27 de Dezembro, 2005 Palmira Silva
A sétima dimensão
«Pois eu vou ver os limites da Terra fecunda, e o Oceano, origem dos deuses, e Tétis, sua Mãe» Homero, Ilíada.
Segundo Teilhard de Chardin nada é inteligível fora do seu lugar histórico, assim a compreensão das sociedades actuais é inseparável da história da religião, da filosofia e da ciência e podemos acompanhar a evolução das religiões prevalecentes analisando a conjuntura cultural em que surgiram e como se desenvolveram. De facto, desde que os acasos da evolução permitiram ao Homem o desenvolvimento de um complexo sistema neuronal os seres humanos apresentam uma apetência inata por explicações. Esta é certamente uma das razões que explica porque a religião tem acompanhado o Homem ao longo da História, uma vez que as religiões se reclamam detentoras da verdade absoluta, global, completa, tanto no que respeita à natureza como ao homem.
Desde a Renascença que a Cristandade, a supremacia da religião sobre todos os aspectos da vida, está em declínio no Ocidente. O Humanismo, o traço dominante do Renascimento, venceu o teocentrismo medieval, com a sua redescoberta do homem, confiante no seu intelecto, poder e valor, em contraste com a Idade Média, que apenas considerara o homem como um ser pecaminoso e sem valor intrínseco. Libertação do homem renascentista bem representada no discurso «Da dignidade do homem» (Hominis Dignitate) de Picco della Mirandola.
A dignificação do homem traduz-se igualmente numa dignificação da vida: o homem medieval que morria para fazer viver Deus deu lugar ao homem da Renascença que ao viver plenamente a vida, não mais apenas uma passagem para outro mundo mas uma vida com valor intrinseco, deixa de olhar para o céu em mistícas contemplações divinas mas passa a escrutinar o seu mundo que descobre natural e sujeito apenas a leis naturais. O resultado último do naturalismo do renascimento é, pois, a ciência.
Ciência que contrapõe às «verdades absolutas» reveladas por um Deus criador um modelo da realidade, parcial, em permanente construção e no qual o homem não é mais do que um elemento da natureza, de que é o produto. Ou seja, para além da sua ambição comum de fornecerem uma leitura coerente do mundo sensível, a religião e a ciência ocupam o mesmo espaço: o do pensamento humano. Durante séculos, a religião manteve uma posição de preponderância, oferecendo aos homens uma verdade inquestionável e indispensável. Hoje verificamos exactamente o inverso e, apesar das tentativas IDiotas de recuperação desta hegemonia integrista, são poucos os que buscam na religião as respostas ao mundo sensível que estas durante milénios ofereceram ao Homem.
O argumento que a religião e a ciência operam em dimensões diversas e que estão preocupadas com questões diferentes, do mundo «espiritual» e do mundo material, não colhe, já que as religiões surgem e desenvolvem-se para preencher o papel hoje ocupado pela ciência. E por outro lado a ciência, mais concretamente as neurociências, negam a necessidade de invocar qualquer transcendência para explicar a «espiritualidade» humana.
Para uma ateísta como eu, para quem a mera concepção de um qualquer ser transcendente é absurda, a religião é completamente desnecessária e toda a minha «ligação» para além da física, isto é, a minha metafísica, se reduz à sua definição por William James, «apenas um esforço extraordinariamente obstinado para pensar com clareza», isto é, sem arbitrariedade nem dogmatismo. Assim a minha hipótese metafísica, a natureza fundamental da realidade, assenta em quatro pontos que resumidamente são:
1) Ontologia,(a natureza da realidade ou do ser) O Universo é auto-suficiente na sua existência e rege-se por leis naturais que determinam a natureza do ser de todos os seus componentes. A introdução de uma qualquer entidade externa que o criou e de que é dependente é completamente absurda e desnecessária.
2) Epistemologia (a teoria do conhecimento) O conhecimento e interpretação do Universo estão contidos e derivam do próprio Universo. A interpretação do Universo assenta em princípios lógicos que derivam da razão humana, por sua vez explicável por leis naturais.
3) Ética e Moral O direito que rege as sociedades deve transcrever o progresso ético da humanidade e não «verdades absolutas» reveladas de uma qualquer mitologia. Verdadeiro e falso são valores lógicos atribuídos a uma determinada proposição, ou seja, a verdade não pode ser absoluta, porque ela é um conceito que emitimos sobre uma proposição. Uma verdade de ontem pode não ser uma verdade hoje, porque o contexto em que essa verdade é avaliada mudou ou porque novos dados entretanto descobertos transformaram essa verdade em mentira.
A moral é simplesmente o conjunto de respostas automáticas do nosso sistema neuronal a estímulos exteriores e tem a ver não só com causas hereditárias e ambientais mas com os estímulos a que fomos sujeitos na infância, durante o período de desenvolvimento das conexões neuronais e crescimento dos «spindle neurons».
4) Teleologia Não há qualquer propósito no Universo. O Universo é simplesmente aquilo que vemos, é a única realidade existente e nós somos apenas um infíma consequência de processos naturais casuísticos. O significado da nossa vida é o que fazemos dela e não há qualquer causa última quer para nós quer para o Universo.