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Dois mil anos de obscurantismo – os primeiros anos

Alguns dos nossos leitores insurgiram-se contra os termos em que o Carlos assinalou a passagem do 2º aniversário do Diário Ateísta e que dá título a este primeiro post devotado ao tema.

Devemos desculpas a esses leitores: na realidade não foram dois milénios de obscurantismo, nem sequer 1700 anos, desde que Constantino criou o catolicismo tal como o conhecemos hoje, numa tentativa de manter a unidade do Império Romano. Talvez possamos fazer coincidir o despoletar do obscurantismo com o início da Idade Média, situada por muitos historiadores em 395, data da morte de Teodósio, o Grande, imperador do Ocidente e do Oriente, que uns anos antes reconheceu o cristianismo como religião oficial do Império Romano e baniu os templos pagãos.

Na minha opinião, devemos traçar o declínio intelectual ocidental e o início da longa «noite de mil anos» cristã ao Natal de 800, data em que Leão III coroou o rei franco Carlos Magno como imperador do Sacro Império Romano, investindo-o da suprema autoridade temporal sobre os povos cristãos do Ocidente. O Sacro Império Romano durou mil anos até declinar em 1806 e a coroação de Carlos Magno marcou a data em que o papado se tornou o principal centro de poder espiritual e temporal da Idade Média. E alargou a toda a Europa o obscurantismo cristão vigente desde o início da Idade Média e até aí confinado às zonas de influência directa dos fanáticos cristãos.

Podemos dividir as causas desse obscurantismo em razões biológicas, que serão abordadas num próximo post, e razões a que chamarei socio-culturais. Na realidade a divisão é apenas de conveniência explicativa uma vez que ambas estão intimamente interligadas.

Começando então pelas causas socio-culturais que basicamente se podem resumir ao estrangulamento da difusão do saber e à censura dos (poucos) textos científicos preservados em território cristão. E passo a explicar porque atribuo ao cristianismo o estrangulamento na difusão do saber que grassou na Europa e foi depois exportado para os territórios colonizados pelas potências europeias, Portugal incluído, com uma análise do que se passava no pré-cristianismo e nos territórios não sujeitos à influência nefasta deste.

A difusão e preservação do saber, nomeadamente na forma de bibliotecas, era uma prática corrente na Antiguidade. Existem inúmeros vestígios desta difusão na Pérsia, Ásia Menor, etc. mas especialmente na Mesopotâmia e no Egipto. Na Mesopotâmia, mais concretamente na Babilónia, centro da dinastia Amorita (2100-1600 a.C.) e capital no reinado de Hamurabi (1792-1750 a.C.) esses vestígios assumem a forma de placas de argila inscritas com registos de matemática e economia. Existem ainda placas que parecem conter colecções de exercícios que o mestre distribuía aos seus alunos e pequenas placas que parecem ser a solução de problemas anotados pelos alunos.

Sabemos também que o rei assírio Assurbanipal (668-631 a.C.), criou uma biblioteca, uma das mais antigas de que há registo, no seu palácio da capital da Assíria, Nínive, que continha mais de 10 000 placas de argila.

Os vestígios da difusão do saber na forma de incipientes bibliotecas no Antigo Egipto são menos evidentes já que os egípcios utilizavam papiro, menos resistente à passagem do tempo. De qualquer forma existem inscrições em diversos templos que indicam a existência de bibiotecas e de bibliotecários que as mantinham (dois dos quais enterrados com pompa em Tebas).

As primeiras grandes bibliotecas surgiram em Atenas, nomeadamente a fundada por Pisístrato em 540 a.C. e, especialmente importante, a biblioteca escolar do Liceu de Aristóteles, considerada por muitos como a mais importante antes da biblioteca de Alexandria.

Sem dúvida que Alexandria é o paradigma da difusão do saber com o seu Museu (um instituto de pesquisa em medicina e ciências naturais) e a Biblioteca que, segundo a História, resulta da migração para o Egipto do conceito grego de cultura, universal e cosmopolita, introduzido por Alexandre o Grande (que fundou Alexandria) e continuado pelo primeiro faraó macedónio da dinastia ptolomaica, Ptolomeu I. Demétrio de Phaleron circa 297 a. C. não precisou de grandes dotes de eloquência para convencer Ptolomeu I a fundar em Alexandria algo similar à Academia de Platão ou ao Liceu de Aristóteles da sua nativa Atenas, de que foi governador entre 317 e 307 a.C. .

Carl Sagan, que dedicou algumas páginas a Alexandria e à sua biblioteca no seu livro «Cosmos», escreveu: «Sabemos, por exemplo, que nas prateleiras da biblioteca existiu um livro do astrónomo Aristarco de Samos, defensor de que a Terra era apenas um planeta que, tal como os outros, girava em torno do Sol e que as estrelas estavam a distâncias enormes. Cada uma destas conclusões é inteiramente correcta mas tivemos de esperar quase 2000 anos pela sua redescoberta. Se multiplicarmos por 100 000 a perda deste livro de Aristarco, poderemos fazer uma ideia da grandiosidade da civilização clássica e da tragédia que representou a sua destruição.»

Não obstante as tentativas de revisionismo histórico por parte dos cristãos, actualmente a atribuição da destruição da biblioteca de Alexandria ao general árabe Amrou Ben Al-As, que conquistou o Egipto em 642, está em descrédito sabendo-se hoje que se verificaram uma série de destruições nos finais do século IV perpetradas pelo zelo fanático dos cristãos contra as instituições e os símbolos da cultura pagã. Aliás, o bárbaro assassínio da brilhante matemática Hipatia no início do século V pelos devotos seguidores de São Cirilo indica ser o fervor cristão a causa mais provável da destruição deste repositório do saber da Antiguidade, considerado herético pelos cristãos.

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