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Multiculturalismo(s): identidade cultural é opressão individual

Na ressaca dos atentados de Julho no Reino Unido (ver este artigo da Palmira) e num momento em que o Canadá poderá estar prestes a reconhecer tribunais que apliquem a chária (ver este artigo da Mariana), verifica-se um questionamento crescente e inevitável do multiculturalismo, um conceito cujo sentido varia bastante.

Na verdade, alguns dos que mais veementemente afirmam «rejeitar o multiculturalismo» são fascistas mais ou menos envergonhados que pretendem aproveitar-se do fanatismo de uma minoria entre os muçulmanos e dos actos terroristas de meia dúzia para promoverem um programa político de uniformização «racial» (no caso dos racistas) ou religiosa (no caso dos clericalistas), que avançaria pela exclusão política e social dos imigrantes. A crítica que fazem do fascismo islâmico é portanto meramente oportunista e releva de intenções tão fascistas (ou clericalistas) como as dos jihadistas. Estas pessoas, quando rejeitam o «multiculturalismo», referem-se a um facto social (a presença de imigrantes e a consequente diversidade cultural) que enriquece as sociedades e as regenera demograficamente.

Numa segunda acepção, fala-se em «multiculturalismo» para descrever um discurso baseado na ideia de que os valores éticos ou mesmo os direitos políticos só podem ser criticados a partir «de dentro» de cada cultura, e portanto por «pessoas dessa cultura». Esta corrente de pensamento defende o máximo de tolerância (no limite, a indiferença) por qualquer prática apresentada com uma caução cultural ou religiosa, designadamente os casamentos forçados ou, em Portugal, a excisão do clitóris. Esta corrente aprisiona os indivíduos à sua identidade cultural ou religiosa de origem, e negligencia todos aqueles que desejam abandonar a religião ou cultura em que foram educados. Pior ainda, entrega a definição dessa religião ou cultura aos seus puristas, ou seja, aos mais integristas (Salman Rushdie acusa disto mesmo o governo britânico). Os produtores desta linha de pensamento são sobretudo académicos e educadores, tão intoxicados de pós-modernismo que são incapazes de olhar para uma pessoa sem verem a «identidade cultural» ou «identidade religiosa» a que essa pessoa pertence acidentalmente. E no entanto, por detrás desses efeitos da educação todos temos os mesmos instintos e necessidades.

Finalmente, a palavra «multiculturalismo» é ainda usada em política para designar os modelos comunitaristas, em que os cidadãos não são tratados como indivíduos iguais em direitos e deveres e destinados a conviver uns com os outros, mas sim como membros de «comunidades culturais» com direitos distintos, condenadas a coexistirem separadamente. Evidentemente, estas políticas legitimam-se com o discurso criticado no parágrafo anterior. A Holanda ou o Reino Unido são exemplos (imperfeitos) de multiculturalismo de Estado, que em ambos os casos foi o sucessor histórico do multiconfessionalismo. Refira-se, concretamente, os tribunais arbitrais islâmicos que neste momento estão em discussão no Canadá, o financiamento público de escolas privadas confessionais (protestantes, católicas, judaicas, muçulmanas) ou a indiferença perante o elogio da violência feito por alguns imãs. Existe um sector importante da esquerda que é politicamente comunitarista, mas alguma direita (mais religiosa ou mais identitária-racista, conforme os casos) está também interessada no separatismo étnico-religioso que lhe conforta os preconceitos e lhe afasta da frente os indesejáveis.

Felizmente, o debate sobre o multiculturalismo está a conduzir muitos à conclusão de que, nestes tempos conturbados, só a laicidade à francesa, com a sua separação clara entre uma esfera pública neutral e uma esfera privada onde se pratica facultativamente a religião, e também com a sua igualdade de direitos entre cidadãos independentemente da religião, poderá responder ao desafio que a integração dos muçulmanos representa. É esse o argumento de Giles Kepel, e Salman Rushdie já concluiu o mesmo. Convém esclarecer que ser racista não é criticar as culturas ou religiões minoritárias, mas sim conferir direitos diferentes (que inexoravelmente separam e discriminam as minorias) a pessoas dessas culturas ou religiões, conforme afirma Maryam Namazie.

Nós, ateus, estamos numa posição excelente para recordar ao mundo que o muçulmano que abandona a sua religião não é nem uma anomalia estatística nem um traidor à sua comunidade. É um indivíduo que exerce a sua liberdade de pensamento. E apenas uma República laica lhe permitirá seguir o seu caminho, livre da opressão identitária e dos mulás que o tentam instrumentalizar.

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