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Dois milénios de obscurantismo: a escolástica pré tomista

Como referi logo no primeiro post devotado ao tema, considero que o início da longa «noite de mil anos» cristã se situa no Natal de 800, data da coroação de Carlos Magno por Leão III, que investiu o rei franco da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. Simultaneamente Leão III conseguiu desta forma cimentar o poder da Igreja na Europa medieval, que já detinha um poder económico considerável uma vez que a Igreja de Roma, a única instituição que sobreviveu à queda do Império Romano, possuía cerca de um terço das áreas cultiváveis, a base da riqueza medieval, da Europa ocidental.

Carlos Magno (768-814) reinava assim sobre um continente europeu fragmentado e desorganizado. Para restaurar o império, precisava do apoio da Igreja, a única estrutura organizada sobrevivente. A consequência cultural e civilizacional da união entre a Igreja e o Estado foi o que alguns apelidam de renascimento carolíngio que na realidade se traduziu no início de um obscurantismo de que o Ocidente só começou a sair na Renascença. Um longo período da História em que a civilização europeia cristã foi acorrentada aos dogmas das Escrituras e sujeita a vigilância constante e repressiva pela Igreja.

De facto, a supremacia total da Igreja sobre o pensamento da época, que se traduziu não só na asfixia na difusão do conhecimento como na perseguição de quem diferisse uma vírgula das emanações da Igreja, deve-se a Carlos Magno que criou uma quase obrigatoriedade de fornecer instrução aos cidadãos europeus por parte da Igreja. Pretendendo imitar o Império Romano e assegurar a unidade do seu vasto império, como a única estrutura sobrevivente passível de tal tarefa era a Igreja, encarregou-a de educar religiosamente os povos bárbaros que o constituíam. Para além disso Carlos Magno precisava urgentemente de preparar uma classe dirigente e, em especial, de dispor de funcionários letrados, capazes de cumprir tarefas que assegurassem a funcionalidade do império.

Assim, criou um grande número de escolas em mosteiros, conventos e abadias, para além de fundar, junto da sua corte e no seu próprio palácio, a chamada Escola Palatina, precursora das Universidades (sob domínio católico, claro) que começaram a surgir na Europa a partir do século XII. Estas escolas deveriam ser presididas por um eclesiástico, scholasticus, dependente directamente do bispo, daí o nome de escolástica dado à doutrina católica a partir do século IX.

Os traços característicos da escolástica são, tal como na patrística, a subordinação à teologia do pensamento antigo, especialmente dos filósofos gregos, Platão, mais concretamente o neoplatonismo, na escolástica pré-tomista, Aristóteles na escolástica tomista e de novo o neoplatonismo na versão agostiniana do pós Tomás de Aquino. Em todas as vertentes da escolástica afirma-se a supremacia da Igreja em relação às instituições seculares, nomeadamente defende-se (e implementa-se) que o direito deve ser elaborado a partir da teologia, pois Deus é o seu fundamento.

Um dos pomos de discórdia entre os vários períodos da escolástica tem a ver com o livre arbítrio, uma vez que para os neoplatónicos do período inicial da Escolástica, tanto a vontade, como a razão de Deus, determinavam o justo, pois só «Deus é criador do Justo». Daí serem chamados de voluntaristas. Já a linha tomista é não-voluntarista, pois o que determina a justiça é a natureza das coisas e a natureza racional do homem. Nesse sentido, Deus é apenas conselheiro e guia do Justo.

O teólogo mais proeminente do período inicial da escolástica é Scoto Eriúgena, um teólogo originário da Irlanda, dita Scotia maior, Eriu em língua céltica, daí o nome de Scoto Eriúgena. Em 874 é chamado à corte de Carlos o Calvo, para presidir e leccionar na escola palatina. A sua obra principal, De Divisione Naturae, (847)uma obra marcadamente neoplatónica, com uma interpretação realista dos universais (um conceito mental, a natureza intrínseca das realidades expressas por palavras universais como homem, árvore, animal, etc.), foi posteriormente condenada pela Igreja em 1225…

O facto do saber neste período medieval partir exclusivamente dos clássicos e ser reproduzido com muita interpolação em enciclopédias sortidas, de acordo com o autor «copista» mas seguindo as piedosa censura proposta por Agostinho, impediu a inovação do conhecimento. Por outro lado como se procedia à «purga» dos clássicos de forma a «comprovar» as opiniões da Igreja muito do conhecimento perdeu-se, irremediavelmente não fora ter sido conservado pela civilização árabe. Foi um período em que a aversão pelo empirismo propiciou o desenvolvimento de lendas sortidas, em que se acreditava nas coisas mais mirabolantes como são exemplo os bestiários medievais. Estas obras compiladas por monges pretendiam, como não podia deixar de ser, ensinar ao homem o caminho da redenção, e atribuiam a cada animal um significado místico, tendo como base as Sagradas Escrituras. Nas páginas dos bestiários abundam animais míticos como a fénix, o unicórnio, a sereia, cavalos alados e afins. Lendas como a do reino de Prestes João, um mítico reino cristão situado «para lá da Pérsia e da Arménia», governado por um rei-sacerdote denominado Iohannes Presbyter, descendente de um dos Reis Magos, propagada por Hugo de Gebel, bispo de uma colónia cristã no Líbano, preenchiam o imaginário dos europeus oprimidos e crédulos.

Foi um período de obscurantismo supersticioso em que reinou o maravilhoso, uma fuga ao insuportável quotidiano determinado estritamente pela Igreja, o mirabilis (o maravilhoso de origens pré-cristãs), o magicus (o sobrenatural maléfico) e o miraculosus (o maravilhoso cristão, o milagre que ainda hoje perdura).

De facto, a característica principal deste período escolástico pré-tomista, que se estendeu até ao século XIII, é a luta dos teólogos mais influentes, ou seja, os místicos, contra a ciência e a filosofia por eles considerada um resíduo pagão, uma distracção mundana, uma demonstração de vaidade e orgulho intoleráveis num cristão. Mistícos bem representados por São Pedro Damião no século XI e São Bernardo de Claraval (ou Clairvaux) no século XII.

Este último, que pregava a ignorância piedosa afirmando que «Deus não obedece à lei ordinária», combateu especialmente a linha filosófica dos chamados dialécticos, escola de pensamento cristão iniciada por Anselmo de Aosta (1033-1109), que cometiam a heresia de advogarem o uso da razão.

Segundo Bernardo, estes «hereges» «desvirtuavam a fé exigida pelos mistérios de Deus» e perseguiu Pedro Abelardo, o sucessor de Anselmo no uso blasfemo da razão, que, acusado de heresia, foi condenado em dois concílios, Soissons e Sens.

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