ENA2 na imprensa V
União de Ateus reclama direitos iguais
Ontem, foi dado o primeiro passo para a constituição da União Ateísta Portuguesa. Pela primeira vez, os que não acreditam em Deus reúnem-se e reclamam a igualdade de direitos entre crentes e não crentes. No entanto, algumas curiosidades teimam em povoar as vidas dos ateus e a reclamá-los para o reino dos que acreditam num ser supremo.
Cerca de 25 pessoas reuniram-se ontem à volta de uma mesa no Centro Republicano Almirante Reis, em Lisboa. Em comum, têm o facto de serem ateus, ou seja, não acreditarem na existência de nenhum deus. Durante o segundo encontro nacional – o primeiro decorreu em Dezembro do ano passado, em Coimbra -, foi lançada a primeira pedra da União Ateísta Portuguesa.
Apresentado o traço comum, ouvem-se conversas que denunciam muitas diferenças. Essencialmente, debatem-se questões, ouvem-se opiniões e reflecte-se. Todos gostam de frisar que pensam pela sua própria cabeça e que as semelhanças acabam no ateísmo. Que convém distinguir de agnosticismo: que assume a incerteza e o desconhecimento.
Paula Alves, 21 anos, chegou ao Centro Republicano “por acaso”, apesar de perfilhar a mesma forma de estar na vida. “Vim com um amigo, mas partilho os ideais e sinto que o debate é importante”, explica Paula, que aos 13 anos soube que a sua natureza era inconciliável com a crença num deus todo-poderoso.
Paula também sente a necessidade de se associar. “Sinto que existem muitas pessoas isoladas e sem um local onde se possam dirigir para tirar as suas dúvidas”, defende a jovem, que teve uma educação marcadamente católica com idas à missa e direito a baptizado e primeira comunhão.
Conta que aos 13 anos, por intermédio de conversas entre amigos e algumas leituras, começou por questionar a existência de Deus e acabou por mudar o rumo à sua vida. Apesar da certeza, ainda não confessou a mudança aos avós, com quem vive. “Não discutimos o assunto, eles sabem que não vou à missa, mas não sabem se sou apenas uma católica não praticante. Também nunca esclareci o assunto, porque é o tipo de coisa que não leva a lado nenhum”, pensa.
Cada cabeça, sua sentença. Cada corpo, uma história de vida. A presença de Ludwig Krippahl no segundo encontro de ateus, em Portugal, não é obra do acaso. Apesar de ser jovem, Krippahl já tem ligações ao movimento associativo, pois é presidente da Associação de Cépticos de Portugal (CEPO). “E sou ateu”, apressa-se a clarificar.
As ligações a outras das pessoas presentes na reunião também contribuiu para a sua presença. ?Objectivamente não há indícios de que Deus exista?, explica. Questionado sobre quando se deu esse “clique”, Krippahl faz um esforço de memória, mas conclui: “Desde que me lembro nunca achei que houvesse indícios da existência de Deus.”
“Para mim é mais fácil aceitar que Deus não existe num mundo onde uma criança pisa uma mina e fica sem as duas pernas. O Universo não é compatível com um Deus bom. Se existe é necessariamente mau ou tem um sentido de humor muito mau. Se existir, não é uma pessoa que gostasse de conhecer”, acrescenta.
Apesar de ser ateu e céptico, Krippahl tem as suas próprias crenças. “Todos os nossos valores pessoais são crenças. Acredito que é bom estar vivo e que gosto muito dos meus filhos.” O dirigente da CEPO explica a diferença entre os conceitos de cepticismo e ateísmo: “O nosso cepticismo não se prende com as crenças das pessoas, mas com as suas afirmações. Distinguimos a opinião subjectiva da análise objectiva. Um céptico pode perfeitamente dizer ‘eu acredito no Pai Natal’. O que tem de evitar é ‘afirmo que o Pai Natal existe porque eu acredito’.”
Apesar de cepticista e ateu, Ludwig Krippahl casou pela Igreja Católica. “Casei pela Igreja por causa de familiares, que gostavam que assim fosse. Também não acredito no Pai Natal e não deixo de passar o Natal com a família.”
Uma das coisas que mais revoltam Krippahl é a “intrujice”. “Quem quiser acredita em Deus, o que considero revoltante é a intrujice que há à volta dos milagres. Não se deve acreditar em Deus porque senão vai-se parar ao inferno”, defende. De acordo com Krippahl, a principal luta da União Ateísta Portuguesa deve passar pelo combate à crença em Deus por imposição ou herança familiar, através da informação e divulgação de factos cientificamente provados. A importância de constituir o movimento é ainda fundamental para “mostrar que é possível não escolher qualquer religião.”
UNIÃO. A primeira pedra para a criação da União Ateísta Portuguesa foi dada ontem pelas vinte e cinco pessoas presentes no segundo encontro nacional de ateus. Mas o início deste processo remonta a Agosto de 1999, quando foi criado o site www.ateismo.net, que assumiu o papel de ponto de encontro entre os ateus portugueses.
Cerca de 180 pessoas recebem regularmente informações do site, apesar de no encontro ter comparecido menos de um sexto deste número. Mas de acordo com Ricardo Alves, organizador da reunião e membro fundador da Associação República e Laicidade, os Censos de 2001 registaram um leque muito mais vasto de não crentes: 340 mil pessoas. Resta saber por onde param.
“É um número superior ao de qualquer minoria religiosa. Por exemplo, existem 12 mil muçulmanos, 1800 judeus e a Igreja Católica reclama 1900 praticantes”, defende. A possibilidade de criar uma associação que represente os ateus portugueses é um desafio para Ricardo Alves, pelo facto “de serem todos livres e independentes”. Ou seja, as semelhanças acabam na ausência de crenças religiosas.
O dirigente considera que a utilidade da associação aumenta na proporção “em que em Portugal existe cada vez mais um catolicismo de fachada.”
Na reunião, foi aprovada, por aclamação, a constituição da União Ateísta Portuguesa e a discussão sobre os estatutos já começou. “Não concordamos com a educação moral e religiosa nas escolas públicas – pois nós consideramos que devia ser um ensino laico -, nem com os direitos judiciais concedidos aos padres, que não são incriminados judicialmente por não divulgarem segredos ouvidos em confissão.”
A solução ideal passa mesmo pela exclusão da disciplina de educação moral e religiosa do programa do Ministério da Educação. “A divulgação deve-se fazer nas igrejas. Tal como não concordamos com a existência de crucifixos nas escolas públicas, já que foram instrumentos de tortura noutras altura”, atesta.
Ricardo Alves acredita que “os deuses são criações da imaginação dos homens, alimentadas pela necessidade de explicar factos da natureza para os quais não existia então explicação, mas também surgiram como uma forma de legitimar o poder político.”
FADAS E GNOMOS. Já Onofre Varela considera incompreensível que em pleno século XXI “existam pessoas que acreditam em Deus a partir do nada?. ?É uma crença inocente igual a acreditar em fadas e gnomos”, acrescenta um dos mentores da União Ateísta Portuguesa, jornalista agora na reforma.
Tirar os ateus do quarto escuro é a meta que a associação pretende atingir mais facilmente. “Considero que os ateus são ignorados, são mesmo vetados”, confessa, ao mesmo tempo que sublinha já ter sentido pressões sociais por assumir-se. Mas mais uma vez confirma: “Tudo o que continua por explicar será esclarecido pelas ciências.”
Alertar consciências é outro propósito que se pretende atingir com a criação da associação. “A crença em Deus tornou-se um comércio e gera especulações políticas e sociais muito grandes, como agora na questão do aborto, por exemplo, através da utilização do mandamento ‘não matarás’.”
Outro dos objectivos é a associação tornar-se parceiro social na discussão de matérias ligadas à educação. “Nas escolas, a religião só devia entrar de um modo histórico e não de uma forma confessional”, opina Onofre.
A oposição à Concordata une os ateus, que consideram que este tratado internacional concede privilégios aos católicos. Actualmente, vigora em Portugal a Concordata, de 1940, mas um novo documento aguarda aprovação da Assembleia da República.
Os ateus criticam o facto de a nova Concordata assumir a categoria de um tratado internacional entre dois Estados (Portugal e Vaticano) e, por conseguinte, só poder ser alterada com o mútuo consentimentos das partes. Refira-se ainda que as outras confissões religiosas estão sujeitas à Lei da Liberdade Religiosa, o que as coloca sob a alçada da Comissão de Liberdade Religiosa, sob a tutela da Igreja Católica Apostólica Romana.
Maria Teresa Horta
“Acho muito curioso a criação de um grupo de ateus. Apesar de ser ateia, não sinto necessidade de me organizar. Penso que não é por aí que as coisas se resolvem, mas a reflexão é salutar. Também tem que ver com o Código Da Vinci [livro de Dan Brown], que retorna ao mistério e à busca da espiritualidade. Na mesma medida, revelam-se forças contrárias, como é o caso dos ateus. Nunca fui convidada pelo grupo, mas se fosse era capaz de participar. Quando tive as minhas dúvidas esclareci-as com um padre da Igreja São João de Deus. Como ateia, já sofri alguns dissabores. Quando andava na escola, a mãe de uma amiga minha quis falar com a minha mãe, porque achava que eu não era uma boa companhia.”
Francisco Louçã
“Não conhecia o grupo, nunca fui convidado, mas também não tenho nenhuma inclinação para isso. Mas considero legítimo as pessoas associarem-se. Nunca fui discriminado por ser ateu, pois nasci numa família com liberdade religiosa. Mas a minha filha, quando, há poucos anos, frequentava uma escola primária, em Lisboa, cuja professora era católica, deixava-a na varanda, inclusive no Inverno, quando leccionava religião e moral. Depois, pediram-me desculpa, e o assunto foi resolvido, mas considero que é uma anormalidade. Comigo, nem no tempo do fascismo senti qualquer tipo de pressão por não acreditar em Deus. Acho também, incrível que a Universidade Católica seja a única que não precise de autorização do Estado para criar novos cursos.”
Isabel do Carmo
“Considero que a questão de as pessoas serem religiosas ou ateias está ultrapassada. Acho mais lógico e moderno a criação de grupos laicos ou agnósticos. Eu sou agnóstica, pois não tenho certezas de nada, tenho uma posição mais aberta. Mas cada vez estou mais convencida de que não existe um deus supremo ou um super-homem a comandar o Mundo. Não sou baptizada e a minha família não é católica. No tempo da ditadura, quando andei no Liceu de Setúbal, onde havia muitas pessoas de esquerda, era a única menina não baptizada. Um padre tenebroso disse-me logo: ‘Então a menina é comunista!’. Durante os cinco anos de liceu sofri muitas pressões e tive imensas discussões.”
in A Capital, 05 de Setembro de 2004
Leia a resposta de Carlos Esperança ao artigo.