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Santa ignorância

Dos Estados Unidos, o mais brilhante farol da Democracia e Liberdade ocidentais, chega-nos esta interessante carta de uma leitora do jornal «The Sun Times».
A senhora começa por dizer que «os ateus continuam a rastejar debaixo dos seus troncos podres» e que a Bíblia diz que são propositadamente ignorantes, ou seja, o que faz com que eles «ouçam exactamente o contrário do que está a ser dito». Há muito que não encontrava uma definição de ateísmo tão retrógrada e absurda como esta. Bem vistas as coisas, a autora da missiva talvez tenha razão: os ateus, em determinado ponto das suas vidas, analisaram de forma consciente a sua posição individual perante a divindade e escolheram o caminho da descrença.

De acordo com a senhora, o ateísmo acusa a cultura cristã de uma longa história de violência. E erradamente pois os feitos do ateísmo são muito piores: «o nazismo, o socialismo e o comunismo, que são praticamente o mesmo. A todos eles falta integridade intelectual e moral». Quanto ao nazismo, este Diário já se pronunciou sobre a relação deste movimento com a religião, relação essa de grande proximidade e apoio. Leia-se, por exemplo, dois artigos da Palmira intitulados «A religião e o holocausto», parte I e II.

Relativamente ao comunismo e ao socialismo, esses males vermelhos que foram tão diabolizados pelo imaginário norte-americano, essa ideia de estas ideologias políticas serem consequência lógica do ateísmo não pode ser mais falaciosa. Este é um fenómeno de culpa por associação, ou seja, se uma parte dos comunistas são ateus, dizem os teístas, que há uma ligação entre aqueles dois conceitos. Nada de mais errado. Os ateus, tal como os crentes, divergem na sua ideologia política: há ateus (e crentes) de todos os quadrantes políticos.

Os disparates não acabam aqui. Na carta pode também ler-se que o comunismo e o evolucionismo estão intimamente ligados. Porquê? Porque «Carl [ou Karl] Marx pediu a Darwin que escrevesse a introdução do “Das Capitol” [mais conhecido por “Das Kapital“] porque sentia que ele tinha fornecido uma base científica para o comunismo». Assim, «quem empurra a conspiração comunista, também empurra uma perspectiva evolucionista, imperialista e naturalística, que pretende retirar o Criador do Cosmos». Portanto, isto faz tudo parte de uma grande conspiração de «comedores de criancinhas ao pequeno-almoço».

Daqui, parte-se para a constatação de que Stalin assassinou mais pessoas do que Hitler e que Mussolini, «que frequentemente citava Darwin, disse que a guerra era necessária para a sobrevivência do mais forte». Para além disso, o subtítulo da obra paradigmática de Darwin é «Preservação de raças favorecidas na luta pela vida». E a senhora pergunta: «quem é que decide as “raças favorecidas”»? A mim, que sou ateia, parece-me que ninguém tem capacidade de decidir isso, crente ou não crente, e essa ideia de «decisão» é absurda.

A seguir, a senhora adianta que «Cristo odiava assassinos de bébés» e que os descrentes são responsáveis pelo holocausto americano do aborto. Acho que não é preciso ser-se Cristo para não se ter especial carinho por assassinos, de bebes ou não. Os ateus não desprezam mais a vida do que o comum crente. Para além disso, quanto ao aborto, os ateus – como, de resto, os crentes – divergem profundamente de opiniões.

Para terminar, «Pol Pot, Osama bin Lauden [sic], Saddam (não cristãos) mataram milhões» e «milhões de cristãos estão a ser mortos no Sudão por ateus». Tanta ignorância junta é desesperante. Esta senhora junta o associa o ateísmo ao comunismo, ao fundamentalismo islâmico (ou seja, religioso) e a um regime ditatorial que a única filosofia que defendia era o poder do seu chefe. É de ficar boquiaberta!

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