isto é, a mesma entidade existente do Pai.
Ou seja, haveria somente um Deus e não dois: a distinção entre o Pai e o Filho está dentro da «unidade divina». O Filho é Deus no mesmo sentido em que o Pai o é.
O próprio «Credo» de Constantino, saído do Concílio de Niceia, reconhece a divindade de Jesus Cristo, dizendo que o Filho e o Pai são ?de uma única substância? e que o Filho é «gerado», (único gerado, ou unigénito), mas não no sentido de «feito».

Desesperado para encontrar uma nova religião de massas através da qual pudesse controlar o povo, é no concílio de Niceia que Constantino molda o cristianismo a seu bel-prazer e ora faz inscrever ora faz abolir da Bíblia os textos e os evangelhos que acha mais apropriados, re-escrevendo-os e adaptando-os às suas políticas e aos seus interesses e depurando-os de contradições entre si.

Foi no Concílio de Niceia que foi decidido quais os evangelhos que tinham sido inspirados pelo Espírito Santo e que, por isso, eram os únicos dignos de figurar na Bíblia, os «evangelhos canónicos», por oposição aos evangelhos indignos dessa honra, conhecidos por «evangelhos apócrifos» ou «gnósticos».
Várias são as versões que contam como se deu a separação entre os evangelhos canónicos e apócrifos:
Há quem diga que, durante o Concílio, estando os bispos em oração, os evangelhos inspirados foram depositar-se no altar por si só.
Uma outra versão relata que todos os evangelhos foram colocados por sobre o altar, e os apócrifos caíram ao chão…
Outra ainda afirma que o Espírito Santo entrou no recinto do Concílio em forma de pomba e foi pousando no ombro direito de cada bispo, segredando aos seus ouvidos os evangelhos inspirados.

Depois, e na melhor tradição do costume babilónico da deificação do rei ou do imperador, foi com uma habilidade notável que Constantino aproveitou as festas, os costumes e os princípios pagãos e judaicos, já conhecidos e tradicionais no Império, para os adaptar e criar a doutrina desta nova religião, em progressivo crescimento e implantação popular.
Exemplo paradigmático disso é a festa pagã do Solstício de Inverno, adaptada ao Natal e às comemorações do nascimento de Jesus Cristo.

Esta nova Igreja, a Igreja Católica fundada no Concílio de Niceia («Creio na Igreja, una, santa, católica e apostólica…») está, pois, bem longe de ser a «Igreja Primitiva dos Apóstolos» e, obviamente, não foi fundada por Pedro.
Poderá até dizer-se que o seu primeiro Papa foi Constantino.

Quando morreu, em 337, Constantino foi baptizado e enterrado como um verdadeiro décimo terceiro Apóstolo, e na iconografia eclesiástica, veio a ser representado recebendo a coroa das mão de Deus.

Mais tarde, já com Teodósio, o cristianismo haveria de tornar-se a religião oficial do Império, institucionalizando-se profundamente na sociedade romana e constituindo um polo de união comum a todos os territórios conquistados, surgindo o profissionalismo religioso e toda uma estrutura teológica e uma casta sacerdotal dominante, que se impunha aos fiéis proclamando de forma rígida e autoritária que «fora da Igreja não há salvação».

Quase dezassete séculos depois do Concílio de Niceia comemora-se uma vez mais o Solstício de Inverno, transformado habilmente por Constantino nas comemorações do nascimento do Deus dos cristãos.

O Concílio de Niceia foi de tal modo primordial para o cristianismo ? e para a religião católica em particular ? que ainda hoje os seus fundamentos e princípios doutrinais e filosóficos são precisamente os mesmos que foram inventados por Constantino.

Até é precisamente o mesmo o raciocínio e o hábil jogo de palavras que faz passar o cristianismo por… uma religião monoteísta.

De facto, é através de um mero jogo de palavras a que chama um «Mistério», isto é, um dogma que não tem explicação possível, que esta religião persiste em fazer-se passar como «uma das três grandes religiões monoteístas do mundo».

Mas que de monoteísta nada tem!

Só deuses tem três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Podem os mais fiéis defensores do «Mistério da Santíssima Trindade» dizer que estes três deuses são, afinal, um só.
Mas o que é facto é que eu conto três: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Quanto ao Deus «Espírito Santo», que à boa maneira cristã é de formulação masculina, sempre se diga ainda que, com a sua atitude típica e persistentemente misógina, os católicos perderam a oportunidade de tornar a sua origem e a sua explicação bem mais interessante.
Poderiam, por exemplo, ter dado mais atenção ao apóstolo Filipe que nos transmitiu no seu evangelho gnóstico, excluído por Constantino da honra de figurar na Bíblia entre os evangelhos canónicos:

«Alguns dizem que Maria concebeu do Espírito Santo.
«Erram, não sabem o que dizem.
«Quando é que uma mulher concebeu de uma mulher?»

A explicação para este aparente contra-senso é bem simples:

É que em grego, língua original em que foram escritos os evangelhos e até em copta, o idioma para que foram em primeiro lugar traduzidos antes de transpostos para os idiomas actuais, «Espírito Santo»… é do género feminino!
E assim, com uma simples mudança do género de uma palavra numa tradução, a Igreja Católica perdeu a oportunidade de respeitar a «Santíssima Trindade» na formulação original de «Sagrada Família», isto é, de Pai, Mãe e Filho.

Depois, a estes três deuses acresce a mãe do Deus Filho.
De tal modo deificada que, tal como Jesus Cristo, e apesar falta de sustentação bíblica para tal, foi feita subir ao Céu em corpo e alma após a sua morte terrena.
E já vão quatro!

De tal forma que, assumindo várias personalidades consoante as regiões geográficas, e multiplicando-se como que para afirmar o politeísmo cristão, a Nossa Senhora de Fátima, ou de Lourdes, ou a Virgem Negra polaca, ou a Virgem de Guadalupe sul-americana, concorrem mesmo com os três principais deuses na devoção dos cristãos.
Diz-se mesmo que o Papa João Paulo II, conhecido como «devoto mariano», mais que aos seus próprios patrões rezava à mãe do Deus Filho.

Depois, aparecem os santos. Que se contam aos milhares!
E que são tão deuses como os outros deuses, pois com eles concorrem na adoração dos fiéis cristãos e como eles são omnipotentes e omnipresentes.

E não é essa a definição de «Deus»?

De tal modo, que em todos os cristãos existe um «santo de devoção», frequentemente corporizado numa imagem ou num ícone, a quem se pede um favor, uma graça, ou «uma cunha» para um emprego, para a cura de uma doença ou para um prémio no Euromilhões.

Foi também com um hábil jogo de palavras que o Segundo Concílio de Niceia (o sétimo Concílio Ecuménico), realizado no ano de 787, distinguiu o que é «adoração» do que é «veneração».
E estipulou que pedinchar uma coisa a um Deus, se chama «adorar»; e que pedinchar a mesma coisa a um santo se chama «venerar».
Embora os resultados previsíveis da pedinchice sejam basicamente os mesmos.

Não admira, pois, que os cristãos, com um folclore, uma mitologia e uma iconoclastia tão rica, sejam tão preocupados e cuidadosos a celebrar o Natal.

E se é assim, então, a todos um bom Natal!

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)

24 de Dezembro, 2005 fburnay

Galileu e a Igreja (II)

O cardeal Bellarmine (1542 -1621), S. Roberto Belarmino para os católicos, tornou-se um homem poderoso ao recusar a sua elegibilidade para papa, dando assim a oportunidade a Camillo Borghese de se tornar Paulo V em 1605, exercendo depois a sua influência nos bastidores. Bellarmine conhecia pessoalmente Galileu e apesar de não serem propriamente amigos mantinham uma relação amigável. Bellarmine iniciou os seus estudos teológicos em Pádua, em 1567. Os professores de Bellarmine eram tomistas e ele viria a tornar-se o primeiro jesuíta a ensinar na universidade de Pádua.


Roberto Bellarmine foi canonizado em 1930, mas em 1889 já havia sido erigido em Itália um monumento em memória de Giordano Bruno, que Bellarmine levou à fogueira.

Dedicou-se ao ensino da Summa Theologica de Tomás de Aquino, opondo-se ao jansenismo, que defendia maior fidelidade à linha original de Agostinho de Hipona. Tornou-se famoso pelas controvérsias geradas em torno do protestantismo, ao qual se opunham também os jansenistas (de facto todas estas oposições religiosas, mesmo entre protestantes, espalhavam a confusão na Europa e deram muitas dores de cabeça também a Johannes Kepler, um homem de uma religiosidade sui generis, apesar de profunda, que ora benificiava da benevolência de príncipes tolerantes ora lhe via recusada a eucaristia por pensar de forma diferente).Bellarmine ocupou-se, na década de 1590, da perseguição de Giordano Bruno. Depois de ter estado fugido de Itália Bruno voltou à procura de um lugar vago na universidade de Pádua. Bruno acabou por ser detido pela Inquisição, ficando preso muitos anos. Finalmente o inquisidor Bellarmine apresenta-lhe uma escolha: ou renega todas as suas crenças ou arde na fogueira. Bruno, que havia procurado uma renegação parcial sem sucesso recusou-se à abjuração e foi queimado vivo em 1600 por arianismo (docetismo noutras versões) e prática de magia. Um ano antes Clemente VIII tinha elevado Bellarmine a cardeal. Mas não é senão 10 anos depois da morte de Giordano Bruno que os problemas começam para Galileu.


«Reconheço o estilo da Cúria Romana», terá dito Sarpi quando um médico lhe descreveu as feridas deixadas pelos seus falhados assassinos.

Frei Paolo Sarpi (1552 – 1623) era um amigo pessoal de Galileu. As suas visões teológicas pouco ortodoxas e também muito mais provavelmente os seus conhecimentos de matemática obtidos em Mântua certamente contribuiram para essa amizade. Os problemas de Sarpi começaram aquando de uma nomeação do estado de Veneza para uma cobiçada diocese que terminou com a acusação de que ele não acreditava na imortalidade da alma, questionando assim Aristóteles. De facto Sarpi correspondia-se com diversas pessoas, muitas das quais hereges aos olhos da Igreja. O facto de Sarpi trabalhar ao serviço do estado de Veneza só piorava as coisas já que há muito que Roma pretendia impôr ordem nestas paragens. Se bem que Roma não dispunha de um exército suficientemente poderoso, o empenho de Paulo V em restaurar a autoridade da Igreja fazia-se notar cada vez mais ao longo do seu pontificado e Veneza era uma pedra no sapato. Como resposta à exigência de submissão incondicional dos venezianos, Sarpi defendeu os interesses da república o que fez com que fosse eleito conselheiro teológico. Os atritos entre Roma e Veneza acabam com a excomunhão do Doge e de todos os venezianos. Em resposta ao ataque (que foi generalizadamente ignorado pelos venezianos) Sarpi publica um livro em que se revela estar contra o direito divino de reis e papas, livro esse que foi instantaneamente adicionado ao Index. Veneza expulsou todos os jesuítas. A crise foi subindo de tensão até que arrefeceu depois de algum tempo – Sarpi foi então convidado a visitar Roma para discutir o assunto com Bellarmine. Sabendo o que o esperava, Sarpi recusou e o senado veneziano proibiu-o mesmo de deixar a república. Em Roma, os livros de Sarpi arderam. E em Veneza, o seu salário duplicou. Até que numa noite um grupo de assassinos o esfaqueou deixando-o moribundo na rua. Sarpi, surpreendentemente, sobreviveu a 15 facadas e os perpetradores malogrados fugiram, não surpreendemente, para Roma. É Sarpi quem, em 1609, intercede por Galileu numa audiência com o Doge de Veneza, adiando as negociações com um estrangeiro que trazia uma estranha invenção – o telescópio. Galileu ganhou assim prioridade de apresentar o seu próprio telescópio, construído entretanto. Daí a poucos anos a Igreja não estaria mais indiferente às ideias de Galileu.

24 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

Boas-festas

Voltar às origens na noite de consoada é a viagem marcada no calendário, imposta pelo hábito e repetida pela inércia. À medida que as coisas e os lugares se encaixam cada vez menos na memória mais intensamente os procuramos. Parte-se em busca do passado e teme-se a desilusão de não achar sinais. Mas volta-se sempre, quiçá com vontade de exumar memórias, de recuperar sonhos e afectos que nos fazem falta, como se no eterno regresso surgisse a fonte da juventude.

Todos os anos, quando Dezembro chega, o frio vem lembrar-nos a festa que se aproxima ao ritmo da nossa ansiedade, enquanto os apelos ao consumo nos seduzem, insinuando uma felicidade duradoura. Fazem-se compras sem ponderação e arquivam-se prendas à espera de destinatário. Os livros têm nesta época o lugar que mereciam durante o ano, viajam com as pessoas à espera de leitor, quedam-se em mãos que os afagam ou, simplesmente, arquivam-se no abandono da estante.

Depois de árduas discussões no seio dos casais decide-se o local da consoada em unânime contrariedade. Nunca durante o ano a diferença entre irmãos e cunhados ou pais e sogros se tornou tão nítida e fracturante.

A viagem é o regresso magoado aos locais e memórias de um tempo que já foi, por entre chuva miudinha e frio de rachar. Doem o ossos em intermináveis filas de trânsito antes de se ver iluminada a torre do campanário onde outrora soavam as horas de dias muito mais calmos.

Chega-se de noite e de mau humor com o vento gélido a arrefecer sorrisos compostos para a chegada e os quartos húmidos indiferentes aos nossos ossos e ao reumático.

A lareira é o destino e centro de um semicírculo de profundos afectos e sólidos rancores que se reúnem alinhados por ordem etária na casa dos mais velhos e são alimentados a filhós e bolos que líquidos capitosos ajudam a empurrar. É aí que se desembrulham as prendas embaladas em papel reluzente com laços artisticamente colados. Agradece-se com um sorriso de desprezo aquele presente desinteressante do parente que nos detesta. Fica-se deslumbrado com a oferta generosa que redime uma ofensa antiga e enternece-nos a simples presença de quem não pede desculpa por gostar de nós.

Recordam-se em silêncio os ausentes pela falta que fazem e a saudade que produzem e os presentes pelo incómodo que provocam e o fastio que acarretam.

Quase todos se empanturram na esperança de matar de vez a fome ancestral de gerações que permanece viva na memória de quem a herdou durante séculos. Gabam-se os pastéis de bacalhau recheados de batata a tresandar a óleo, a excelência do peru mal assado, a qualidade do polvo que saiu duro, repetindo-se discretamente a dose de bacalhau cozido, batatas e couves, regados com azeite de boa qualidade, numas merecidas tréguas ao bitoque e à pizza, enquanto se aguarda a panóplia de doces e frutos secos. São momentos para acumular prazer e peso enquanto a azia e os espasmos não devolvem o remorso e o incómodo.

Por uma noite repousam os guerreiros das batalhas adiadas do quotidiano, levam para o seio familiar uma ou outra intriga para não perderem o treino, cumprimentando-se com uma profusão de ósculos ora fraternos, ora de circunstância. E, por entre os votos canónicos de Boas Festas, recordam-se pequenos agravos e ruminam-se vinganças por umas palavras que não caíram bem, algum insulto durante a disputa do relógio de ouro do avô ou aquela terrina da Vista Alegre que espalharam a cizânia nas últimas partilhas.

Sobrevive do paganismo o festejo do solstício de Inverno. Fez dele a tradição judaico-cristã a festa da família. E quando a família se comporta como deve, a festa acontece e é um suave pretexto de encontros ansiados em volta de sabores que a memória guarda e de aromas que nos transportam à infância numa viagem carregada de afectos e saudade.

Que no dia certo haja festa em vossas casas, caros leitores.

Boas-festas, caros leitores.

(Publicado simultaneamente no «Ponte Europa»

23 de Dezembro, 2005 Carlos Esperança

O juiz decidiu

Como a Palmira assinalou no artigo «Neo-Criacionismo 0 – Ciência 1», nos EUA um juiz proibiu o ensino da teoria divina, considerando inconstitucional o criacionismo como alternativa ao ensino do evolucionismo.

Há quase século e meio, Darwin apresentou a teoria da evolução das espécies e reduziu a cacos o mito da criação, comum às três religiões monoteístas, mito que transformava os primórdios da reprodução em mero artesanato da olaria divina.

Deus gozava até então de enorme credibilidade e os seus padres de grande prestígio. A ciência feriu de morte a mitologia, debilitou a fé e pôs em risco os negócios religiosos.

Valeu a capacidade de adaptação dos tartufos.

Não é Deus que move as religiões, é o poder. Pouco importa aos padres que as pessoas da Santíssima Trindade sejam três ou trezentas, que os mandamentos sejam dez ou cem, que tenham sido dados a Moisés ou a Maomé, que os pecados se lavem com detergente ou com a confissão, que as missas sejam em vernáculo ou em latim.

É preciso que haja criancinhas para mergulhar em água benta, cristãos que estendam a língua à partícula com a sofreguidão com que nas cervejarias devoram tremoços, beatos que vão em peregrinação aos sítios onde poisa a Virgem, supersticiosos que comprem indulgências e governos que untem a máquina da fé com o óbolo do erário público.

A religião não é só o tóxico que envenena a mente, é o placebo que alimenta o ócio do clero e o proselitismo dos alcoviteiros do divino. E o Paraíso é apenas uma falsa empresa de apartamentos explorada por promitentes vendedores.

23 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Momentos de humor do ano

Um dos prémios vai para Bento XVI e a sua explicação, debitada no dia 8 de Dezembro, de que não é um maçador insuportável quem segue estritamente os ditames do Vaticano. Apropriando-se da bondade como exclusivo dos católicos que seguem à risca as anacrónicas e anti-natura emanações de Roma, o Papa afirmou que ser bom não é sinónimo de ser maçador e pediu às pessoas que rejeitem a ideia de que estão a perder algo se não pecarem.

Considerando que para a Igreja católica praticamente tudo é pecado, com especial ênfase no sexo que é sempre pecaminoso excepto o com fins procriativos dentro do casamento, como indicado abundantemente nas 10 páginas do novo catecismo sobre os «pecados sexuais», e se considerarmos que a liberdade é o pecado maior, acho deliciosa esta frase do Papa, pronunciada na ocasião:

«A suspeita emerge em nós que uma pessoa que não peca é, no fundo, um maçador; que algo falta na sua vida: a dimensão dramática de ser livre».

23 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Árvore cristã do ano

E o prémio vai para a árvore oferecida por uma organização anti-aborto do Kansas a um ginásio local, decorada da forma que considero mais reveladora do espírito cristão da época: meias azuis e cor-de-rosa com bonecos de plástico representando fetos, com rótulos que os identificavam «entre 11 e 12 semanas». Para a chantagem psicológica ser completa a árvore oferecia ainda cupões para panfletos (incluindo um sobre a pílula do dia seguinte) e vídeos da organização, com especial destaque para um que detalha os procedimentos envolvidos num aborto.

22 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

De volta a 1633?


Agostinho de Hipona refutando os hereges, iluminura do século XIII, Morgan Library, New York

Quem pensa que os julgamentos por heresia são algo do passado e que o pedido de desculpas de João Paulo II pelo mui conhecido julgamento de Galileu indica que esse passado não se repetirá, está completamente enganado. Assim como está iludido quem acredita no discurso ecuménico da santa madre Igreja.

De facto, a diocese de San Bernardino, Califórnia do Sul, viveu há pouco mais de uma semana algo que os peritos indicam ser uma raridade na história dos Estados Unidos, um dos dois julgamentos por heresia da Igreja Católica neste país. Em ambos os casos os hereges em julgamento são dois ex-padres católicos (curiosamente da mesma diocese) que abandonaram a igreja em favor de movimentos católicos ecuménicos.

O padre agora julgado, Ned Reidy, que não nega as acusações que sob ele pendem, o facto de ter deixado a Igreja de Roma por outra religião e de advogar ensinamentos que violam a doutrina cristã, recusou participar da audiência que ele considera «medieval e totalmente não cristã» acrescentando «É como se a Inquisição tivesse voltado».

Mas não percebe certamente como no século XXI, o século da plena liberdade religiosa, é sujeito a um julgamento por heresia uma vez que a diocese de San Bernardino não tem qualquer jurisdição sobre ele ou a sua nova igreja, a Comunhão Ecuménica Católica. Aliás, Reidy foi excomungado automaticamente no momento em que aderiu a esta confissão católica «liberal», que, heresia máxima, não reconhece a infalibilidade papal, e diverge dos ditames do Vaticano em temas «fracturantes» como sejam o divórcio, contracepção, homossexualidade e celibato dos sacerdotes. Assim, esta igreja não só abençoa uniões homossexuais como ordena padres casados, divorciados, homossexuais para além de, horror dos horrores, mulheres!

De facto, as acusações de heresia (e cisma) ao ex-padre foram expressas numa carta do promotor de justiça da diocese, Stephen Osborn, que explicita entre as «ofensas contra os fiéis cristãos» e o ensino de «matéria contrária à lei divina e à lei universal da Igreja Católica» a recusa da Igreja Católica Ecuménica em aceitar a infalibilidade do Papa, a benção de uniões homossexuais e a ordenação de mulheres.

Não obstante Reidy, como evidenciado na página da paróquia ecuménica que preside, Pathfinder Community of the Risen Christ, afirmar que «Nós somos uma comunidade católica não romana» e pouco depois desta comunidade ter sido fundada a diocese de San Bernardino ter avisado os católicos locais por carta de que «sofreriam danos espirituais sérios» se participassem em qualquer actividade ecuménica, a diocese justifica a necessidade do julgamento para «clarificar oficialmente o seu estatuto dentro da Igreja». Pensar-se-ia que a excomunhão já o teria clarificado cabalmente…

Marc Balestrieri, o advogado que pediu a excomunhão por heresia de John Kerry quando este disputava a presidência dos Estados Unidos com G. W. Bush, congratula o bispo Gerald R. Barnes pela coragem e fibra moral demonstradas com este julgamento medieval. E espera que o seu exemplo seja seguido pelos seus colegas, ou seja, que se recupere essa prática tão salutar para a fé como o são os julgamentos por heresia.

22 de Dezembro, 2005 Palmira Silva

Doutrina ou interesse económico?

Dos Estados Unidos chega-nos a notícia que o arcebispo de St. Louis, Raymond Burke, excomungou os seis membros do conselho de direcção da igreja de St. Stanislaus Kostka e o padre polaco, Marek Bozek, que estes tinham contratado recentemente, na sequência de uma longa querela com o arcebispo que se recusava a nomear um padre para a paróquia após ter retirado os anteriores.

Na origem do conflito está simplesmente um problema de dinheiro já que graças a uma disposição de 1891, um ano após o estabelecimento da paróquia, quer a propriedade quer o controle financeiro desta igreja está nas mãos do conselho (leigo) de direcção. Desde que foi nomeado o arcebispo exige ser ele a a controlar financeiramente a paróquia, o que inclui a propriedade da igreja.

Bob Zabielski, um dos membros da direcção agora excomungados e que o arcebispo convidou a reconciliar-se com a igreja cedendo-lhe o controle da igreja e do dinheiro que movimenta, afirmou «Isto é apenas a última de uma série de acções vergonhosas que nos foram feitas nos últimos anos. Ele quer a propriedade e é isso, e ele usa todas as armas do seu arsenal».

A reacção dos paroquianos parece indicar que as ambições imobiliárias do arcebispo não vão ter sucesso. Alguns paroquianos expressam a sua admiração pelo padre Bozek que segundo eles se sacrificou para garantir que a paróquia tinha o padre há mais de um ano negado pelo arcebispo. Porque, como afirmou um paroquiano, Stan Rozanski, as excomunhões eram «algo que sabíamos ir acontecer». Mas afirmou-se ainda espantado por uma situação que começou como «uma disputa de propriedade» ter terminado com excomunhão.

«Este é mais um exemplo das tácticas medievais usadas contra pessoas que apenas tentam ser bons católicos. Ele [o arcebispo] poderia ter excomungado toda a paróquia… Nós não vamos mudar».

22 de Dezembro, 2005 lrodrigues

Uma Escolha Consciente

Segundo a «Agência Ecclesia» o Papa Bento XVI decidiu nesta quadra de Natal inspirar-se em Santo Agostinho.

De facto, o Papa elegeu uma exortação de Santo Agostinho para os votos do primeiro Natal do seu pontificado.
Pelo seu próprio punho, o Papa escreveu em latim:
«Expergiscere, homo: quia pro te Deus factus est homo»
Que é como quem diz: «Desperta, homem: porque, por ti, Deus se fez homem».
Mas quem foi este tal de Santo Agostinho?
Aurelius Augustinus, que viveu entre os anos 354 e 430 foi considerado um «Doutor da Igreja» e deixou uma obra vastíssima entre livros, cartas e sermões.
Sem sermos exaustivos, respiguemos (principalmente da Wikipedia) apenas alguns aspectos da biografia deste brilhante cristão, até para tentarmos compreender de onde vem a admiração que, pelos vistos, por ele sente o Santo Padre, o Papa Bento XVI.
Para já, Santo Agostinho é considerado pelos protestantes evangélicos a fonte teológica inspiradora da Reforma.
Não obstante, este santo homem começou por ser um fervoroso adepto do Maniqueísmo, uma espécie de mistura explosiva de Zoroastro com Jesus Cristo. Só aos 33 anos, sob a nefasta influência de Santo Ambrósio, bispo de Milão, se converteu ao cristianismo.
Depois era um confesso tarado sexual e, como se não bastasse um irredutível pedófilo.
Enquanto proclamava a sua máxima preferida «dêem-me a castidade, mas por enquanto ainda não», Santo Agostinho manteve por mais de uma década uma concubina de tenra idade, e que lhe deu um filho.
Mas que não hesitou em abandonar à sua sorte para fazer um casamento de sociedade.
Uma vez mais teve de esperar dois anos para que a sua noiva tivesse idade legal para casar.
Foi ordenado padre em 391. É nomeado bispo assistente de Hipona cinco anos depois, abandona mais uma mulher e converte-se então ao celibato.
Coincidência ou não, juntou-se com um grupo de amigos, criou uma fundação monástica em Tagaste e fechou-se com eles lá dentro.
Deve-se a Santo Agostinho a adopção oficial pelo cristianismo ocidental da ideia de «pecado original» e também do conceito da «predestinação divina», tão do agrado de tantos teólogos ainda hoje.
Foi também a sua hábil distinção teórica entre «magia» e «milagres» que durante séculos sustentou ideologicamente a luta da Igreja contra o paganismo e a bruxaria.
Santo Agostinho foi também um feroz anti-semita, defendendo a dispersão dos judeus pelo mundo.
Separou habilmente a origem judaica de Jesus Cristo do judaísmo de um modo geral porque, dizia, os judeus não acreditavam que Cristo fosse o Messias.
As suas teorias serviram de base ideológica para inúmeras perseguições a judeus, que considerava irrecuperáveis inimigos da Igreja Cristã.
Mas foi principalmente a sua luta sem quartel contra os Donatistas que mais fama granjeou a Santo Agostinho.
O Donatismo foi uma doutrina religiosa cristã que defendia que os sacramentos só eram válidos se quem os ministrava era digno de o fazer.
Pelo contrário a religião católica defende que os sacramentos valem por si, seja o ministrante (geralmente um sacerdote) um indivíduo corrupto ou não.
É então que este santo homem defende pura e simplesmente o uso da força contra os donatistas e a sua completa aniquilação, dizendo:
«Porque não deveria a Igreja usar da força para compelir seus filhos perdidos a retornar, se os filhos perdidos compelem outros à sua própria destruição?»
Em suma:
É neste homem que o Papa Bento XVI resolveu inspirar-se neste aniversário do nascimento do Deus dos cristãos.
Um homem que além de tarado sexual, pedófilo e anti-semita, defendia o assassinato e a aniquilação física de quem não perfilhava as suas ideias religiosas.
Uma escolha certamente muito consciente.
E que, por isso mesmo, é bem capaz de dizer muito de Bento XVI…

(Publicado simultaneamente no «Random Precision»)