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Mês: Maio 2005

20 de Maio, 2005 jvasco

Vamos supor…

Vamos supor que, numa determinada mitologia religiosa, se poderia provar logicamente (por A+B) que o mítico Deus seria extremamente cruel.

Vamos supor que, de acordo com a mesma mitologia, esse Deus poderia castigar quem sequer pensasse que ele é cruel com sofrimento eterno.


o resto da imagem
Imagem gentilmente cedida pelo Luís Miguel e João Félix, a quem agradeço

Não seria normal que quem acreditasse nessa mitolgia tivesse tendência a não querer encarar o raciocínio a partir do qual se provaria a crueldade desse tal Deus?

Não seria normal que quem acreditasse nessa mitologia reagisse a tal raciocínio com respostas evasivas ou refutações assentes em falácias?

Não seria normal que, esgotadas, por força das circunstâncias, as refutações falaciosas, ou as evasões descaradas, os crentes dessa mitologia apelassem para a trancendentalidade, princípio segundo o qual a lógica humana valeria pouco para entender tais questões?

Enfim…
Não existindo Deus, o mundo deveria ser exactamente como é. O mundo, as pessoas, as crenças, os argumentos dos crentes.

20 de Maio, 2005 Ricardo Alves

Três bispos em «jihad»

A decisão da Ministra da Educação de fazer cumprir a lei, terminando quer com a presença de crucifixos nas salas de aula, quer com os rituais religiosos nas escolas públicas, conseguiu irritar três bispos católicos no espaço de uma semana.
O sinal de partida foi dado por Jorge Ortiga (o presidente da CEP) na sua homilia de domingo, transmitida pela TVI, quando este fez alusões algo cifradas dirigidas a quem «queira retirar os sinais exteriores reveladores da cultura cristã da sociedade». A Ecclesia descodificou diligentemente essas alusões, colocando como subtítulo da notícia: «indirectas à intenção do Governo em retirar crucifixos das escolas».
Na terça-feira, o outro bispo de Braga, Dias Nogueira, no semanário O Diabo, acusou a Associação República e Laicidade de «xenofobia», de «combater a liberdade e a vontade da maioria» e acrescentou algumas insinuações extravagantes sobre teocracias islâmicas em que os cristãos, se «fizessem qualquer campanha para retirar o crescente das escolas (…) eram queimados (…) até poderiam ser condenados à morte», numa diatribe que pode ser lida como pretendendo ameaçar os laicistas com as fogueiras do Santo Ofício.
Finalmente, na quinta-feira entrou na luta política o bispo de Aveiro, António Marcelino, num editorial do Correio do Vouga. Com as boas maneiras e o rigor histórico que lhe advêm da sua formação católica, este bispo não hesita mesmo em lançar atoardas ordinárias sobre a «família laica (…) gente de que ninguém conhece nem pai nem mãe», atreve-se a ironizar com um «regime pidesco» que a ICAR historicamente apoiou e ameaça com uma «guerra religiosa».
Resumindo: estalou o verniz aos senhores bispos, por o Ministério de uma República que eles reconhecem ser laica ter decidido retirar os crucifixos de uma casa que não é deles. Mas já que de boas maneiras e rigor histórico estamos conversados, vamos lá a recapitular o que diz a lei…
  1. «O ensino público não será confessional» (artigo 43º da Constituição da República de que eu e os senhores bispos somos cidadãos);
  2. «Ninguém pode ser perguntado por qualquer autoridade acerca das suas convicções ou prática religiosa» (artigo 41º da mesma CRP);
  3. «Ninguém pode (…) ser obrigado a professar uma crença religiosa, a praticar ou a assistir a actos de culto, a receber assistência religiosa ou propaganda em matéria religiosa (…)» (artigo 9º da Lei da Liberdade Religiosa).

Chega, senhores bispos? Se não chega, podemos discutir a questão no plano dos princípios. Eu estou pronto a defender o direito de qualquer católico a que não lhe seja imposto o crescente islâmico, durante a escolaridade que é obrigatória e paga por todos. Do mesmo modo, defendo que o muçulmano não deve ser obrigado a conviver com símbolos de outra religião nesse mesmo espaço. As escolas não são igrejas, nem são propriedade da ICAR. As escolas são para aprender, não são para rezar. Rezem nas vossas igrejas, dêem a catequese a quem o desejar, tenham crucifixos nas igrejas ou nas vossas casas. Os senhores bispos pretendem que a adesão à vossa religião seja livre, ou que resulte da imposição sistemática de símbolos e rituais? Se querem a segunda resposta, a «guerra», caros senhores, não é apenas com os laicistas, é com o regime democrático. Meditai nisso. Portugal não é Timor. E finalmente, se quereis ser referências éticas, deveis abster-vos de palavras belicosas e de mau gosto…

19 de Maio, 2005 Carlos Esperança

Fascismo e catolicismo

A entusiástica aliança entre o clero católico e uma das mais ferozes ditaduras do século XX é uma evidência que envergonha e causa repulsa. Todavia, o episcopado espanhol ainda hoje sente uma enorme nostalgia.

Essa criminosa e recíproca promiscuidade produziu centenas de milhares de assassinatos e numerosos santos. O mais conhecido destes é Escrivá de Balaguer.

Serão os dignitários católicos da fotografia uma montagem para embaraçar o Bernardo Motta do «Afixe»?

Post scriptum – Além da ICAR, Franco contou com a ajuda de Hitler para derrubar o Governo republicano eleito.

19 de Maio, 2005 Carlos Esperança

A fé é incompatível com a verdade

O «Afixe» cujo rigor intelectual se pauta pela intransigente defesa das malfeitorias da ICAR e cujos colaboradores estão mais interessados na salvação da alma do que na defesa da verdade histórica, usam várias tácticas:

1 – negar as evidências;

2 – branquear os crimes da ICAR;

3 – dar por adquirido que os dogmas são para ser levados a sério;

4 – ignorar «milagres» da ICAR por fazerem corar de vergonha qualquer ser pensante;

5 – Não dar publicidade ao milagre que JP2 fez, a dar a eucaristia – curar um tumor cerebral. (Não se sabe se a hóstia foi usada como bisturi ou como quimioterapia).

Em face da foto que se encontra no Diário Ateísta, no artigo «Vicissitudes da fé», o Afixe tece uns comentários sob o título «A mentira vende» assinado pelo inefável prosélito Bernardo Motta. Esqueceu-se apenas de dizer se os dois bispos que aparecem a fazer a saudação nazi são dois coronéis das SS, disfarçados de clérigos, para sujarem a imaculada reputação da ICAR.

Adenda – Após a publicação deste texto tive conhecimento de que o trogloditismo primário do Bernardo Motta não é apanágio de todos os colaboradores do «Afixe». Do facto peço desculpa aos que a religião não tolheu o entendimento. 19-05-2005 22:51:40

18 de Maio, 2005 Carlos Esperança

Os padres e o IRS

O dinheiro das missas fica isento de IRS, de acordo com o estipulado numa circular do director-geral dos Impostos, Paulo Moita Macedo ? anuncia hoje o «Público».

Não se vê por que razão as conferências pagas a eminentes professores não tenham um tratamento igual.Talvez porque a ciência deva ser tributada e a fé mereça ficar isenta.

Por esta lógica, enquanto as consultas médicas são tributadas – e bem – as consultas das quiromantes e as receitas das bruxas devem merecer igual isenção.

No IRS, como no resto, todos os cidadãos são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros.

18 de Maio, 2005 Palmira Silva

De Rerum Natura

No século XXI, o extraordinário progresso da biologia e da medicina alterou radicalmente as condições de vida e de morte da humanidade. Este progresso científico reflectiu-se na alteração de alguns conceitos morais e sociais, e na necessidade de actualização da ordem jurídica face a questões novas.

Mas este progresso científico não foi interiorizado pela sociedade na sua globalidade e nomeadamente na questão do aborto assistimos por parte dos que se denominam pró-vida -subentendida humana claro- a um esgrimir de argumentos supostos científicos misturados com outros de natureza moral/religiosa, sempre numa óptica redutora e maniqueísta.

O aborto clandestino e as mulheres mortas ou com problemas de saúde em consequência das deficientes condições em que esses abortos clandestinos se realizam são realidades incontestáveis. Legalizar o aborto é a única forma de diminuir a violência contra as mulheres e a própria sociedade no seu conjunto. E não implica a defesa incondicional ou leviana do aborto, apenas a possibilidade de humanizar e dar condições a uma prática que, queiramos ou não, é uma realidade.

E a questão a que devemos tentar responder neste tema deve ser: qual o estatuto moral do embrião? Ou por outras palavras, em que altura do desenvolvimento desta nova forma de vida humana a consideramos uma pessoa, com pleno direito à vida?

Pessoalmente atribuo ao embrião apenas o valor biológico que lhe é devido, sem qualquer valoração metafísica nem sacralidade. Porque a concepção não é um momento sagrado nem absoluto. Há um contínuo de vida desde os gâmetas (espermatozóide e óvulo) zigoto, entidade multicelular, embrião, feto e criança recém-nascida. Não há nenhum momento em que a vida «começa» porque ela nunca acabou, e certamente ninguém tenta chamar crime à menstruação ou à masturbação masculina. Assim como não é crime dispôr dos embriões excedentários da fertilização in vitro. Qual a razão porque deve ser criminalizada a disposição de óvulos fertilizados in vivo indesejados?

Porque a ciência não indica referenciais para o começo de vida. Indica apenas referenciais para a distinção entre um monte de células e um ser que começa a exibir uma forma de consciência – a consciência nuclear – que é comum a humanos e outros animais e não está dependente das capacidades cognitivas. Consciência nuclear que surge quando se começam a estabelecer as sinapses neuronais que permitem ao feto ter consciência de si e do meio exterior e que, em especial, lhe permitem sentir dor. No terceiro trimestre de gravidez!

Há assim várias concepções sobre o início de uma nova pessoa. Religiosas, científicas e filosóficas. Não cabe ao Estado nem a um determinado grupo escolher uma delas como a única credível e impô-la a toda a sociedade!

17 de Maio, 2005 Palmira Silva

Kansas redefine ciência

«Destruirei a sabedoria dos sábios, e aniquilarei o entendimento dos entendidos.» Coríntios 1:18-27.

Na sequência do julgamento da evolução que decorreu nas últimas semanas no Kansas os defensores do «desenho inteligente» advogam agora uma redefinição de ciência, a incluir na introdução dos objectivos científicos nesse Estado. Assim pretendem que se defina ciência como «um método sistemático de investigação continuada» sem especificar quais os objectos dessa investigação. De facto, os criacionistas pretendem que o Conselho de Educação do Kansas rejeite a definição actual de ciência, que especifica ser a ciência uma explicação natural de fenómenos observáveis.

Esta pretensão indignou a comunidade científica americana que teme que nas aulas de ciência possam ser discutidas explicações sobrenaturais para fenómenos da natureza. Que aliás é o objectivo dos criacionistas, como explicou Stephen Meyer do Discovery Institute, o grande centro criacionista americano, que considera ateísta a ciência tal como é definida e ensinada. Porque o mundo é tão complexo que tem de existir Deus e os alunos devem saber isso! Ou seja, os ilustres teocratas criacionistas pretendem voltar à Idade Média em que o sobrenatural se confundia com ciência!

Podem ver a absurda proposta para as alterações aos programas de ciência do Kansas da Intelligent Design Network assim como a resposta de um professor de biologia ou uma compilação de várias respostas na página da associação Kansas Citizens for Science.

17 de Maio, 2005 Carlos Esperança

Vicissitudes da fé.


No séc. X o Islão esteve à beira de conseguir o que o culto de Mithra ia conseguindo no séc. II – a derrota do cristianismo.

No séc. XVI a Reforma protestante podia ter aniquilado a influência papal e, neste caso, sem prejuízo para o mundo nem saudades de Roma.

No séc. XX o ateísmo marxista podia ter destroçado a ICAR se não tivesse as mesmas taras e derivado para experiências totalitárias de raiz estalinista que o tornaram tanto ou mais odioso.

Mas não se diga que a violência e o crime são uma vacina contra os autores e ideologias que os motivam. A prova é a longevidade da ICAR, que à violência do passado adiciona a prepotência do presente e o espírito reaccionários de todos os tempos.

Para além da vocação totalitária que devora as religiões, bastaria a ausência de virtude dos seu clero para desconfiar da bondade do seu deus. As várias seitas cristãs, incluindo ortodoxos, protestantes e católicos, têm um passado pouco respeitável, com membros do clero claramente execráveis. Mas, nem a fragilidade da doutrina que professam nem as loucuras de que os seus responsáveis são capazes, abalaram a máquina de propaganda que dominam.

Os homens passam bem sem Deus, mas há imensos parasitas da fé que não prescindem de impô-la. É assim que as religiões se mantêm até que outras as substituam, pela força, como é hábito.

O Diário Ateísta continua e continuará a defender a liberdade religiosa sem deixar de considerar as religiões como metadona que substitui a droga da superstição. Não vemos a mesma determinação nos crentes a defender o direito ao ateísmo ou os direitos da concorrência (outras religiões).

Por muito que custe aos piedosos créus que nos visitam, a ICAR esteve quase sempre ao lado das ditaduras. Em Portugal apoiou o miguelismo contra o liberalismo, a monarquia contra a república, o salazarismo contra a democracia. Nem é preciso recordar Timor.

A foto que exorna este artigo é uma das muitas que podemos exibir aos fiéis que nos insultam por denunciarmos as ligações vergonhosas da ICAR com o nazi/fascismo.

Post scriptum – Já agora vejam se descobrem quem é aquele jovem do centro.

17 de Maio, 2005 pfontela

Perseguições e mitos II

No último artigo espero ter conseguido deixar uma imagem clara das ideias que circulavam sobre o cristianismo na altura em que Império Romano ainda era pagão. Agora é a altura de analisar um pouco mais detalhadamente os mitos.

Comecemos pela cabeça de burro, que os cristãos era suposto adorarem. Este mito não foi inicialmente aplicado aos cristãos mas sim aos judeus de Alexandria. A comunidade grega e a comunidade judaica viviam lado a lado num estado de permanente tensão, se não mesmo conflito, e parece que este rumor começou algures no séc. I d.c. e a sua origem parece residir numa mera coincidência de linguagem, já que a palavra Jeová se assemelhava à palavra burro em egípcio (1). Pode à primeira vista parecer um elemento insignificante ou puramente decorativo na descrição do culto judaico mas não o é. O burro era, no mundo antigo, um dos animais mais desprezados que existiam e o facto de se identificar uma religião com este animal tinha a intenção de envergonhar os judeus e de os expor ao ridículo. O mito foi desenvolvido, de forma original, por Apion (2) (membro da comunidade grega de Alexandria e um anti-semita rábido), e segundo as várias “provas” por ele expostas um grego, de nome Zabidos, teria entrado disfarçado no templo para roubar a cabeça de burro. Esta invenção de Apion teve um efeito além do esperado já que ao longo dos séculos variantes da sua história foram repetidas inúmeras vezes, tornando-se progressivamente mais violentas (em algumas versões tardias o grego teria sido morto por descobrir o terrível segredo). A associação deste mito judaico ao cristianismo era um passo inevitável já que o cristianismo sempre foi considerado pelos romanos como uma forma de judaísmo, apresentando muitas das mesmas características que alienavam a cultura clássica (a crença num deus omnipresente e omnipotente que no entanto era invisível era algo que os romanos simplesmente não concebiam). Existe no entanto um aspecto curioso, este mito enquanto foi aplicado exclusivamente aos judeus teve uma área de influência sempre limitada à zona de Alexandria mas quando passou a abranger os cristãos espalhou-se rapidamente por todo o império.

Estando a origem da cabeça do burro explicada podemos passar às acusações de assassinato ritual e canibalismo. Os cristãos também não foram o primeiro grupo a ser acusado deste tipo de crimes, aliás para perceber o porquê da acusação convém olhar para os outros grupos acusados. A primeira vez que se encontra esta acusação na cultura romana ela está misturada com o mito da fundação da república. Conta-nos Plutarco que quando Tarquínio, o último rei de Roma, foi deposto os seus seguidores juraram que tudo fariam para assegurar uma restauração. E com esse fim em mente todos prestaram um estranho e terrível juramento em que o sangue de um homem assassinado terá sido derramado (em vez de prestarem a libação com vinho como era tradição) e as suas entranhas teriam sido tocadas por todos (3). Se este exemplo marcou o início da república é irónico que o outro exemplo mais emblemático marque os seus últimos anos. Na época da famosa conspiração de Catilina corria a lenda que o próprio catilina teria passado a cada um dos seus conspiradores um cálice com uma mistura de vinho e sangue e cada um ao beber teria proferido uma maldição, e este acto tê-los-ia vinculado a todos à conspiração(4). Alguns séculos mais tarde a lenda já tinha sofrido adições de outros elementos; Catilina e o seu grupo de conspiradores teriam assassinado um rapaz e devorado em conjunto as suas entranhas como parte de um ritual (5). Nenhuma destas acusações tem qualquer base real já que se tal fosse o caso Cícero, o maior opositor de Catilina no Senado, teria escrito algo a esse respeito.

Apesar de ser verdade que cultos que sacrificavam e devoravam seres humanos não são inéditos no mundo antigo (existia, por exemplo, o culto de Dionísio na Trácia em que é possível que crianças fossem devoradas como representantes do deus) as histórias que vimos até agora apontam noutra direcção. De facto em todos os casos o festim canibalesco aparece como uma forma de um grupo de conspiradores afirmar a sua solidariedade mútua e seu empenho à causa. Causa essa que invariavelmente consiste em derrubar o status quo, depor a ordem reinante e tomar o poder. Trata-se de facto de um estereótipo: a ideia de uma sociedade secreta que procura de forma implacável o poder. Este estereótipo e as suas variações provaram ser extremamente poderosos e resistentes, sendo que foram usados ao longo da idade média para a demonização dos hereges e, em conjugação com outros factores, culminaram na grande caça às bruxas dos sécs. XVI e XVII.

Ao vermos estas acusações, de canibalismo e assassínio ritual, lançadas contra os cristãos podemos inferir que os romanos tinham a percepção do cristianismo como um grupo sedento de poder que desejava a destruição da ordem estabelecida. Aqui temos que analisar dois pontos: o primeiro onde é que os pagãos foram arranjar um elemento de canibalismo para poder justificar o seu estereótipo e o segundo é a busca duma razão para esta visão do cristianismo como um grupo de conspiradores. O primeiro ponto é relativamente simples de explicar, os romanos viram na eucaristia uma prova de canibalismo, e até certo ponto estavam certos. Apesar de vários teólogos cristãos terem nos primeiros séculos tentado espiritualizar a eucaristia a verdade é que a maioria dos cristãos partilhava da visão que seria estabelecida como dogma pelo concilio de Trento séculos mais tarde: a eucaristia é literalmente o sangue e a carne de Jesus. O segundo ponto, a justificação para a visão dos cristãos como um grupo de conspiradores, também é relativamente fácil de encontrar, sendo que não se trata de um preconceito pagão totalmente injustificado. À parte do óbvio conflito entre a religião imperial (com o próprio imperador deificado) e uma religião que proclamava que o seu deus era o senhor do universo temos também o facto de os cristãos primitivos esperarem a redenção, já que viam o mundo como intrinsecamente malévolo, do qual os crentes seriam libertados pela segunda vinda de Jesus (de notar que a segunda vinda nos primeiros séculos do cristianismo paira no ar como se de algo eminente se tratasse) – a conclusão lógica destas ideias é que todo o culto imperial não passava de idolatria e Roma era a nova Babilónia, o reino do anticristo. Resumindo, a luta dos cristãos não era política mas sim escatológica. Toda esta atitude contribuiu para o afastamento das comunidades cristãs da vida cívica, chegando a extremos em que os romanos pagãos os viam como uma fé malévola e subversiva.

(continua em breve)

(1)- A. Jacoby, ‘Der angebliche Eselskult der Juden und Christen’.
(2)- Josephus, Contra Apionem – cap. II.
(3)- Plutarch’s Lives: Poplicola, IV.
(4)- Sallust, Catilina, XX.
(5)- Dio Cassius, Romaika (History of Rome), lib. XXXVII, 30.

17 de Maio, 2005 Palmira Silva

Aborto: um dogma recente

Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possivel haver ser é maior que todos os deuses

Fernando Pessoa

O tema aborto será nos próximos tempos o cavalo de batalha da Igreja Católica que recorrerá, como nos avisava Ana Sá Lopes no seu artigo «O terrorismo da Igreja Católica», no Público de domingo (link indisponível), às suas tácticas terroristas para polarizar uma questão que só o é por se tratar de um dogma secularizado. E porque concordo que «É enorme, portanto, o risco – para os defensores da despenalização – de uma derrota nesse campo de batalha maniqueísta onde vale tudo. Trata-se, efectivamente, do vale tudo. E nesse vale tudo da demagogia, a Igreja Católica tem tido um papel maior.» nos próximos tempos será também o meu tema de eleição.

O que é irónico nesta questão, dita fracturante, é que o dogma da sacralidade do embrião é um dogma recente na «santa» Igreja. O conceito neolítico de que a mulher era apenas o terreno onde o princípio masculino germinava foi consolidado na Antiguidade Clássica com Aristóteles. Este filósofo acreditava que o sémen conteria «uma pessoa inteira ou, mais precisamente, um homem inteiro, já que uma mulher só ganha existência por alguma falha no processo de desenvolvimento». Num dos seus tratados biológicos afirmou que um embrião masculino adquiria alma ao fim de 40 dias após a concepção e um embrião feminino no dobro do tempo. Durante muitos anos a Igreja Católica, que adaptou a ética aristotélica, permitiu o aborto até este prazo.

Alguns dos teólogo mais conhecidos incluindo os inescapáveis Tomás de Aquino e S. Agostinho não condenavam o aborto. Este último escreveu:

«A grande interrogação sobre a alma não se decide apressadamente com juízos não discutidos e opiniões imprudentes; de acordo com a lei, o aborto não é considerado um homicídio, porque ainda não se pode dizer que exista uma alma viva em um corpo que carece de sensação uma vez que ainda não se formou a carne e não está dotada de sentidos»

Tomás de Aquino defendia que só haveria aborto pecaminoso quando o feto tivesse alma humana o que só aconteceria depois de o feto ter uma forma humana reconhecível. A posição de Aquino sobre o assunto foi oficialmente aceite pela igreja no Concílio de Viena, em 1312.

Só em 1869, em pleno século XIX, o Papa Pio IX repudiou a teoria da hominização tardia aristotélica e declarou que o aborto constitui um pecado em qualquer situação e em qualquer momento que se realize.

Curiosamente, em grande parte do mundo industrializado o aborto não era considerado um crime até que uma série de leis anti-aborto foram promulgadas na mesma época das declarações do pio Pio. Por essa altura, os proponentes da proibição do aborto realçavam os perigos clínicos do aborto. Também curiosamente agora que o argumento clínico deixou de ser válido, o ponto central dos argumentos anti-aborto deslocou-se para a sacralidade do embrião e feto. A que os terroristas católicos insistem em chamar «bébé».

Mas, numa época em que a Igreja católica exalta o espírito cristão medieval, convém relembrar uma doutrina dessa época, mais concretamente do século XVII, o probabilismo. Que afirma o direito dos fiéis de discordarem da hierarquia eclesiástica em questões morais, baseados numa base probabilística firme de ser legítima essa posição. Essa probabilidade pode ser intrínseca ou extrínseca. Probabilidade intrínseca refere-se à percepção individual da inaplicabilidade de um ensinamento moral. Probabilidade extrínseca diz respeito à possibilidade de se suportar essa divergência moral em autoridades teológicas, sendo suficiente cinco ou seis teólogos de reconhecida reputação moral que defendam pontos de vista diferentes.

Talvez por isso Ratzinger se devotou a calar as vozes divergentes na Igreja Católica. Mas existem teólogos reconhecidos, incluindo os mui celebrados Agostinho e Tomás de Aquino, que sustentam a moralidade da decisão por um aborto. Por isso, tal como Ana Sá Lopes, acho que «Convinha que os católicos que se demarcam destas posições e defendem que as mulheres que recorrem ao aborto não devem ser julgadas nem penalizadas aparecessem a dizer alguma coisa.»