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Gnósticos e ateus

Vamos lá ver, eu ponho o meu problema assim:

Não sou gnóstico nem tão pouco agnóstico. Ambos os termos se reportam ao mesmo conceito de referência, contido no vocábulo a que se prendem, a palavra agnosticismo.

O agnosticismo é uma doutrina segundo a qual as questões suscitadas pela metafísica sobre a existência de Deus, origem e sentido da vida e do universo, a essência das religiões, etc., escapam e são inacessíveis à compreensão e entendimento do homem, na medida em que não cabem nem são redutíveis a qualquer comprovação de caracter científico minimamente credível.

Os seguidores desta doutrina dir-se-ão agnósticos, ao passo que os outros, isto é, os que se satisfazem com explanações esotéricas ou transcendentais da vida e daqueles problemas, são havidos por gnósticos.

Gnóstico ou agnóstico?… Eis a questão.

Mas eu direi: – Nada disso! Nem uma coisa nem outra, pois não é forçoso que seja, irrecusavelmente, ou uma ou outra a postura adoptada.Nem sequer são antónimos.

Longe vai já o tempo dos desesperados monismos redutores do mundo ao preto e branco de uma escolha única possível, oferecida ao entendimento das coisas.

A história do pensamento do homem tem mostrado como são falazes e fantasiosas todas as tentativas ensaiadas ao longo dos tempos para lhe fixar balizas sistemáticas que o contenham e domem. Sempre a busca da claridade e da razão das causas, e das causas das causas, se lhe impôs como mandato irrevogável a cumprir, rasgando caminhos e lançando pontes tanto quanto a vontade e o engenho o adjuvassem. Sem obediências cegas e incondicionais. Sem vassalagens. Livremente. Como o vento nas searas ou acariciando a superfície das águas.

Assim, pois, também entre o teísta e o incréu permanece imenso e livre todo um incomensurável espaço de lavra possível, aberto e oferecido às sementes das ideias e das dúvidas, das perguntas e das respostas, à espera que seja, depois, o mesmo semeador a conseguir e recolher os frutos e os ensinamentos. E estes, sim, são antónimos, e de tal modo afastados um do outro que quase se tocam nas pontas do mesmo radicalismo.

Ora é exactamente aqui que acho uma porta para eu entrar. O caminho foi longo e ainda não terminou. Começa lá longe, nos imprecisos alvores dos meus cinco anos, ou talvez antes, sim, antes, pois aos cinco já me vestiam de cruzado e de mãos postas me enfileiravam no rebanho que o senhor abade pastoreava em dias solenes e procissões da praxe. Depois veio a doutrina toda, em catadupas, que as zeladoras da Igreja, da roda do senhor abade, nos obrigaram a decorar, a mim e aos outros da mesma catequese, em monótonas cantilenas de tabuada ou como das linhas dos caminhos de ferro, com os nomes das estações, apeadeiros, ramais e tudo, ou das serras e dos rios com seus afluentes, d’àquem e d’além mar em África, tudo isso na ponta da língua, sem falhar nada.

Cedo, porém, começou a reflexão. A Branca de Neve, o Pai Natal, o menino Jesus, o Pai Gepeto e o Pinóquio, as Fadas e as Bruxas, os Gigantes, os anões, o lobo mau, as almas do outro mundo e os mortos que, mesmo fantasmas e tudo, falavam e faziam barulhos, o Céu e o Inferno, Deus e o Diabo, e os anjos, e os milagres e Deus e os arcanjos a ajudar nas guerras ora uns ora outros e a não fazerem peva nas grandes desgraças do mundo, quais fomes, pestes, mortes horríveis, crimes e outros males, e tudo isso foi entrando pelo juizo dentro ao mesmo tempo que também o juízo ia entrando pelo tempo fora, a magicar desconfianças, a misturar fantasias, a fazer deduções, a pôr hipóteses a que os padrecos interrogados respondiam mal, e depois ainda, o Renan e a seguir o Drama de Jean Barois… e os caminhos do juízo e do entendimento a abrirem-se cada vez mais…Élááá-ôo! Por fim uma leitura já mais séria da vida, e da vida dos outros, e também dos santos, e dos profetas, e dos textos inventados por doentes esquizofrénicos, trazidos às multidões na voz de profetas malucos, poetas desvairados, sibilas, pitonisas e outras cassandras do marketing das divindades várias, abundantes, sucessivas, renováveis e reencarnáveis umas nas outras, interminavelmente. Já mais p’ra agora, novamente os livros, de apuramento e lavagem das leituras anteriores, e outras de grau mais limpo, com filósofos de permeio a debaterem-se exaustos e inconclusivos, a medirem e a confrontarem certezas contaminadas por claridades súbitas, dúvidas insidiosas, suspeitas iniludíveis, mas, concomitantemente, também uma compreensão nova, mais serena e talvez lúcida.

Em suma: – dou comigo ateu retinto, assumido, desgostoso e impenitente, a olhar de lado e de viés longínquas lembranças das penas perdidas, daquelas asas brancas que um dia um anjo me deu…. «Pena a pena me caíram/ Nunca mais voei ao Céu…».

Irremediavelmente ateu, deixou-me a «teotomia» (ou «deotomia»?…) sofrida em estado semelhante ao do amputado que por algum tempo ainda vai continuar a sentir em si a dor-sombra do membro fantasma que da ablação consumada lhe ficou.

Albertino Almeida

Perfil de Autor

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- Ex-Presidente da Direcção da Associação Ateísta Portuguesa

- Sócio fundador da Associação República e laicidade;

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- Colaborador do Jornal do Fundão;

- Colunista do mensário de Almeida «Praça Alta»

- Colunista do semanário «O Despertar» - Coimbra:

- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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