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Mês: Outubro 2005

26 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais casos de pedofilia

O governo irlandês investigou mais casos de pedofilia no seio da Igreja católica, agora na diocese de Ferns em County Wexford. De acordo com o relatório de 271 páginas foram registadas mais de 100 queixas de abusos sexuais alegadamente cometidos por 21 padres da diocese entre 1966-2002. As queixas contra 6 deste padres foram provadas em tribunal. O relatório indica também que, no mui católico país, as investigações da polícia foram inadequadas, ou seja muito provavelmente os restantes 15 padres não foram condenados porque as acusações não foram devidamente investigadas.

O relatório é muito crítico especialmente do bispo de Ferns no período entre 1960 e 1980, Donal Herlihy, que considerava os casos de pedofilia na sua diocese como nada mais que um «problema moral». Ou seja, as crianças abusadas constituíam apenas um pormenor irrelevante, o problema grave era a imoralidade de um padre que não respeitava o voto de celibato e incorria em pecado «carnal». Com um total desrespeito pelas vítimas, os padres acusados de abusar sexualmente de crianças eram simplesmente transferidos para outra paróquia ou outra diocese por um tempo mas mais tarde regressavam ao seu «rebanho» inicial.

Como diz o Filipe no Oeste Bravio, referindo-se à análise de John Stewart sobre a aparente contradição de a ICAR por um lado defender os padres pedófilos e por outro estar lançada numa cruzada homofóbica em que acusa «os homens-sexuais de andarem a destruir a civilização ocidental»: para a Igreja Católica «a homossexualidade é uma doença incurável que não pode ser tolerada por nenhum bom cristão. A pedofilia é um problema conjuntural que se resolve mudando o padre de freguesia.»

26 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

B16 – regedor do Vaticano

O cardeal Joseph Ratzinger foi várias décadas Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé – ex-santo Ofício -, espécie de Ministério Romano para a Promoção da Virtude e Prevenção do Vício. O mérito valeu-lhe a prorrogação do prazo de validade canónica por JP2, o Papa que dirigiu a ICAR até algumas horas após a morte.

O Opus Dei fez do cardeal inquisidor o Papa Bento 16.

B16 foi autor do rol dos pecados mortais e veniais e seu diagnóstico diferencial. A cópula é pecado mortal para solteiros mas pode tornar-se virtude em casais abençoados pelo sacramento do matrimónio se o objectivo único for a prossecução da espécie.

B16 elaborou o código de conduta eleitoral, para políticos católicos, em questões como o aborto, a eutanásia e outras, que o demo subtilmente tem trazido à colação e só lhe falta mandar actualizar o Índex dos livros proibidos, inalterável desde 1961.

B16 é o guardião da moral e dos bons costumes, avençado do divino, que não desiste de encaminhar almas para o redil da ICAR.

Ele não é apenas o representante de um cadáver com dois mil anos, é o responsável pelos negócios feitos à sombra da cruz, o estratego da divulgação da hóstia, o autor dos certificados de garantia dos milagres e o mais credenciado especialista para transformar a água vulgar em benta.

Do bairro de 44 hectares, que é o seu habitat, dirige um exército imenso de beatos, padres, frades, bispos e freiras, disposto a obedecer-lhe, capaz de dar e tirar a vida para lhe agradar.

Do seu covil – o Vaticano -, influencia os países católicos e traça planos para conquistar o mundo. O seu Deus é o poder e, a sua obsessão, o proselitismo.

25 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Cultura de morte nas Filipinas

Construída em finais do século XVI pelos espanhóis, a Igreja de Quiapo é um dos símbolos mais proeminentes do poder da Igreja Católica nas Filipinas. Poder que se manteve praticamente intocado até hoje, fazendo das Filipinas um dos últimos redutos da teocracia católica. Assim, nas Filipinas são seguidas (in)escrupulosamente as determinações da «santa» Igreja: os execrados métodos contraceptivos «artificiais» são anátema; a defesa de óvulos e espermatozóides absoluta em território tão dominado pela ICAR.

Na Igreja de Quiapo, situada no centro de Manila, todos os dias se podem encontrar centenas de filipinos que rezam a uma suposta milagrosa imagem de Jesus carregando a cruz. Provavelmente pedindo um milagre que os tire da miséria que caracteriza a vida da esmagadora maioria dos habitantes do país, um dos mais corruptos e com uma das maiores taxas de natalidade do mundo. Milagre que nunca acontecerá e os pobres, com proles numerosas que simplesmente não conseguem sustentar, continuarão miseráveis e ignorantes, dependentes da «boa-vontade» e «boas acções» que a Igreja, com dinheiro alheio, magnanimamente distribui, sem qualquer hipótese sequer de aprenderem a controlar a sua fertilidade. E a «santa» Igreja, que actua activamente na política do país, influenciando e determinando não só resultados eleitorais mas destituições de presidentes que não se ajoelharam convenientemente face à Igreja, já fez saber que negará comunhão a qualquer político, e dados os antecedentes fará certamente campanha contra ele, que tente promover políticas de controle de natalidade.

Mas centenas de mulheres filipinas dirigem-se à Igreja de Quiapo em busca de outro tipo de milagre, um milagre muito mais prosaico e muito mais eficiente a resolver os problemas causados pela miséria que assolam a população: uma forma de terminar uma gravidez indesejada.

Os principais pontos de venda de produtos abortivos nas Filipinas situam-se nas imediações de igrejas e a de Quiapo não é excepção. Os locais habituais de venda destes produtos situam-se a poucos metros do Monumento às crianças não nascidas, uma representação de um feto fora do útero, querubins, as mãos estigmatizadas do mítico fundador do cristianismo e uma mãe a chorar. Estátua inaugurada em 1979, ano dedicado às crianças não nascidas pela delegação local da ICAR e ano em que o Cardeal apropriadamente chamado Sin (pecado) considerou os famigerados contraceptivos os principais culpados (?!) da elevada taxa de aborto que já nessa altura se sentia no país e que, de acordo com o piedoso prelado, introduziram uma cultura de morte nas Filipinas.

«Poder-se-ia dizer que nós fornecemos milagres instântaneos às mulheres» afirmou uma das muitas vendedoras que desde há anos vendem ervas e determinados produtos abortivos em Quiapo. Assim, e ironicamente, a Igreja de Quiapo tornou-se sinónimo de aborto, um anátema punido automaticamente com excomunhão, como lembrou o porta voz da Igreja Católica local, Pedro Quitorio, em relação à famigerada pílula RU 486.

No entanto as ameaças de condenação eterna não parecem demover as mulheres filipinas, sem acesso a contraceptivos, cuja distribuição pública foi proíbida pelos bons ofícios da Igreja, com mais filhos que os que podem alimentar e cada vez mais mulheres recorrem ao aborto clandestino. E cada vez mais mulheres morrem devido às sub-humanas condições em que estes abortos são realizados. Em 2002 estimava-se em 400 000 o número de mulheres que recorreram a abortos de vão de escada e cerca de 100 000 necessitaram ser hospitalizadas na sequência de um aborto. Actualmente estima-se em 750 000 o número de abortos anuais e as complicações causadas por abortos deficientemente realizados são a 4ª causa de morte das mulheres filipinas!

Apesar do auxílio precioso de organizações internacionais, muitas mulheres não conseguem ajuda num pós-aborto problemático já que os mui católicos médicos filipinos se recusam a tratar estas pecadoras mulheres, muitas esvaindo-se em sangue. Alguns, mais «caridosos», efectuam a sangue-frio os dolorosos procedimentos necessários, dilatação e curetagem, um «apropriado» e cristão castigo do abominável pecado que cometeram.

Infelizmente, como se lamenta o Dr. Diego Danila que supervisiona este flagelo do aborto clandestino e as mortes maternais para o Departamento de Saúde filipino, todas as propostas de introdução de políticas de planeamento familiar têm sido vigorosamente boicotadas pela poderosa Igreja Católica! Que recentemente, via um grupo católico oximoronicamente chamado pró-vida, propôs uma lei que pretende proibir a venda da pílula e de dispositivos intra-uterinos nas Filipinas. Ou seja, não foram os contraceptivos mas a «santa» Igreja que de facto propiciou e continuará a propiciar uma política e uma cultura de morte para as mulheres filipinas com a sua posição inflexível, a do Vaticano, contra qualquer tipo de contraceptivos.

24 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Editor preso por blasfémia

O editor de uma revista afegã feminina, Haqooq-i-Zan (direitos da mulher), foi condenado a dois anos de prisão por um crime de blasfémia, neste caso por publicar artigos considerados anti-Islão. De facto, está em vigor uma lei da imprensa no Afeganistão, assinada pelo presidente Hamid Karzai em Março de 2004, que proíbe conteúdos considerados insultuosos ao Islão. Quando a lei foi assinada o governo afegão afirmou aos jornalistas que estes só poderiam ser detidos ao abrigo desta lei com a aprovação de uma comissão de 17 membros, que supostamente deveriam incluir representantes governamentais e jornalistas.

Mas no sábado apenas o tribunal principal de Cabul condenou Ali Mohaqiq Nasab por blasfémia e não houve qualquer comissão a apreciar o caso excepto o conselho dos clérigos islâmicos. Na realidade e nas palavras do juíz presidente Ansarullah Malawizada, Nasab foi encarcerado porque «O Conselho dos Ulamas enviou-nos uma carta dizendo que ele devia ser punido e por isso foi condenado a dois anos de prisão».

Ali Mohaqiq Nasab, um escolar islâmico progressista, foi preso em 2 de Outubro em Cabul, depois de clérigos locais terem considerado anti-islâmicos e um insulto ao Islão dois dos artigos publicados na revista. Os blasfemos, anti-islâmicos e insultuosos artigos que tanto indignaram os piedosos clérigos islâmicos questionavam o castigo atribuído a mulheres adúlteras, 100 chicotadas, e a legitimidade do apedrejamento até à morte de apóstatas…

23 de Outubro, 2005 Carlos Esperança

A burla das religiões

Quem pode levar a sério as religiões do livro? Moisés, Jesus ou Maomé não suscitaram tanto entusiasmo como as actuais estrelas pop, o Papa JP2 ou Fidel de Castro. Nenhum foi tão amado como o sanguinário Ayatollah Khomeini ou o demente Kim Il Sung II. No entanto, têm seitas com milhões de devotos que se reclamam da sua inspiração.

Figo tem mais admiradores do que Jesus teve. Cristiano Ronaldo, se não for afectado por escândalos sexuais, tem um futuro mais promissor do que se augurava a JC antes de Constantino (o 13.º apóstolo) ter entrado no negócio na primeira metade do séc. IV e mandado seleccionar a Eusébio de Cesareia evangelhos coerentes a partir de 27 versões. O Novo Testamento é menor que os Evangelhos apócrifos. Bin Laden tem mais admiradores do que Maomé teve em vida.

Os livros ditos sagrados são pouco sérios, violentos e baseados na tradição oral. A Tora foi escrita em data muito posterior à que a tradição lhe atribui. Os evangelistas nunca viram Jesus, profissional da pregação e dos milagres – uma ocupação alternativa.

O Corão foi escrito um quarto de século após a morte de Maomé e Marwan, governador de Medina, «encarregou-se de recolher, primeiro, e destruir e queimar, depois, várias versões, a fim de deixar apenas uma e evitar que a confrontação histórica revelasse a falsificação humana»[CE1] .

O mundo é muito mais antigo do que Deus julgava e a história da humanidade nada tem a ver com a sua alegada semana de trabalho. A reprodução humana nunca foi repetível pelo método divino e é bem mais eficaz e agradável do que Deus gosta.

A superstição, ignorância e medo estão na base das religiões monoteístas. A morte é a pulsão que alimenta a fé e os padres os charlatães que a promovem.

Não pode ser levado a sério quem garante que sinais cabalísticos fazem da hóstia «verdadeiramente, realmente, substancialmente» o corpo de Cristo e do vinho o sangue. Apesar do desejo cristão de que a ciência fosse abolida, qualquer laboratório confirma que, antes e depois da transubstanciação, as propriedades físicas e químicas do pão e do vinho permanecem inalteradas.

A ICAR só acertou no futuro ao desprezar o Espírito Santo. Evitou complicações com as autoridades sanitárias na sequência da actual gripe das aves. Nem o Concílio que entronizou B16 o deixou entrar. O Opus Dei dá mais luz, tem mais poder e não é fácil que a gripe das aves dizime tal fauna.

[CE1] Traité d’athéologie, Michel Onfray – Ed. Grasset 2005

23 de Outubro, 2005 Mariana de Oliveira

Aborto e Direito Penal

A questão que actualmente se coloca no aborto é uma questão jurídica e deve ser tratada como tal.

Para começar, há que esclarecer a função do Direito Penal num Estado de Direito Democrático. O Direito Penal não é, nem deve ser, um direito penal de prevenção de riscos especiais e longínquos e de promoção de finalidades específicas da política estadual. Ele é, isso sim, um direito de tutela de bens jurídicos, ou seja, de preservação das condições indispensáveis da livre realização, dentro do possível, da personalidade de cada indivíduo no seio da comunidade.

Isto conduz à questão da legitimação do poder punitivo do Estado. Tal poder tem fonte na exigência de que o Estado só deve retirar a cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias indispensáveis ao bom funcionamento da comunidade. A isto conduz igualmente o carácter pluralista e laico do Estado de Direito, que o vincule a que só recorra aos seus meios punitivos próprios para tutela de bens de relevante importância da pessoa e da sociedade e jamais para instauração e reforço de ordens axiológicas transcendentes de carácter religioso, político, moral ou cultural. O Direito Penal é, assim, um direito de «ultima ratio».

Quanto ao crime de aborto em especial, o bem jurídico que está em causa não é a vida humana, mas sim a vida intra-uterina. Actualmente, entre nós, vigora o princípio da punibilidade do crime de aborto e só nos casos previstos no art. 142º do Código Penal é admitida a IVG (causas de exclusão da culpa). Assim, nestes casos, a conduta torna-se lícita. Há aqui um conflito de valores e é esta a estrutura base comum a todas as causas de justificação e só considerando tais condutas como licitas trará coerência à exigência da intervenção de um médico e ao apoio por parte do Estado.

O princípio constitucional da inviolabilidade da vida humana tem aqui refracções e há quem adira a uma concepção absolutizadora da vida humana, defendendo também uma unidade entre vida autónoma e vida intra-uterina, não existindo aqui qualquer espaço para a permissão da IVG. No entanto, o Direito Penal não é compatível com aquela santificação da vida (neste caso, seria inadmissível a legítima defesa e o estado de necessidade) e é notório que o tratamento da vida intra-uterina é diferente do da vida autónoma. Na verdade, os crimes que tutelam aqueles dois bens jurídicos encontram-se em capítulos diferentes, têm diferentes epígrafes, diferentes molduras penais, a tentativa não é punível nos crimes contra a vida intra-uterina, a negligência não é punida e não há agravamento pelo resultado – isto de um ponto de vista penal. De um ponto de vista constitucional, os Direitos Liberdades e Garantias não valem directamente e em pleno para a vida intra-uterina, há aqui uma autonomização de dois bens jurídicos.

Ainda dentro de um ponto de vista constitucional, relativamente à hipótese de um imperativo de criminalização constante na Constituição da República por via da defesa da vida, há que notar que o legislador constitucional não apontou expressamente a necessidade de intervenção penal neste assunto particular. Desta forma, onde não existam tais injunções expressas, não é legítimo deduzir sem mais a exigência de criminalização dos comportamentos violadores de tal direito fundamental. E isto porque não deve ser ultrapassado o princípio da necessidade.

A proposta apresentada pelo doutor Figueiredo Dias, o pai do Código Penal, consiste num modelo misto das indicações e prazos mais liberalizante. Até às 10 ou 12 semanas (12 semanas porque o embrião passa a feto), a gravidez pode ser livremente interrompida. Até às 16 semanas, poderia haver interrupção com indicação terapêutica em sentido amplo ou criminológico. Até às 24 semanas, o aborto seria admitido por indicação fetopática em sentido estrito. Depois das 24 semanas, se o feto fosse inviável (indicação fetopática em sentido amplo) ou houvesse necessidade de remover um perigo de morte ou lesão grave e irreversível no corpo ou saúde da mulher grávida. Neste modelo, seria supérflua uma indicação económico-social. Seria um sistema honesto face à realidade actual: seria mais honesto para a grávida, garantira o nascimento de um maior número de nascituros e que estes vivessem a vida mais dignamente possível. É que aqui, a mãe teria mais tempo para ponderar e acabaria por ser vencida pelas contra-motivações.

Também não é possível falar no interesse do nascituro e do da grávida como se fossem realidades distintas. Os interesses do nascituro só podem ser satisfeitos no interesse e por intermédio da grávida (há uma dualidade na unidade: seres diferentes, mas um suporta o outro). Durante algum tempo, deve predominar a unidade da grávida e a decisão deve caber a ela. Depois, a dualidade predomina e só em casos contados deve o interesse do nascituro ser sacrificado.

Para além disso, deveria haver um sistema organizado de aconselhamento da grávida no serviço público

O doutor Figueiredo Dias também observa que a punibilidade da IVG nas primeiras quatro semanas é algo meramente simbólico: manter a punibilidade naquele período é algo de concretização impossível, totalmente ineficaz, desnecessário do ponto de vista do bem jurídico e talvez inconstitucional (art. 18º/2).

É óbvio que a criminalização do aborto não está a resultar e que há um grande número de abortos clandestinos que, as mais das vezes, acabam com a morte da mulher. Assim, o direito penal não está a cumprir a sua função e a existência de pena não está a servir como prevenção especial de socialização nem como prevenção geral positiva. Desta forma, como a criminalização é inconsequente, ela deveria deixar de vigorar nos termos actuais e o Estado deveria encontrar outras formas para evitar o recurso à IVG.

Como conclusão, creio que devemos deixar a questão do aborto para quem deve decidir: a mulher e, se existir, o pai. O Estado não tem legitimidade para obrigar uma mulher a dar à luz contra a sua vontade, independentemente das circunstâncias em que houve concepção e de todas as excepções consagradas no Código Penal.

23 de Outubro, 2005 Palmira Silva

Mais dilemas para os católicos

Mais dilemas morais, impossíveis de resolver através do sofismático «duplo efeito», esperam os católicos devotos. De facto a FDA, o organismo regulador dos medicamentos e práticas médicas nos Estados Unidos, aprovou na quinta-feira o primeiro transplante de células estaminais fetais em cérebros humanos, uma técnica que a conhecer sucesso permitirá num futuro próximo o tratamento de muitas doenças neuronais, genéticas e degenerativas.

Os pacientes a serem transplantados são crianças que sofrem de uma doença genética rara e fatal, denominada doença de Batten, que torna as infortunadas vítimas cegas, sem fala e paralisadas antes de as matar, na sua variante mais comum antes da pré-adolescência.

Os médicos do Centro Médico da Universidade de Stanford, Califórnia, implantarão os cérebros das de outra forma condenadas crianças com células estaminais neuronais, imaturas e saudáveis, retiradas de fetos abortados. Os médicos esperam que estas células estaminais prossigam o seu desenvolvimento nos cérebros hospedeiros produzindo o enzima impossível de transcrever (fabricar) dos genes defeituosos. Enzima que é necessário para processar o «lixo» produzido pelas células cerebrais, que sem tratamento se acumula e vai matando os neurónios da criança, diminuindo-lhe as funções biológicas até à morte. Não há qualquer outro tipo de tratamento para esta doença!

Fico na dúvida se o novo Papa, que já declarou que uma das prioridades do seu papado será exactamente a bioética, que prepara um novo documento sobre o tema, que debitou uma profusão de documentos, entrevistas e declarações sobre o assunto, irá instruir os fiéis da Igreja de Roma para deixarem morrer os seus filhos e não os sujeitarem a esta pecaminosa e imoral interferência no desígnio divino.

Aliás, existe um documento oficial do Vaticano dizendo explicita e inequivocamente que quaisquer tratamentos baseados em células estaminais embrionárias são absolutamente ilícitos. Parecer-me-ia complicado aos teólogos do Vaticano produzir um sofisma que os torne lícitos no caso de células estaminais fetais!

Mas aparentemente só em relação às mulheres «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social». E talvez como no caso das vacinas preparadas a partir de fetos abortados, o Vaticano consiga produzir um documento tortuoso permitindo práticas «imorais». De facto, embora ordenando os católicos a lutarem contra as companhias que produzem imoralmente tais vacinas, especialmente a vacina contra a rubéola para que não há alternativas «morais», o Vaticano permite a vacinação «imoral» de crianças católicas através de outro sofisma rebuscado.

Sofisma que afirma que a obrigação moral de evitar colaboração material passiva com um «crime»(ser vacinado com uma vacina ilícita) não é obrigatória se existir um inconveniente grave. Acrescentando que este é um caso de razão proporcional, uma extrema ratio, justificável num contexto de «coerção moral da consciência dos pais que são forçados a agir contra a sua consciência ou então pôr em risco a saúde dos seus filhos e de toda a população. Esta é uma escolha alternativa injusta, que deve ser eliminada tão cedo quanto possível».

Os desenvolvimentos científicos verificados no século passado tornaram impossíveis de aceitar pelos crentes posições como a do Papa Leão XII que durante uma epidemia de varíola em 1829, decretou que «aquele que permitir ser vacinado deixa de ser um filho de Deus» já que «A varíola é um julgamento de Deus e a vacinação é um desafio ao Céu» argumentando que a vacinação era uma interferência inadmissível na vontade divina.

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto III- gravidez ectópica

Depois de no post anterior ter afirmado que a posição da Igreja Católica face ao aborto é um sólido e rotundo não em todas as circunstâncias convém esclarecer que esta oposição é absoluta em relação a interrupções directas da gravidez mas existe um aceso debate sobre a «moralidade» dos abortos indirectos.

O que é e em que assenta a moralidade de um «aborto indirecto»? Um artifício rebuscado e falacioso que consiste em pretender que certos procedimentos médicos que resultem indirectamente na morte do feto ou do embrião podem constituir uma escolha moral via o princípio do «efeito duplo». Este afirma que uma acção directa promovida por uma razão moral pode ter um efeito inevitável, não intencional, indirecto e negativo.

De acordo com a Enciclopédia Católica uma acção envolvendo um efeito duplo só é moralmente aceitável se obedecer aos seguintes requisitos:

– Os efeitos negativos não são desejados e são efectuados todos os esforços razoáveis para os evitar.
– O efeito directo é positivo
– O efeito negativo não é um meio de obter o efeito positivo
– O efeito positivo é pelo menos tão importante quanto o efeito negativo

Assim, no caso de uma gravidez em que se descobre que a gestante tem um cancro no útero que se não for removido antes da viabilidade do feto causará a morte da mulher a maioria dos teólogos afirma que é uma escolha «moral» remover o útero para evitar a morte da gestante, não obstante a consequência colateral da morte do feto. A Enciclopédia Católica põe como ressalva os casos em que o procedimento impede um possível baptismo do feto, um efeito tão negativo que se sobrepõe ao efeito positivo de salvar a vida da mãe!

O problema de aplicação deste efeito duplo em casos que para qualquer outra pessoa pareceriam óbvios é evidente na gravidez ectópica, bastante frequente infelizmente, sendo a causa principal de morte de mulheres durante o primeiro trimestre de gravidez. Em cada 40-100 gravidezes ocorre uma gravidez ectópica, uma gravidez extra-uterina, frequentemente uma gravidez em que o embrião se fixa nas trompas de Falópio. Este embrião não tem qualquer hipótese de sobrevivência e a mulher corre risco certo de morte se não abortar espontaneamente antes de o embrião crescer o suficiente para provocar a ruptura da trompa.

Uma vez que a Igreja Católica não tem instruções oficiais sobre que tratamentos são lícitos ou ilícitos neste caso existem duas interpretações possíveis. A mais «progressista» exige que a gestante «respeite a vida do filho» e como tal os tratamentos «directos», que envolvem a administração de um mero comprimido ou uma pequena incisão no umbigo e subsequente remoção do feto da trompa, são proibidas. Para ser possível aplicar o «duplo efeito» numa gravidez ectópica um médico católico «progressista» deve proceder à ablação da trompa onde está implantado o embrião, que envolve uma cirurgia demorada e complexa. Ou seja, é indispensável sujeitar a gestante a uma mutilação e cirurgia desnecessárias apenas para satisfazer as convolutas (i)moralidades católicas.

Imoralidades claramente falaciosas na opinião de bioéticos reconhecidos, como Peter Singer da Universidade de Princeton. Que afirma «A distinção entre efeito directo intencional e efeito indirecto é um artíficio. Não podemos evitar responsabilidade simplesmente dirigindo a nossa intenção para um efeito em vez do outro. Se prevemos ambos os efeitos devemos assumir responsabilidade por todos os efeitos prevísiveis das nossas acções».

De qualquer forma a moralidade do duplo efeito é a interpretação «progressista». A interpretação tradicional da Enciclopédia Católica, afirma categoricamente que é ilícita qualquer intervenção numa gravidez ectópica, em que o embrião é «um agressor injusto» mas o efeito negativo (matar o embrião) é o meio de obter o positivo (salvar a mãe).

Todas estas questões (e mais algumas não mencionadas) conjugadas com a explosão do número de instituições de saúde religiosas nos Estados Unidos (generosamente financiadas com dinheiro público pelas administrações Bush), em que as católicas que correspondem a 18% de todos os hospitais e 20% das camas em solo norte-americano, preocupam algumas associações norte-americanas. Instituições católicas que se regem por uma directiva emanada da conferência de Bispos católicos americanos que tem uma secção muito detalhada (e muito nociva) sobre saúde reprodutiva da mulher…

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto II

A posição da Igreja Católica sobre o aborto, em qualquer momento da gravidez sejam quais forem as razões que o motivem, violação, incesto ou para salvar a vida da mãe, é sempre um sólido não. Em países europeus, em que tal posição não seria aceite pela opinião pública, não a explicitam em todos os detalhes, mas em países do terceiro mundo podemos apreciar sem disfarces toda a extensão desta aberração.

Um exemplo de quão imoral é a posição da Igreja em relação ao aborto pode ser ilustrado com um caso recente. Em finais de 2002 uma criança de 8 (oito!) anos foi violada na Costa Rica e ficou grávida (e infectada com doenças sexualmente transmíssiveis) em consequência de tão abjecto acto.

Os pais, com o auxílio de organizações não governamentais, conseguiram levar a criança de volta para o seu país de origem, a Nicarágua, e interromper a gravidez da criança numa clínica privada, depois de um painel de três médicos ter declarado que a vida da criança corria grave perigo quer levasse a gravidez a termo quer a terminasse. De facto, na Nicarágua, um país católico em que a Igreja Católica detém uma influência (nefasta) considerável, ainda são permitidas interrupções de gravidez em que a vida da mãe ou do feto corram «risco imediato». Claro que a «santa» Igreja local, que segue estritamente os ditames do Vaticano, pretende que a lei criminalize até esta possibilidade de aborto que, nas palavras do Bispo Abelardo Mata «é um crime abominável mesmo quando disfarçado por atenuantes pseudo-humanitárias como aborto terapêutico»

A posição da Igreja Católica foi a prevísivel de tão piedoso conjunto de celibatários. Pela voz do Cardeal Miguel Obando y Bravo, excomungou todos os envolvidos: os pais da criança, os médicos, os membros das ONGs, incluindo a Women’s Network Against Violence. O mui influente Cardeal pressionou ainda o governo da Nicarágua para proceder criminalmente contra os envolvidos, depois de ter enviado aos dirigentes da Nicarágua uma carta aberta em que afirma que o «crime» cometido pelos pais da criança é equivalente aos ataques por bombistas suicidas!

A excomunhão foi posteriormente levantada devido às ondas de indignação contra a Igreja que tal acto levantou, especialmente em Espanha, que incluiram uma petição assinada por 26 000 católicos que, face à actuação da Igreja, pediam para também serem excomungados.

22 de Outubro, 2005 Palmira Silva

A Igreja e o aborto I

tinha referido que para Igreja de Roma a mulher não detém qualquer tipo de direitos sobre o seu útero e quando digo qualquer tipo de direitos refiro-me aos ditames da Congregação para a Doutrina da Fé, liderada à altura pelo actual Papa, que explica muito claramente que nem em caso de uma futura gravidez acarretar morte certa para a mulher é permissível a um médico católico proceder à ablação do útero (laqueação das trompas é sempre proibido). Indicando que «A opinião contrária, que considera as supracitadas práticas referidas nos números 2 e 3 como esterilização indirecta, lícita em certas condições, não pode portanto considerar-se válida e não pode ser seguida na praxe dos hospitais católicos.».

O que a maioria dos nossos leitores certamente não conhecerá são as disposições aberrantes da Igreja de Roma em relação a situações que qualquer pessoa normal consideraria obviamente não problemáticas. Refiro-me à gravidez ectópica, ou gravidez fora do útero, normalmente nas trompas de Falópio, ou a casos em que é impossível sobreviverem mãe e feto.

A questão não é académica porque os hospitais católicos são obrigados a seguir as normas ditadas de Roma e estas normas, como veremos, são, não apenas nos exemplos que se seguem, completamente inadmissíveis.

Na sua encíclica Humanae Vitae, o Papa Paulo VI escreveu: «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social (…) o aborto, mesmo por razões terapêuticas, deve ser absolutamente proibido». Ou seja, quando um parto corre mal, o feto não tem hipóteses de sobrevivência e os médicos são confrontados com as opções:

  • Matar o feto e salvar a vida da mulher;

  • deixar a natureza seguir o seu curso e assistirem à morte de ambos, parturiente e feto,

a única decisão moral, a ser seguida em hospitais católicos, é a última.

Como é indicado na Enciclopédia Católica nem mesmo quando o feto é «um agressor injusto» (gravidez ectópica, a que voltarei) e quando «pareça desejável salvar a vida da mãe» é legítimo matar o feto. Indicando as decisões do Tribunal do Santo Ofício, a autoridade em semelhantes assuntos à data, de 28 de Maio de 1884 e de 18 Agosto de 1889, em relação à pergunta do Cardinal Caverot de Lyons se era legítimo matar o feto para salvar a mãe. A resposta foi não! Essa parece ser também a posição da sucessora do Santo Ofício, a Congregação para a Doutrina da Fé, que confirma que tal prática não é admissível nem em casos de «problemas sérios de saúde, por vezes de vida ou de morte, para a mãe».

Aliás esta tem sido consistentemente a posição da Igreja do Roma sobre a questão «É lícito matar o feto para salvar a vida da mãe?» desde que o avanço médico a proporcionou, expressa não só nos supramencionados documentos mas também na carta encíclica Casti Conubii (1930) do pio Pio XI, reiterada em 1951 pelo papa Pio XII, o tal que manteve um silêncio ensurdecedor em relação ao Holocausto mas foi muito vocal na sua condenação de tal possiblidade1.

Posição que se mantém até aos dias de hoje e, se possível, é ainda mais explícita na encíclica Veritatis Splendor (1993) onde o Papa João Paulo II afirma que o aborto é intrinsecamente mal e que não há excepções que o permitam. Para vincar bem o facto parece reclamar da sua infalibilidade na encíclica de 1995 Evangelium Vitae, em que se pronuncia sobre qualquer forma de aborto qualquer que seja a razão que o motive:

«Assim, pela autoridade que Cristo conferiu em Pedro e seus sucessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral (…) Nada e ninguém pode de alguma forma permitir a morte de um ser humano inocente, seja um feto ou um embrião».

Aliás por isso João Paulo II canonizou Gianna Beretta Molla com o título Mãe de Família, uma mãe que deve ser o paradigma das mulheres cristãs, que confrontada com uma gravidez que se levada a termo resultaria na sua morte se «sacrificou» cristãmente!

A parte curiosa tem a ver com casos em que apenas um, a mãe ou o feto, pode ser salvo. Neste casos, como nos informa Uta Ranke-Heinemann, a Igreja decretou que a criança tem precedência. A razão não é tanto salvar uma vida mas, seguindo a doutrina agostiniana da condenação eterna de bébés não baptizados, permitir o baptismo do feto. De facto, de acordo com o teólogo (século XX) cardeal Bernhard Haring, a mãe deve submeter-se a qualquer prática, incluindo as de consequências mortais, que permita o baptismo do feto. Haring responde assim à pergunta retórica de Pio XI na encíclica Casti Connubii «O que poderia ser razão suficiente para justificar a morte directa de uma pessoa humana?». A resposta do piedoso cardeal é o baptismo de um recém-nascido, como indica no seu livro «A Lei de Cristo», em que assevera que uma mãe deve arriscar a sua vida para permitir o baptismo do feto.

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann.