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Uma religião de aparências

Após o recente sínodo dos bispos católicos fomos informados da piedosa recomendação da Igreja de Roma aos divorciados que casaram novamente ou mantêm uma relação de facto, uma faixa de mercado cada vez maior nas sociedades ocidentais e que por conseguinte a Igreja não quer perder. A dita recomendação, embora pedindo aos muitos católicos nesta situação que participem na missa dominical onde quiserem, aconselha-os a ir a uma igreja onde a sua situação «pecaminosa» não seja conhecida se desejarem comungar, para «evitar que alguém possa ficar escandalizado». Para a Igreja de Roma o importante é não escandalizar os outros, isto é, mais importante que seguir um código de conduta moral, é agir de acordo com o que os outros irão pensar.

Na realidade esta recomendação hipócrita está em plena concordância com uma religião que é apenas uma religião de aparências, sem qualquer coerência moral nas suas posições, contrariamente ao que muitos consideram. Aliás, um dos pontos que me irrita solenemente nalguns católicos com que tive o desprazer de discutir ética e moral é a pseudo superioridade moral com que condescendentemente me informam que têm princípios morais «absolutos», algo que eu como ateísta nunca poderei reinvidicar. E que o importante não é seguir esses princípios (afinal os homens são fracos pecadores) mas poder usá-los como arma de arremesso contra os «imorais» ateus, que até podem ser pessoas bem formadas, com princípios éticos consistentes e coerentes que de facto seguem à risca, mas estes são meramente «utilitários» já que não são divinamente inspirados. E, embora ajam de forma a respeitar os outros, como não afirmam ser a sua regra de ouro o impossível «amor ao próximo» essa é uma conduta imoral porque ateísta e como tal não merece respeito! Isto é, para os católicos o mal feito por quem acredita em Deus deve ser relevado (e é militância ateia recordá-lo); o bem feito por quem nem sequer considera válida a concepção de qualquer ser transcendental é por isso necessariamente considerado se não mal pelo menos um bem meramente utilitário e sem valor!

Na realidade, os muitos sofismas católicos a que alguns chamam doutrina são desenhados apenas para manter aparências e para enganar os mais incautos com uma suposta coerência moral que na realidade é inexistente. Um exemplo perfeito é o chamado «efeito duplo», invocado para permitir o aborto no caso de uma gravidez ectópica, cujo desfecho se não interrompida é a morte da mãe (o embrião a partir do momento em que se implanta nas trompas não tem qualquer hipótese de sobrevivência). Este requinte de imoralidade afirma ser perfeitamente legítima uma acção directa promovida por uma razão moral não obstante ter um efeito indirecto negativo. No caso da gravidez ectópica a aplicação deste sofisma resulta em ser imoral a ingestão de um simples comprimido mas ser moral a mutilação da mulher. Se aplicado no quotidiano poderia resultar em situações bizarras como, por exemplo, ser perfeitamente legítimo aos criadores de porcos de Leiria disporem dos resíduos da respectiva actividade na Ribeira dos Milagres uma vez que poderiam alegar ser o seu intento directo evitar custos que resultariam no despedimento de funcionários. Enfim, há o problema da poluição mas esse é um efeito indirecto, não desejado, negativo é certo mas não intencional!

Tudo isto a propósito de uma notícia a que cheguei via Renas e Veados que dá conta que uma escola católica nova-iorquina despediu uma professora de ensino primário por estar grávida e ser solteira. A demissão de Michelle McCusker, considerada pela escola uma professora com «elevado grau de profissionalismo», aconteceu dois dias depois de ter informado a direcção da escola que estava grávida e pretendia levar a termo a gravidez. As razões indicadas para a demissão explicitam que McCusker violou os princípios religiosos do centro escolar. Que se pressupõem ser ter ousado engravidar fora do matrimónio e não ter feito nada para terminar a gravidez, uma vez que se o tivesse feito continuaria a leccionar na escola Santa Rosa de Lima, no condado de Queens.

Entretanto a União de Liberdades Civis de Nova York (NYCLU), que ganhou uma acção semelhante há dois anos, outra piedosa instituição católica que despediu uma professora que decidiu ter um filho fora do matrimónio, moveu em nome da docente um processo contra a escola à Comissão Federal de Igualdade de Oportunidades no Emprego (EEOC) alegando, correctamente, que este despedimento católico é discriminatório e portanto ilegal.

Acusação que a Liga Católica nega: «A ideia de que a Igreja está a discriminar uma mulher grávida porque é mulher é ridícula, porque é óbvio que os homens não engravidam. Esse é um problema a discutir com a Natureza, não com a Igreja». E eu a pensar que a Natureza era uma invenção dos ateus evolucionistas…

Ou seja, mais uma vez para a Igreja Católica o que é importante são as aparências, e as aparências neste caso são um pouco difíceis de ocultar.

Ficaria agradavelmente surpreendida se a Igreja Católica tivesse reagido em coerência com os propalados valores que os seus devotos debitam abundantemente nas nossas caixas de comentários. Ou seja, uma reacção de amor pelo próximo (a vida da jovem professora não vai ser fácil, sem emprego e num estado em que lhe será difícil arranjar outro num futuro próximo), de perdão e compreensão e, especialmente, de aceitação de alguém, que embora tendo cometido um «erro» segundo os padrões da Igreja, aceitou as consequências desse erro em vez de as esconder.

Mas, claro, uma reacção dessas é impossível para a (i)moralidade católica, que reflecte uma religião apenas de aparências, sem qualquer substância. Aliás, como já o afirmei várias vezes, na minha opinião o grande obstáculo à evolução moral da Humanidade é a religião em geral e a católica em particular. Devido ao seu inegável poder e influência a Igreja de Roma mantém-nos reféns de um modelo social hipócrita, em que é mais importante parecer que ser, e que para além do mais está completamente desadequado da realidade. Enquanto os obsoletos e imorais paradigmas cristãos não forem substituídos por modelos humanistas, centrados na dignidade humana, será difícil ultrapassarmos a crise social que actualmente atravessamos!

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