Da Natureza do Homem: mitos urbanos e outras histórias
A concepção do ser humano como naturalmente perverso é, na tradição judaico-cristã e em muitas outras culturas, a explicação para a existência do Mal. Outra concepção concomitante é o mito da Queda que nos sobrecarrega com o pecado original: «o homem era inocente e bom, e o mundo era um jardim, um paraíso. Mas o homem foi tentado, sucumbiu e caiu». Muito veementes na condenação da natureza humana e da sua natureza intrinseca e irrevogavelmente má (sem salvação fora do amor a Deus) encontramos na tradição cristã os escritos atribuídos a São Paulo. Nomeadamente podemos ler que os homens «estão cheios de perversidade, maldade, avareza, vícios, ciúmes, crimes, lutas, mentiras e malícia. Difamam e falam mal uns dos outros. Odeiam a Deus e são atrevidos, orgulhosos e vaidosos. Inventam muitas maneiras de fazer o mal, desobedecem aos pais, são imorais, não cumprem a palavra, não têm amor por ninguém e não têm pena dos outros».
Na sociedade ocidental este pessimismo em relação à natureza humana acompanhou e marcou os pensadores e, segundo Ashley Montagu, foi secularizado ao longo dos séculos de influência da tradição cristã de forma que influenciou mesmo os mais notáveis ateus ou autores que negavam a base religiosa do seu pensamento. Nomeadamente Freud, Thomas Huxley ( que introduziu o termo agnóstico), Herbert Spencer, Konrad Lorenz, Niko Tinbergen ou Desmond Morris.
O facto de os autores citados serem cientistas de renome, autores de obras com grande divulgação entre o público em geral, contribuiu para o sedimentar desta descrença na bondade do Homem.
Todos estamos familiarizados com a cena de abertura do famoso filme de Stanley Kubrik «2001, Odisseia no Espaço» que corrobora esta noção da inata violência do Homem, que o acompanha desde os primórdios da evolução. Mas poucos saberão que estamos a assimilar as teorias (erradas) de um antropólogo australiano, Raymond Dart. Em 1924, Raymond Dart fez a descoberta que o tornou famoso. Dart trabalhava com os seus alunos numa exploração de pedra em Taung e descobriu o fóssil de um crânio de um primata, um elo na evolução do homem, a que chamou Australopitecus africanus. Dart concluiu que nos locais onde estas criaturas tinham vivido, existia uma cultura «osteodonkeratic« (ossos, dentes e chifres) e argumentava que eles eram caçadores selvagens e sedentos de sangue, cujas tendências deixaram marcas indeléveis no comportamento humano. E afirmou que «as mais recentes atrocidades da II Guerra Mundial estão de acordo com o primitivo canibalismo universal, com as práticas de sacrifícios animais e humanos ou seus substitutos em religiões formalizadas, e com as práticas generalizadas de escalpelizar, caçar cabeças para reduzi-las, mutilar corpos, e com as actividades necrófilas da humanidade revelando esse hábito predatório, essa marca de Caim, essa sede de sangue que separa dieteticamente o homem dos seus parentes antropóides e o aproxima dos mais mortíferos dos carnívoros». A epígrafe do artigo de Dart «A Transição Predatória de Macaco a Homem», é uma citação de Baxter, famoso teólogo inglês do século XVII: «De todas as feras, a fera homem é a pior. Para as outras e para si mesma, o mais cruel inimigo», ou seja, as suas elucubrações foram certamente influenciadas pelo pensamento religioso!
A visão dos «macacos assassinos» foi popularizada pelo escritor Robert Ardrey em livros como African Genesis que por sua vez serviram de inspiração para a cena de abertura do filme «2001: A Odisseia no Espaço». Estas ideias foram fortemente criticadas e estudos posteriores provaram que estavam totalmente erradas. No entanto, para o público em geral a imagem que perdura incontestada é a violência primeva do Homem, a sua tendência natural para o mal, um assassino da sua própria espécie.
Em oposição a esta tese, que coloca na biologia ou na natureza do Homem, a fonte dos males que assolam a Humanidade, encontramos a tese do «bom selvagem», o homem intrinsecamente bom «estragado» pela civilização, defendida por Montesquieu, Rousseau e Reich, entre os mais conhecidos, que coloca o ónus do mal na estrutura social e política que desenvolvemos, na religião, na ética, na cultura, etc..
Apesar de não subscrever na íntegra esta tese do «bom selvagem», até porque os avanços da neurobiologia nos indicam que há causas biológicas para comportamentos violentos e anti-sociais em alguns indíviduos, ou seja, que nem os bons selvagens estão imunes a distúrbios biológicos, suponho que podemos encontrar algumas causas dos males sociais, tal como hoje os entendemos, nas raízes judaico-cristãs da sociedade ocidental, já que estas condicionaram e determinaram, directa ou por oposição, a nossa evolução social.
Assim, se analisarmos criticamente a História, podemos constatar que apenas depois de Petrarca e do início dos movimentos humanistas, que colocam a ênfase no Homem e não em qualquer ser transcendente, e consequentes separação da Igreja-Ciência e da Igreja-Estado se dá um avanço ético nas sociedades ocidentais. A progressão do sub-homem de Sartre para o Homem pleno, só pode de facto realizar-se através do humanismo. Apenas acreditando no Homem, repudiando a tradição cristã da sua natureza pecadora e má, e estabelecendo uma ética centrada no Homem e não em verdades «reveladas», podemos viver harmoniosamente com os nossos semelhantes. O que não obsta a que quem acredite nessas verdades reveladas as siga na sua vivência pessoal, desde que não colidam com a ética humanista.
De facto, as minhas objecções ao cristianismo são na linha das de Kierkegaard, ou seja, não apenas no campo da dúvida intelectual, mas no campo ético. O cristianismo aponta como doutrina fundamental uma aceitação submissa, que se opõe a qualquer «insubordinação, relutância em obedecer, rebelião contra a autoridade». O exemplo que Kierkegaard invoca é o de Abraão e Isaac. Deus ordena a Abraão para sacrificar o seu filho, isto é, Deus ordena a Abraão para cometer um assassínio. Há aqui um aparente paradoxo, resolvido se entendermos que este episódio pretende incutir a lição que é mais importante obedecer a Deus do que preservar a vida humana.
Para mim, independentemente de acreditarmos ou não na existência de Deus, deusas ou deuses, as regras de conduta social devem subscrever-se ao Homem e não a qualquer entidade exógena. Assim, acho que o desafio do século XXI é a separação Igreja/religião-Ética!
Bibliografia:
Ashley Montagu, «The Nature of Human Aggression». Oxford University Press