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Os vagabundos do limbo

Uma excelente notícia para todos os ateístas que, como foi a minha experiência com as minhas filhas, especialmente a mais velha que teve graves problemas de saúde em bébé, vão deixar de ser perseguidos por fervorosos cristãos sob o pretexto de que estão a condenar os respectivos filhos às profundas do inferno (ou do limbo, para os poucos que distinguem entre os conceitos) se não os baptizarem.

De facto, séculos de grandes efabulações teológicas sobre o destino dos «justos» não baptizados vão ser em breve apagados das páginas da doutrina católica. Assim, mais uma verdade «absoluta» da Igreja de Roma está prestes a ser abandonada (ia escrever vítima do relativismo moderno mas certamente que a uma emanação de Roma o termo não se aplica). Estou a falar do limbo, mais propriamente limbos, um conceito aplicado teologicamente a (sic)

(1) lugar temporário ou estado das almas dos justos (mortos antes da crucificação do mítico fundador da religião) que, apesar de livres de «pecados», estão «excluídos da visão beatífica até a ascensão triunfante de Cristo ao Céu» (o limbus patrum) ou

(2) lugar ou estado permanente daquelas crianças não baptizadas e de outros que, morrendo sem algum pecado pessoal grave, são excluídos da visão beatífica por causa do pecado original (o limbus infantium).

A comissão teológica internacional da Igreja de Roma começou ontem uma reunião devotada ao tema cujo desfecho prevísivel será a abolição do limbo da colecção de sofismas doutrina católica. De facto, o actual Papa já deu indicações enquanto Ratzinger que considera o limbo apenas «uma hipótese teológica» (que ele não sustenta) e, porque o limbo é actualmente uma questão delicada neste ponto, afirmou mesmo que «Está ligado à causa do pecado original mas muitos bébés morrem porque são vítimas».

Reforçando que o que está em causa é o destino no «além» das crianças não baptizadas, que o relativismo dos tempos modernos impede aceitar ser condenação a um limbo quasi eterno por uma mera falta de aspersão aquosa, o Cardeal Georges Cottier, teólogo da Casa Pontifical, afirmou ontem ao italiano La Stampa: «Nós necessitamos considerar e levar em conta que muitas crianças morrem vítimas dos males modernos – fome no mundo, e muitos males provenientes das enormes desordem social e miséria, sem falar nos frutos de abortos e coisas semelhantes».

De facto, mais de seis milhões de crianças morrem anualmente de fome em países subdesenvovidos, exactamente os mesmos (e únicos) países onde a Igreja vê aumentar os seus rebanhos. E a Igreja está preocupada que o conceito do limbo não impressione favoravelmente potenciais clientes, especialmente se considerarmos que entre a concorrência, nomeadamente a islâmica, tal condenação não existe. Aliás, para o islamismo todas as crianças que morrem vão direitinhas ao céu sem precisarem qualquer teste.

A teoria dos limbos tornou-se doutrina comum a partir de Anselmo de Cantuária (início do século XII), ratificada por Inocêncio III (1160-1216) que disse que os que morreram «apenas» com o pecado original a manchar as suas almas não sofrerão «outra pena, seja fogo material ou do verme da consciência, excepto a dor de ser privado para sempre da visão de Deus» (Corp. Juris, Decret. l. III, tit. xlii, c. iii – Majores). Como não poderia deixar de ser, o primeiro a elaborar o que aconteceria aos bébés não baptizados foi Agostinho de Hipona, que os considerava condenados aos fogos eternos do Inferno. Lucubrações retomadas e suavizadas por Tomás de Aquino que afirmava não sofrerem estes inocentes alguma dor da perda da visão divina ou «aflição interior», nihil omnino dolebunt de carentia visionis divinae, dando assim a volta ao dogma de condenação eterna dos não baptizados, justificado pela resposta a Nicodemos do mítico fundador da religião descrito em João 3, 5: «Em verdade, em verdade Eu te digo: quem não nascer da água e do Espírito, não poderá entrar no Reino de Deus».

Considerando as inúmeras «almas» que, de acordo com os ensinamentos da Igreja ainda em vigor, habitam o tal limbo (povoado, entre outros, por incontáveis óvulos fertilizados, embriões e fetos não nascidos) questiono-me qual será o destino que a Igreja de Roma dará a estes vagabundos dos limbos. E qual o sofisma com que resolverão a contradição dogmática que a falta de limbo irá introduzir, já que, supostamente, todo o ser morto sem a graça do baptismo está condenado para a eternidade. Para não falar na desculpa que será necessário arranjar para justificar o proselitismo e a evangelização (supostamente indispensáveis para salvar as «almas», mesmo justas, desta condenação eterna).

Claro que seria utópico esperar que ao abolir o limbo a Igreja Católica abolisse igualmente a intolerância que a caracteriza, mas pelo menos deixa de existir justificação para a imposição do catolicismo desde o berço. E menos uma razão para a guerra das cruzetas em que a Igreja Católica, que se acha acima da lei dos homens, transformou o mero cumprimento da lei máxima nacional.

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