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IVG II: as raízes

Para conseguirmos entender a concepção do dogma cristão em relação ao aborto é necessário abordar as raízes do cristianismo que são simultaneamente as raízes da demonização do sexo e da demonização e menorização da mulher. Embora frequente e inconvincentemente negada, a misoginia explícita na Bíblia foi a fonte onde os chamados pais fundadores do cristianismo beberam a misoginia que ainda hoje caracteriza as religiões cristãs em geral e a católica em particular. Misoginia expressa, por exemplo, no mito da «imaculada concepção». A »virgem» Maria foi elevada a paradigma da mulher cristã, uma mulher que nasceu «liberta do pecado original» e concebeu um filho «por graça do Espírito Santo», isto é sem o abominado sexo, façanhas que mais nenhuma mulher na História conseguiu igualar. Ou seja, o culto mariano apenas reforça quão indigna é a mulher que não consegue cumprir a sua função reprodutora sem o pecaminosos desejo sexual!

Quando o cristinanismo se tornou a religião dominante no Império Romano pela mão de Constantino, a posição e papel social da mulher, até aí muito «equalitários», quiçá também por infuência etrusca, conheceram uma crescente deterioração, tendência que só começou a ser invertida no século XIX quando o poder das Igrejas, especialmente a de Roma, começou a declinar.

Como indicado pela teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann1 o ódio às mulheres é a caracteristíca comum de todos os principais teólogos cristãos dos primeiros séculos do cristianismo. Especificando com os mais reconhecidos teólogos (e santinhos) desta época, a patrística. Clemente de Alexandria (~150-215), o pai grego da Igreja, devotava um tal desprezo pelas mulheres que afirmou no seu livro Paedagogus que «a consciência da sua própria natureza deve evocar sentimentos de vergonha» às mulheres. Tertuliano (~160-225), o pai africano, chamava às mulheres «a porta do Diabo», Orígenes (~185-254), o patriarca de Alexandria, tinha tal ódio às mulheres e ao sexo que se castrou de forma a atingir «perfeição cristã».

Igualmente condenatórios da mulher e do sexo (uma consequência da Queda promovida pela pérfida Eva e cuja culpa é carregada para sempre por todas as mulheres) encontramos os grandes defensores da virgindade, a grande virtude cristã, Gregório de Nazianzum (329-389), bispo de Constantinopla, outro «santinho» Gregório (~330-395), bispo de Nyassa, Ambrósio (~339-397), bispo de Milão, Jerónimo (~342-420)(que traduziu a Bíblia para latim) e o patriarca de Constantinopla, João Crisóstomo (340-407).

Mas o expoente máximo da misoginia e ódio ao sexo cristãos é Agostinho de Hipona. Agostinho achava a mulher tão claramente inferior ao homem que achou necessário fazer a pergunta «Por que razão a mulher foi sequer criada?». A fobia da mulher e do sexo que se encontra em Agostinho, apenas entendida como uma aberração particularmente grotesca, infelizmente consolidou-se de pedra e cal no cristianismo pela pena fácil e erudita de Agostinho.

Hoje em dia a misoginia da Igreja manifesta-se na oposição a qualquer forma de controle da fertilidade feminina, nomeadamente à IVG e contracepção, como claramente indicado no documento de repúdio à Plataforma de Acção produzida na IV Conferência Mundial sobre a Mulher. Que expressa a condenação católica a qualquer forma de reconhecimento legal do aborto, assim como da contracepção ou do uso de preservativos, «tanto como medida de planeamento familiar, como em programas de prevenção da SIDA». Declara também a sua não aceitação de todo o capítulo IV, secção C, sobre saúde, «por dar atenção desproporcional à saúde sexual e reprodutiva». Manifesta ainda reservas quanto ao direito das mulheres a controlarem a sua sexualidade, «porque poderia entender-se como aprovação a relações sexuais fora do matrimónio heterossexual.»

A misoginia da Igreja manifesta-se também inequivocamente nas posições assumidas pelo finado João Paulo II, que como já tive oportunidade de escrever, tentou arduamente remeter a mulher para o papel tradicional consagrado pela Igreja de Roma e anular as conquistas duramente conseguidas de emancipação da mulher (que o Papa considerava perniciosa). O ideal feminino do finado Papa ficou bem estabelecido quando «Tomando a estas duas mulheres como modelos de perfeição cristã» beatificou Isabella Canori Mora, uma mulher que suportou estoicamente a violência de um marido abusivo, santificando assim a violência conjugal, e Gianna Beretta Molla (posteriormente canonizada com o título Mãe de Família), que preferiu morrer a interromper uma gravidez de alto risco. Isto é, o ideal de mulher para o Vaticano é assim uma mulher completamente subjugada ao marido e aos filhos, sem valor intrínseco fora de ambos e que deve renunciar à própria vida em favor de um qualquer óvulo fertilizado.

Assim, a condenação histriónica da IVG (e da contracepção) pela Igreja de Roma não tem nada a ver com uma pretensa «defesa intransigente da vida», que, como já tive oportunidade de abordar, não o é de facto, já que para a «santa» Igreja «a vida na sua condição terrena não é um valor absoluto». A oposição ao aborto baseia-se nas raízes do cristianismo que justificam igualmente a oposição à contracepção: misoginia e ódio ao sexo, que distrai e desvia os cristãos das «virtudes» cristãs. Aliás, a Igreja teve várias posições em relação ao aborto, que só passou a ser pecado em 1869, em pleno século XIX, pela pena do Papa Pio IX.

Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas na mesma época das declarações do pio Pio. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Também curiosamente a sacralidade do embrião e feto só é introduzida quando o argumento clínico deixou de ser válido…

[1]«Eunuchs for the Kingdom of Heaven: Women, Sexuality, and the Catholic Church» da teóloga católica alemã Uta Ranke-Heinemann, colega de Ratzinger nos tempos de estudantes de doutoramento (em teologia católica, claro) em Munique. Uta foi a primeira mulher a quem foi permitido um doutoramento em teologia católica.

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