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Os crucifixos na escola pública são inconstitucionais

  1. A presença de crucifixos nas salas de aula de escolas públicas é inconstitucional e ilegal. É inconstitucional porque «as igrejas (…) estão separadas do Estado» e «a liberdade de consciência (…) é inviolável» (artigo 41º da Constituição da nossa República), porque «o ensino público não será confessional» (artigo 43º) e porque «todos os cidadãos têm a mesma dignidade e são iguais perante a lei» e «ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) religião» (artigo 13º). É ainda ilegal porque «o Estado não adopta qualquer religião» e «ninguém pode ser obrigado a (…) receber (…) propaganda em matéria religiosa» (artigos 4º e 9º da Lei da Liberdade Religiosa).
  2. O actual Presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Menéres Pimentel, enquanto Provedor de Justiça assinou em 1999 um parecer sobre a presença de crucifixos nas salas de aula de uma escola pública de Lisboa, no qual declarou que «trata-se de uma situação desconforme com o princípio da separação das confissões religiosas do Estado e, concomitantemente, com a liberdade religiosa individual e com a liberdade de consciência, que não pode ser sustentada nem pelo peso da tradição, nem pela vontade maioritária ou quase unânime dos encarregados de educação».
  3. A inconstitucionalidade da presença de crucifixos nas salas de aula de escolas públicas está portanto assente e é assumida pelos poderes públicos. Apenas por desconhecimento, militância clericalista ou laxismo se pode transigir com a situação actual e inventar argumentos para não cumprir preceitos da Constituição. E o cumprimento da Constituição não pode depender nem de relações de poder de nível escolar, nem de pedidos de pais que têm o direito de manter a sua crença ou ausência de crença privada.
  4. Apesar de a lei que nos une ser clara, são invocados em defesa da permanência dos crucifixos diversos argumentos que importa desmontar. O primeiro é geralmente o argumento da tradição. A esse, respondo que tudo o que nos é essencial tem em Portugal uma tradição recente: a liberdade, a democracia ou a laicidade, por exemplo. Mais, informa-se que a «tradição do crucifixo» nem é muito antiga: data de 11 de Fevereiro de 1936, quando foi legislado na Assembleia Nacional salazarista que «em todas as escolas públicas do ensino primário e infantil existirá, por detrás e acima da cadeira do professor, um crucifixo, como símbolo da educação cristã, determinada na Constituição». Portanto, quem quiser defender a «tradição do crucifixo» que o faça consciente de que é uma tradição salazarista e fundada na Constituição fascista de 1933.
  5. Outro argumento muito invocado, e igualmente perigoso, é o da «maioria sociológica». Porém, é por termos uma Constituição que os nossos direitos individuais estão acima das maiorias conjunturais e das tradições. As «comunidades» em que vivemos não têm o direito de saber se professamos esta ou aquela religião ou nenhuma, de nos obrigarem a respeitar a religião da maioria, ou de nos obrigarem a conviver com símbolos religiosos em espaços que são de todos. Não se pode presumir a indivíduo algum, por estar inserido num grupo, uma «identidade cultural» que ele pode querer alterar ou a que pode querer renunciar de todo.
  6. Como argumento de desespero, existe quem invoque o trabalho caritativo feito por instituições ligadas à ICAR. Confesso que não suspeitava de que esse trabalho é feito em troca de contrapartidas deste género… Será que se deve fazer uma contabilidade de quantos crucifixos vale cada malga de sopa dada a um sem abrigo? É preferível que o Estado apoie as obras de assistência social independentemente da crença ou não crença de quem as faz.
  7. Numa situação de ainda maior desespero, existe quem argumente com o hipotético «valor artístico» de alguns crucifixos. Sem querer entrar em discussões de gosto, sugiro que onde houver necessidade de ter obras de arte na sala de aula se substituam os crucifixos por reproduções de quadros impressionistas ou clássicos, ou reproduções de esculturas de Rodin…
  8. Só seremos iguais como cidadãos, o ateu e o católico, o muçulmano e o baha´i, o protestante e o budista, se cada um de nós aprender a respeitar o espaço do outro, e o Estado garantir a neutralidade dos espaços que são de todos. A sociedade será tanto mais livre e plural quanto mais o Estado for laico. A liberdade religiosa exerce-se na esfera privada e associativa, sem apoios indevidos nem interferências do Estado para além de zelar pelo cumprimento das leis comuns a todos. O Estado não deve promover nem impedir o exercício da religião. As escolas não são igrejas.

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