IVG I: dogmas secularizados
Agora que as eleições autárquicas terminaram e os tabus presidenciais estão prestes a levantarem-se, podemos certamente esperar um recrudescer das hostilidades, quer na agenda política quer na mediática, em relação ao tema pseudo-polémico/fracturante da interrupção voluntária da gravidez, vulgo IVG ou aborto.
É um tema que eu considero pseudo-polémico porque o que na realidade está em causa é decidirmos se devemos permitir que a lei nacional, a seguir por todos independentemente da sua crença ou falta de crença religiosa, se sujeite aos dogmas da religião maioritária no país e consagrar como criminoso e punível com pena de prisão aquilo que é «pecaminoso» aos olhos da Igreja. Não há qualquer razão objectiva, biológica ou moral, para criminalizar a IVG. Há apenas um dogma católico explícito nos muitos vociferadores em nome de Deus com que somos frequentemente agraciados nos meios de comunicação e implícito naqueles que rejeitam motivação religiosa para a sua objecção ao livre arbítrio sobre o tema.
Na realidade, todos estamos sujeitos a «programação» religiosa via dogmas secularizados. O homem é o mamífero superior cujas crias nascem mais impreparadas para o mundo, numa fase em que o seu cérebro mal começou a desenvolver-se. Na realidade todos os nascimentos humanos, como qualquer estudante de biologia sabe, poderiam considerar-se abortos de fetos viáveis. Esse é quiçá o acaso da selecção natural que resultou no maior trunfo da Humanidade, aquele que distingue o ser do Homem do ser dos demais animais, já que a selecção natural privilegiou os exemplares capazes de dar à luz fetos viáveis sensivelmente a meio do tempo de gestação «normal», fetos com poucas conexões neuronais estabelecidas mas a cujo nascimento uma maior percentagem de gestantes sobreviviam. E é um trunfo que a evolução proporcionou porque o desenvolvimento cerebral extra-uterino é muito mais rico em estímulos o que permite uma «programação» francamente mais diversa e flexível que a possível uterinamente. E boa parte dessa programação é efectuada durante os primeiros anos de vida, como os tristemente célebres casos de crianças selvagens indicam claramente. Um dos casos mais bem documentados, o da menina-lobo Kamala encontrada com 5 anos, mostra quão importantes são os estímulos externos no desenvolvimento de um ser humano e quão difícil é a reprogramação humana.
Assim, se considerarmos a História nacional em que até há pouco mais de 30 anos o condicionamento social era estrita e institucionalmente católico não é de espantar que muitos dogmas religiosos se tenham secularizado. Nomeadamente o dogma em relação ao aborto. Mas já é tempo de a sociedade portuguesa reconhecer pelo nome um dogma religioso e progredir para um estágio em que a laicidade preconizada na Constituição e a liberdade religiosa sejam um facto e não uma ficção.
Exactamente o que quero dizer com dogma secularizado é melhor ilustrado com um exemplo de outra sociedade com a qual não partilhamos todos os dogmas. Quando vivi nos Estados Unidos um dos meus amigos era um israelita ateu que se encontrava em San Diego a fazer doutoramento em música na UCSD. Não obstante ser ateu, o Avi recusava-se a comer carne de porco ou a ingerir refeições na qual constassem carne e leite como ingredientes simultãneos. Claro que no nosso círculo de amigos tal facto era alvo de comentários de espanto aos quais o Avi retorquia que não havia nada de religioso na sua recusa em comer alguns pitéus, simplesmente era-lhe repugnante sequer pensar em ingerir semelhantes barbaridades gastronómicas. Como co-habitante de uma casa com dois biólogos sabia que não havia algo de «impuro» no denegrido suíno nem alguma justificação lógica ou biológica para as suas idiossincrasias alimentares. Mas simplesmente fora programado na sua (mui tenra) infância em Israel a abominar as ditas «delicatessen», programação que o seu ateísmo ainda não fora capaz de ultrapassar. O Avi estava (e suponho que continua) refém de um dogma secularizado!
De forma a podermos reconhecer como dogma religioso a motivação dos chamados pró-vida (que não o são de facto) é didáctico analisar não só as origens como as inconsistências do dogma. Porque normalmente fomos expostos a este dogma específico numa fase de programação mais tardia e como tal é racionalmente ultrapassável se reconhecido como tal!