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A Igreja e o aborto I

tinha referido que para Igreja de Roma a mulher não detém qualquer tipo de direitos sobre o seu útero e quando digo qualquer tipo de direitos refiro-me aos ditames da Congregação para a Doutrina da Fé, liderada à altura pelo actual Papa, que explica muito claramente que nem em caso de uma futura gravidez acarretar morte certa para a mulher é permissível a um médico católico proceder à ablação do útero (laqueação das trompas é sempre proibido). Indicando que «A opinião contrária, que considera as supracitadas práticas referidas nos números 2 e 3 como esterilização indirecta, lícita em certas condições, não pode portanto considerar-se válida e não pode ser seguida na praxe dos hospitais católicos.».

O que a maioria dos nossos leitores certamente não conhecerá são as disposições aberrantes da Igreja de Roma em relação a situações que qualquer pessoa normal consideraria obviamente não problemáticas. Refiro-me à gravidez ectópica, ou gravidez fora do útero, normalmente nas trompas de Falópio, ou a casos em que é impossível sobreviverem mãe e feto.

A questão não é académica porque os hospitais católicos são obrigados a seguir as normas ditadas de Roma e estas normas, como veremos, são, não apenas nos exemplos que se seguem, completamente inadmissíveis.

Na sua encíclica Humanae Vitae, o Papa Paulo VI escreveu: «Não é lícito, mesmo pelas razões mais graves, fazer o mal para que se siga o bem, isto é, fazer ao objecto de um acto positivo da vontade algo que é intrinsecamente imoral, e como tal indigno da pessoa humana, mesmo quando a intenção é a salvaguarda ou promoção do bem estar individual, familiar ou social (…) o aborto, mesmo por razões terapêuticas, deve ser absolutamente proibido». Ou seja, quando um parto corre mal, o feto não tem hipóteses de sobrevivência e os médicos são confrontados com as opções:

  • Matar o feto e salvar a vida da mulher;

  • deixar a natureza seguir o seu curso e assistirem à morte de ambos, parturiente e feto,

a única decisão moral, a ser seguida em hospitais católicos, é a última.

Como é indicado na Enciclopédia Católica nem mesmo quando o feto é «um agressor injusto» (gravidez ectópica, a que voltarei) e quando «pareça desejável salvar a vida da mãe» é legítimo matar o feto. Indicando as decisões do Tribunal do Santo Ofício, a autoridade em semelhantes assuntos à data, de 28 de Maio de 1884 e de 18 Agosto de 1889, em relação à pergunta do Cardinal Caverot de Lyons se era legítimo matar o feto para salvar a mãe. A resposta foi não! Essa parece ser também a posição da sucessora do Santo Ofício, a Congregação para a Doutrina da Fé, que confirma que tal prática não é admissível nem em casos de «problemas sérios de saúde, por vezes de vida ou de morte, para a mãe».

Aliás esta tem sido consistentemente a posição da Igreja do Roma sobre a questão «É lícito matar o feto para salvar a vida da mãe?» desde que o avanço médico a proporcionou, expressa não só nos supramencionados documentos mas também na carta encíclica Casti Conubii (1930) do pio Pio XI, reiterada em 1951 pelo papa Pio XII, o tal que manteve um silêncio ensurdecedor em relação ao Holocausto mas foi muito vocal na sua condenação de tal possiblidade1.

Posição que se mantém até aos dias de hoje e, se possível, é ainda mais explícita na encíclica Veritatis Splendor (1993) onde o Papa João Paulo II afirma que o aborto é intrinsecamente mal e que não há excepções que o permitam. Para vincar bem o facto parece reclamar da sua infalibilidade na encíclica de 1995 Evangelium Vitae, em que se pronuncia sobre qualquer forma de aborto qualquer que seja a razão que o motive:

«Assim, pela autoridade que Cristo conferiu em Pedro e seus sucessores e em comunhão com os Bispos da Igreja Católica confirmo que a morte directa e voluntária de um ser humano inocente é sempre gravemente imoral (…) Nada e ninguém pode de alguma forma permitir a morte de um ser humano inocente, seja um feto ou um embrião».

Aliás por isso João Paulo II canonizou Gianna Beretta Molla com o título Mãe de Família, uma mãe que deve ser o paradigma das mulheres cristãs, que confrontada com uma gravidez que se levada a termo resultaria na sua morte se «sacrificou» cristãmente!

A parte curiosa tem a ver com casos em que apenas um, a mãe ou o feto, pode ser salvo. Neste casos, como nos informa Uta Ranke-Heinemann, a Igreja decretou que a criança tem precedência. A razão não é tanto salvar uma vida mas, seguindo a doutrina agostiniana da condenação eterna de bébés não baptizados, permitir o baptismo do feto. De facto, de acordo com o teólogo (século XX) cardeal Bernhard Haring, a mãe deve submeter-se a qualquer prática, incluindo as de consequências mortais, que permita o baptismo do feto. Haring responde assim à pergunta retórica de Pio XI na encíclica Casti Connubii «O que poderia ser razão suficiente para justificar a morte directa de uma pessoa humana?». A resposta do piedoso cardeal é o baptismo de um recém-nascido, como indica no seu livro «A Lei de Cristo», em que assevera que uma mãe deve arriscar a sua vida para permitir o baptismo do feto.

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann.

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