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Mês: Janeiro 2005

26 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Não ao anti-semitismo

Mais de meio século decorrido, lembro-me do ódio das catequistas da minha infância. Recordo o horror e a sanha com que evocavam os judeus, que mataram «Nosso Senhor». Tenho presente o desvario boçal de quem julga com ignorância, condena com crueldade e exulta com as atrocidades.

Nessa altura, as crianças faziam a primeira comunhão vestidas de cruzados e o anti-semitismo devorava os corações de gente simples e analfabeta, submetida à fome, à miséria e à oração. Os demónios do anti-semitismo continuavam a habitar o catolicismo romano. Pio XII pontificava e a pusilanimidade do seu silêncio perante o Holocausto era compensada pela coragem com que denunciava a exiguidade dos trajos femininos.

Fez ontem sessenta anos que se abriram as portas do campo de morte de Auschwitz. A dimensão do ódio e da demência superaram a imaginação mais perversa. Treblinka e Auschwitz são nomes que arrepiam, lugares que envergonham a Humanidade, sítios que interpelam a consciência humana. Não podem ser esquecidos.

Pior do que o ódio para que os homens são aptos é a crueldade de que os deuses são capazes.

Em nome da vida, é preciso combater o racismo e a xenofobia, exorcizar o passado de violência, crueldade e morte que parece ressurgir diariamente. Em nome da memória é preciso prestar homenagem a seis milhões de judeus vítimas da mais ignóbil e feroz campanha de extermínio sistemático de que há registo.

O Diário Ateísta curva-se respeitosamente perante todos os homens e mulheres vítimas do ódio racial e da intolerância religiosa.

26 de Janeiro, 2005 André Esteves

Ainda a Zitinha…

(brinquem.. brinquem.. Quando começarem a decidir por nós o que nós devemos ser…)

25 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

A velha ICAR e a nova Espanha

A ICAR no seu labirinto

Hoje, os jornais europeus dão largo destaque às advertências, ameaças e acusações que João Paulo II fez ao legítimo Governo de Espanha, a tal ponto que a Associação de Teólogos João XXIII considerou as declarações papais como prova da sua falta de condições para dirigir a Igreja.

Autêntico talibã, o chefe da ICAR acusou a Espanha de promover o laicismo para «restringir a liberdade religiosa». Perante os bispos, durante a visita que cada cinco anos são obrigados a fazer-lhe, acusou: «O laicismo não faz parte da tradição espanhola mais nobre». De facto, a tradição autóctone está mais ligada às lutas contra os mouros, ao extermínio dos judeus, à evangelização da América do Sul e à inquisição. De facto, os reis católicos, que JP2 quis canonizar, destacaram-se pela beata crueldade e pia intolerância.


Compreende-se o desespero de JP2 cujas receitas americanas definham ao ritmo das indemnizações que as dioceses são obrigadas a pagar em virtude dos processos de pedofilia. Esta semana a revista «FOCUS», n.º 275, titulava à largura de duas páginas: «Pedofilia deixa Igreja americana falida». Também várias dioceses alemãs, desavindas com o vetusto e duro cardeal Joseph Ratzinger, reduziram os generosos óbolos que alimentavam a gula do Vaticano. É neste contexto que o Opus Dei se transformou no grande financiador, impondo posições ultramontanas, dignas do Concílio de Trento.

O Papa pretende manter a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas espanholas, uma prática que colide com a Constituição e a liberdade religiosa. Para o último ditador europeu, liberdade religiosa significa apenas o direito ao monopólio. O diário «El Correo Gallego», referindo-se às diatribes de Sua Santidade, titula o artigo: «Ataque fulminante do Papa à Espanha laica».

JP2, que perfilha as teses do ultra-reaccionário cardeal Rouco Varela, presidente do episcopado espanhol, acusa o Governo de «difundir uma mentalidade inspirada no laicismo até promover o desprezo para com a religião». Embora seja dito pelo Papa, falta à verdade – como assinala o «El Periódico» – pois, «nem a Constituição, que garante a liberdade de religião, nem os factos, suportam essa tese». A ICAR não suporta que se legalizem casamentos homossexuais, que se avance na investigação bio-ética ou se aconselhe o preservativo para a prevenção da SIDA, «uma patologia do espírito», como a definiu o Vaticano, prevenida pelo preservativo cuja rejeição moral é absoluta .

O próprio ministro Jose Bono teve de responder ao Papa lembrando que algumas posições da Igreja vão contra a mensagem de Cristo – afirma «El País».

O Vaticano tomou definitivamente partido pelo PP espanhol, dirigido até há pouco por Aznar cujas ligações ao Opus Dei eram do domínio público. Todavia, isso não impediu que, nos últimos quatro anos, passasse de 29% para 14,2% a frequência da missa por jovens entre 15 e 29 anos que se intitulam católicos – como informa hoje o «Público», que termina com este compromisso de José Blanco, influente dirigente do PSOE: «Está excluída qualquer doutrina religiosa como fonte inspiradora do ordenamento jurídico, pois não se pode exigir que as normas jurídicas, que a todos obrigam, sejam ditadas por princípios religiosos que apenas vinculam quem os professa».

25 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

João Paulo II, um Papa obsoleto

Juan G. Atienza acusa a Igreja de, com a colaboração do Opus Dei, tentar criar o governo teocrático universal sonhado por Paulo. A sua aberta aliança com a Mafia internacional e a pseudo-maçonaria financeira bem como o abuso indiscriminado do negócio milagreiro (Lourdes, Fátima, La Salette, Chestojowa, o sangue de S. Pantaleão, os milagres do padre Pio, etc., são outras acusações que o mesmo autor lhe faz e de que todas as pessoas se podem dar conta*.

Em «Os pecados da Igreja» o Opus Dei aparece como o instrumento do confronto final entre o cristianismo e o islão fundamentalista.

Quem pensa que o estado-maior da ICAR esquece a guerra santa, quem julga que sob as sotainas se escondem apenas desejos reprimidos e votos de castidade, ignora o potencial de violência de que a fé, a repressão sexual e o desejo de martírio são capazes.

Na recente carta apostólica sobre o Ano da Eucaristia, João Paulo II concede uma indulgência plenária aos católicos que «participem numa missa, adoração eucarística ou procissão». Enganam-se os que pensam que a Igreja mudou. Até na promoção dos produtos repete os bónus que levaram à ruptura com Lutero.

Graças ao fabrico de beatos e santos em série, com este Papa a ICAR passou da época artesanal para a era industrial.

Quem acredita na conversão da Igreja católica à modernidade?

* «Los Pecados de la Iglesia». Pgs. 341 e 342. Ob. Citada

24 de Janeiro, 2005 jvasco

Peregrinação a Meca e «Capital Cultural»

Acabou mais uma peregrinação a Meca.

Todos os anos se vai repetindo o ritual: cerca de 2 milhões de fiéis islâmicos de 160 países participam na hajj.

A peregrinação inclui a vigília no monte Arafat, o sermão na mesquita Namirah, a ida ao Muzdalifah depois de passar o dia em oração, lendo o Alcorão e pedindo perdão.

Neste local os peregrinos rezam durante o pôr do sol, enquanto recolhem pedras para o ritual do dia seguinte: o apedrejamento do demónio. Os peregrinos vão a Meca, e atirarão pedras sobre os três pilares que representam o mal. No ano passado, nesta fase do ritual, morreram 244 pessoas, mas este ano apenas ocorreram alguns «ferimentos ligeiros».

Esta peregrinação deve ser feita, pelo menos uma vez na vida, por qualquer muçulmano com capacidade física e financeira.

Sempre que vejo notícias sobre esta peregrinação, lembro-me de uma conferência internacional da fundação Calouste Gulbenkian, dedicada ao tema «Globalização, Desenvolvimento e Equidade». A conferência estava dividida em temáticas, as quais iam desde as questões cambiais até às questões tecnológicas. Uma destas temáticas consistia numa análise aos problemas de subdesenvolvimento de África. Um dos oradores explicou detalhadamente aquilo que entendia por «capital cultural» e a influência que podia ter no desenvolvimento: falou sobre as questões da confiança entre as pessoas, de como isso facilita o empreendimento e pode tornar desnecessária a burocracia; falou sobre a corrupção e sobre a forma de como ela pode ser ou não tolerada; falou sobre a sociedade civil, sobre a forma como pode ser activa ou amorfa, e uma série de outras questões. Na sua opinião, o «capital cultural» tinha um grau de importância no desenvolvimento equiparável ao «capital financeiro» e «capital tecnológico», e era possivelmente mais determinante que os recursos naturais.

Curioso foi quando ele decidiu dar exemplos concretos. Falou sobre como em África as Igrejas podem ter muitas vezes uma acção paralisante e contrária ao desenvolvimento, enquanto mantêm uma grande influência sobre a sociedade. Enquanto na África sob influência do catolicismo, são as políticas anti-natalistas que tendem a ser minadas pela Igreja local, no norte de África são os líderes islâmicos que conseguem obter dos governos dinheiro para subsidiar, a quem não tenha recursos (quase ninguém os tem), uma peregrinação a Meca durante a sua vida. Atentem nisto: governos de países que enfrentam sérias dificuldades económicas, que precisam de canalizar todos os seus recursos para se desenvolverem, «patrocinam» peregrinações a Meca aos seus habitantes, tal é o fervor religioso dessas sociedades.

Ele deu outros exemplos relacionados com o «capital cultural» que nada tinham a ver com a religião, mas este aqui dá que pensar…

24 de Janeiro, 2005 jvasco

Blasfémia! Vejo-me grego para entender isto

Fiquei sem palavras. Simplesmente sem palavras.

Aliás, é caso para ficar sem palavras, porque é de censura que se trata.

Na Grécia, Gerhard Haderer foi condenado a 6 meses de cadeia, por ter sido autor do livro «A Vida de Jesus», já comentado neste blogue.

O livro é uma paródia à vida de Jesus, na qual alguns milagres são «explicados» pelo consumo de cannabis (eu já li o livro e achei engraçadíssimo).

A Associação Internacional de Editores condenou a resposta da justiça grega, mas a Igreja Ortodoxa aplaudiu-a.

Gerhard Haderer vai recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.

Parece que não há pudor em demonstrar o total e completo desrespeito para com a liberdade de expressão. Desrespeito esse abençoado pela Igreja Ortodoxa.

Isto seria anedótico se não fosse triste e perigoso.

PS- Aproveito para agradecer ao Boss, que nos comentários ao artigo anterior chamou a atenção para esta situação, através de uma hiperligação para um artigo do renas e veados sobre este caso preocupante.

Agradeço também ao Ricardo Alves que me facultou uma hiperligação para uma tradução inglesa da constituição grega, a qual mostra claramente o artigo 14º, que foi central neste triste episódio. A primeira alínea desse artigo é aquela que permite que estes atentados à liberdade de expressão possam ocorrer em nome da religião. Mas logo nas primeiras palavras desta constituição («em nome da Santíssima Trindade») podemos concluir que a mesma não é uma constituição laica.

23 de Janeiro, 2005 Carlos Esperança

Tolerância

Alguns leitores não terão reparado nesta advertência: «As opiniões expressas no Diário Ateísta são da exclusiva responsabilidade dos seus autores, e não representam necessariamente a generalidade dos ateus». Estranho seria a unanimidade de pontos de vista entre os onze colaboradores habituais, com percursos de vida distintos, variadas origens e diferentes marcas do passado.

O Diário Ateísta (DA) não pode, em nome da harmonia universal, defender a utilidade das religiões, a bondade dos seus valores ou a verdade dos seus livros. Quem começa por comover-se com o martírio de Deus acaba por acreditar nas mentiras da sua religião. Quem crê nos livros sagrados acaba por abdicar do livre-pensamento.

As religiões combatem o que julgam ser os nossos erros, nós combatemos o que pensamos serem as suas mentiras. Não vem daí mal ao mundo. O pluralismo é fonte de progresso e o caldo de cultura onde florescem as democracias. Não há mal em que haja crentes, o perigo reside nos que não se conformam com os crentes de outras religiões ou com os que desprezam Deus e a fauna celeste, se riem das profecias ou se alheiam dos castigos com que os padres assustam os fiéis.

Para lá das regras mínimas de urbanidade que é útil cultivar em sociedade, não devo condicionar a liberdade de expressão na denúncia dos erros, contradições e mentiras que exornam a bíblia. Dizer que o Deus de Abraão não merece crédito, que a sua crueldade indigna, que o seu pensamento se situa entre a indigência intelectual e a crueldade assassina, não revela radicalismo, denota civilização. Só há, aliás, uma desculpa para os bárbaros «ensinamentos» do Antigo Testamento – a crueldade do tempo em que o seu deus foi criado.

A tolerância não dimana da submissão à mentira, é apanágio de quem entende que o erro não exige castigo, a superstição não carece de cadeia e a oração não merece coimas. Há quem goste de ver gente de joelhos e prostrada no chão em subserviência beata. Desprezo esse deus e condoo-me com os seus crentes. Denuncio o despautério, antipatizo com a estética e sofro com as vítimas da fé.

O DA não se propõe divulgar orações, defender dogmas ou promover os mandamentos da Igreja; não reconhece valor terapêutico aos sacramentos nem acredita que a água benta seja melhor que a outra; tem fundadas dúvidas de que o pão e o vinho se tornem corpo e sangue de Jesus no momento da consagração na Missa; vê a confissão como uma arma política ao serviço do clero, a absolvição como placebo e a comunhão como ritual inútil e bizarro.

Mas há um aspecto em que os ateus são intransigentes: não se conformam com a violência dos livros sagrados e, muito menos, com os castigos que infligem aos infelizes que vivem em países onde as suas determinações são lei. Deus pode sentir um requinte sádico em mandar alguém para o inferno, em assistir à excisão de um clitóris, à lapidação de uma mulher, à amputação de membros, ao assassínio de sodomitas, à tortura de infiéis e a outras barbaridades, perante o ar bovino ou exultante dos seus fiéis.

Um ateu condena toda a crueldade inútil e tem a certeza de que vale mais a felicidade de um só homem do que o prazer de qualquer deus.

23 de Janeiro, 2005 lkrippahl

Ecumenismo Ateu.

Ultimamente a questão da tolerância tem levado a uma certa intolerância entre ateus, agnósticos e crentes. Infelizmente, temos mais tendência para ver diferenças que semelhanças, e projectamos nas pessoas as diferenças que vemos entre as suas ideias e as nossas. Acaba-se a atacar gente em vez de discutir assuntos…

E isso é especialmente trágico porque as diferenças acabam por ser pouco importantes. O Ateu e o Crente são opostos, evidentemente; um diz que não há deuses, o outro diz que há. Mas, se virmos bem as coisas, isso é uma questão de pouca importância. A nossa vida é muito mais que a questão da existência de deuses.

Para o ateu (nem todos almejamos a letra maiúscula, felizmente) o importante é que, não havendo deuses, não há dever nenhum de acreditar neles. Quem quer acredita no que quiser, quem não quiser não acredita. A maioria dos ateus não está preocupado com o que os outros acreditam ou deixam de acreditar.

Para o crente (que também tende a ser de letra pequena, pois a grande maioria acaba por ser crente para umas coisas mas descrente para outras, e ainda bem) o importante é a sua atitude pessoal de crença. Poucos são os fanáticos que acham merecedor de sofrimento eterno todo o que acreditar em qualquer coisa que saia da fé «oficial». Para o crente também é importante que cada um seja livre de crer, ou de não o querer.

Preocupa-me que crentes, agnósticos, e ateus se agridam com a questão metafísica e pouco relevante da existência de deuses, quando no fundo quase todos concordam com o que é importante: não se deve impor crenças. Isso é que interessa!

Não interessa se um acredita e outro não. O que interessa é que crianças órfãs não se tenham que sujeitar à religião que a instituição em que calham lhes queira impor; que sacerdotes duma ou outra religião não possam abusar da confiança e poder que a sua posição lhes dá; que as organizações religiosas se sujeitem à lei e respeitem a nossa Constituição e os direitos Humanos. Estas coisas interessam tanto a crentes como a ateus.

É certo que muitos crentes não se importam que a religião seja imposta, desde que seja a deles e não outra. Esse é talvez o maior obstáculo ao «ecumenismo» ateu: persuadir os crentes que todos ganhamos em encarar a crença ou descrença religiosa como um direito individual e não como um dever sagrado. Mas não é a atacar pessoas, a ofender, ou a ameaçar as suas crenças que conseguimos uma sociedade mais tolerante.

22 de Janeiro, 2005 Palmira Silva

Da Natureza do Homem: mitos urbanos e outras histórias

A concepção do ser humano como naturalmente perverso é, na tradição judaico-cristã e em muitas outras culturas, a explicação para a existência do Mal. Outra concepção concomitante é o mito da Queda que nos sobrecarrega com o pecado original: «o homem era inocente e bom, e o mundo era um jardim, um paraíso. Mas o homem foi tentado, sucumbiu e caiu». Muito veementes na condenação da natureza humana e da sua natureza intrinseca e irrevogavelmente má (sem salvação fora do amor a Deus) encontramos na tradição cristã os escritos atribuídos a São Paulo. Nomeadamente podemos ler que os homens «estão cheios de perversidade, maldade, avareza, vícios, ciúmes, crimes, lutas, mentiras e malícia. Difamam e falam mal uns dos outros. Odeiam a Deus e são atrevidos, orgulhosos e vaidosos. Inventam muitas maneiras de fazer o mal, desobedecem aos pais, são imorais, não cumprem a palavra, não têm amor por ninguém e não têm pena dos outros».

Na sociedade ocidental este pessimismo em relação à natureza humana acompanhou e marcou os pensadores e, segundo Ashley Montagu, foi secularizado ao longo dos séculos de influência da tradição cristã de forma que influenciou mesmo os mais notáveis ateus ou autores que negavam a base religiosa do seu pensamento. Nomeadamente Freud, Thomas Huxley ( que introduziu o termo agnóstico), Herbert Spencer, Konrad Lorenz, Niko Tinbergen ou Desmond Morris.

O facto de os autores citados serem cientistas de renome, autores de obras com grande divulgação entre o público em geral, contribuiu para o sedimentar desta descrença na bondade do Homem.

Todos estamos familiarizados com a cena de abertura do famoso filme de Stanley Kubrik «2001, Odisseia no Espaço» que corrobora esta noção da inata violência do Homem, que o acompanha desde os primórdios da evolução. Mas poucos saberão que estamos a assimilar as teorias (erradas) de um antropólogo australiano, Raymond Dart. Em 1924, Raymond Dart fez a descoberta que o tornou famoso. Dart trabalhava com os seus alunos numa exploração de pedra em Taung e descobriu o fóssil de um crânio de um primata, um elo na evolução do homem, a que chamou Australopitecus africanus. Dart concluiu que nos locais onde estas criaturas tinham vivido, existia uma cultura «osteodonkeratic« (ossos, dentes e chifres) e argumentava que eles eram caçadores selvagens e sedentos de sangue, cujas tendências deixaram marcas indeléveis no comportamento humano. E afirmou que «as mais recentes atrocidades da II Guerra Mundial estão de acordo com o primitivo canibalismo universal, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou seus substitutos em religiões formalizadas, e com as práticas generalizadas de escalpelizar, caçar cabeças para reduzi-las, mutilar corpos, e com as actividades necrófilas da humanidade revelando esse hábito predatório, essa marca de Caim, essa sede de sangue que separa dieteticamente o homem dos seus parentes antropóides e o aproxima dos mais mortíferos dos carnívoros». A epígrafe do artigo de Dart «A Transição Predatória de Macaco a Homem», é uma citação de Baxter, famoso teólogo inglês do século XVII: «De todas as feras, a fera homem é a pior. Para as outras e para si mesma, o mais cruel inimigo», ou seja, as suas elucubrações foram certamente influenciadas pelo pensamento religioso!

A visão dos «macacos assassinos» foi popularizada pelo escritor Robert Ardrey em livros como African Genesis que por sua vez serviram de inspiração para a cena de abertura do filme «2001: A Odisseia no Espaço». Estas ideias foram fortemente criticadas e estudos posteriores provaram que estavam totalmente erradas. No entanto, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a violência primeva do Homem, a sua tendência natural para o mal, um assassino da sua própria espécie.

Em oposição a esta tese, que coloca na biologia ou na natureza do Homem, a fonte dos males que assolam a Humanidade, encontramos a tese do «bom selvagem», o homem intrinsecamente bom «estragado» pela civilização, defendida por Montesquieu, Rousseau e Reich, entre os mais conhecidos, que coloca o ónus do mal na estrutura social e política que desenvolvemos, na religião, na ética, na cultura, etc..

Apesar de não subscrever na íntegra esta tese do «bom selvagem», até porque os avanços da neurobiologia nos indicam que há causas biológicas para comportamentos violentos e anti-sociais em alguns indíviduos, ou seja, que nem os bons selvagens estão imunes a distúrbios biológicos, suponho que podemos encontrar algumas causas dos males sociais, tal como hoje os entendemos, nas raízes judaico-cristãs da sociedade ocidental, já que estas condicionaram e determinaram, directa ou por oposição, a nossa evolução social.

Assim, se analisarmos criticamente a História, podemos constatar que apenas depois de Petrarca e do início dos movimentos humanistas, que colocam a ênfase no Homem e não em qualquer ser transcendente, e consequentes separação da Igreja-Ciência e da Igreja-Estado se dá um avanço ético nas sociedades ocidentais. A progressão do sub-homem de Sartre para o Homem pleno, só pode de facto realizar-se através do humanismo. Apenas acreditando no Homem, repudiando a tradição cristã da sua natureza pecadora e má, e estabelecendo uma ética centrada no Homem e não em verdades «reveladas», podemos viver harmoniosamente com os nossos semelhantes. O que não obsta a que quem acredite nessas verdades reveladas as siga na sua vivência pessoal, desde que não colidam com a ética humanista.

De facto, as minhas objecções ao cristianismo são na linha das de Kierkegaard, ou seja, não apenas no campo da dúvida intelectual, mas no campo ético. O cristianismo aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». O exemplo que Kierkegaard invoca é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana.

Para mim, independentemente de acreditarmos ou não na existência de Deus, deusas ou deuses, as regras de conduta social devem subscrever-se ao Homem e não a qualquer entidade exógena. Assim, acho que o desafio do século XXI é a separação Igreja/religião-Ética!

Bibliografia:

Ashley Montagu, «The Nature of Human Aggression». Oxford University Press

21 de Janeiro, 2005 Ricardo Alves

A identidade contra a liberdade

Zita Seabra, cabeça de lista do PPD/PSD pelo círculo de Coimbra, protestou quarta-feira o seu «grande respeito pelo papel desempenhado em Portugal pela Igreja Católica», uma afirmação ritual comum em muitos políticos apostados na conquista do favor institucional da dita igreja e da sua (presumível) «orientação de voto». A afirmação, de tão rotineira, não choca, mesmo se um pouco de rigor histórico e de decência exigiriam que quem a faz ressalvasse, subtilmente que fosse, os crimes da inquisição, os pogromes católicos e a colaboração da ICAR com a ditadura fascista. Mas Zita Seabra foi mais longe ainda, e arriscou que «ao não reconhecer essa tradição [a da ICAR], alguns países da Europa – como a França, a Alemanha e a Espanha – correm um sério risco de perda de identidade». Aqui, confesso que a minha irritação explodiu. A palavra «identidade» serve hoje em dia para justificar todas as opressões e formas de controlo dos grupos sobre os indivíduos, e isso vê-se desde a defesa icarística de uma menção às «raízes cristãs» no projecto de Constituição da União Europeia, até à obrigação de raparigas de origem muçulmana usarem o véu islâmico. E quem fala em nome da «tradição» e da «identidade»? Sempre, sempre, o clero. (E o mais extremista, claro…)

Pessoalmente, como ateu que sou, jamais me conseguirei identificar com um Estado português que, como quer a candidata a deputada, seja baseado nos «nossos (…) valores católicos». Eu não faço parte do «nós» que ela conjuga, tenho todo o direito a isso, e passo bem sem as crises de identidade da senhora Zita Seabra. A «identidade cultural» ou é dinâmica ou não é democrática, e se há necessidade de valores comuns, e eu reconheço que pode haver, que sejam os da República e da Democracia, e as leis que democraticamente a comunidade política decida dar a si própria. Dispenso leis e valores «revelados» por uma entidade sobrenatural em que não acredito, e transmitidos por intermediários terrestres de que a História me aconselha a desconfiar. Evidentemente, o direito de se orientar por esses valores (no quadro das leis comuns) é intocável. Simplesmente, a comunidade política e a comunidade eclesial são entidades distintas e devem sê-lo cada vez mais.