O epicurista Emídio Guerreiro
Para além do que Carlos Esperança referiu no seu artigo de homenagem a um dos homens mais marcantes do Portugal contemporâneo, descobri nas entrevistas que Emídio Guerreiro concedeu ao Diário de Notícias e à Pública que ele se assume como um epicurista, ou seja, seguidor da linha filosófica da Grécia clássica mais denegrida pela ICAR. Epicurus, que ensinava no seu jardim escravos e mulheres, algo inaudito, para além de precursor do pensamento científico moderno, tendo introduzido o conceito de movimento aleatório e desenvolvido o atomismo de Leuccipus e Democritus, foi o primeiro ateísta de que há registo histórico.
O epicurismo foi continuado em Roma destacando-se nos seguidores romanos Titus Lucrecius Carus (98-55 a.C.) e a sua obra De Rerum Natura (A Natureza das Coisas). Do ponto de vista filosófico, o atomismo deixa pouca ou nenhuma margem para a intervenção divina, nomeadamente negava o milagre da transmutação do pão e vinho em carne e sangue, sendo considerado heresia pela Igreja Católica. A redescoberta do poema de Lucrecius na Renascença foi fulcral para o estabelecimento das bases do pensamento científico renascentista. Giordano Bruno, queimado vivo no Campo dei Fiori em Roma, por ordem do agora santo cardeal Bellarmino, foi um epicurista.
Alguns excertos das entrevistas a Emídio Guerreiro:
«O terceiro milénio será, na minha opinião, o milénio da desalienação humana. O homem criou mitos, depois confiou atributos a esses mitos, depois sujeitou-se a eles. Agora vai-se libertar deles.»
«Há um filósofo grego, Epicuro, que tem uma concepção maravilhosa sobre o que é a morte: Enquanto tu és, a morte não existe, enquanto a morte não está, tu estás. Depois, é o nada absoluto.»
«Mas só a partir de Descartes [1596-1650] é que o racionalismo passou a ser um instrumento para construir a própria razão humana. Pela dúvida metódica, passo a passo, procede-se para o conhecimento de uma verdade que permite alcançar o conhecimento de outra verdade. Chega-se à verdade formulada, sem imposição de uma verdade revelada.
Não foi pouca coragem a dele para o dizer, pois nessa altura realizava-se o julgamento, terrível, de Galileu Galilei [1564-1642].»
«Desde tempos imemoriais que o homem vive em sociedade, pelo menos desde o tempo em que Prometeu lhe comunicou o segredo do fogo. Com a agricultura fixou-se e deixou o estado selvagem. A partir daí teve que sujeitar-se a hábitos, costumes, a leis que ele próprio fez. Data daí a alienação do homem. Ele criou determinadas noções, às quais se sujeitou, e que depois acabaram por aliená-lo, moldá-lo numa outra natureza,(…) por exemplo, a noção de deus é aqui em Portugal maioritariamente católica. Mas a história da construção deste ser transcendental, que na origem parece ser uma atitude irracional, é própria do homem, da sua razão humana. Foi uma maneira de interpretar a natureza. Os fenómenos que a ciência não sabia explicar foram atribuídos a uma força superior, o que, independentemente da validade da atribuição, é uma explicação. Daí que para se explicar a si mesmo, tenha criado um deus à sua imagem e semelhança.»