Da sexualidade e da ICAR, I: o pecado original
Estreio-me no Diário de Uns Ateus com um artigo em duas partes que tenta contextualizar a demonização do sexo e explicar (se é que no século XXI se consegue perceber) esta obsessão da Igreja em ser juíza da libido alheia. Que tem simultaneamente a ver com a demonização e menorização da mulher pela ICAR. Dia 31 de Julho Joseph Ratzinger da Congregação para a Doutrina da Fé (ex- Santo Ofício da Inquisição) divulga a sua carta aos Bispos católicos onde condena o feminismo, a «ideologia do sexo» e reitera a proibição da ordenação de mulheres. Neste pequeno excerto pode comprovar-se que o pensamento de Agostinho continua actual:
«Nas palavras que Deus dirige à mulher a seguir ao pecado, é expressa de forma lapidar, mas não menos impressionante, o tipo de relações que passarão a instaurar-se entre o homem e a mulher: «Sentir-te-ás atraída para o teu marido e ele te dominará» (Gen 3,16).»
De facto, foi Agostinho de Hipona que moldou o ideal da «piedade» cristã mais do que qualquer teólogo antes ou após ele e para Agostinho as mulheres eram um perigo moral. A fobia da mulher que se encontra em Agostinho, apenas entendida como uma aberração particularmente grotesca, que infelizmente se consolidou de pedra e cal na Igreja pela pena fácil e erudita de Agostinho, que o colocou entre os imortais da literatura mundial, teve consequências nefastas, especialmente para as mulheres e para uma sexualidade saudável.
Uma «pérola» de Agostinho:
«Mulheres não deveriam ser educadas ou ensinadas de nenhum modo. Deveriam, na verdade, ser segregadas já que são causa de horrendas e involuntárias erecções em santos homens».
Um pouco antes de completar o penúltimo livro da suas «Confissões», aproximadamente em 400, Agostinho implorou a Deus que se fosse ele o encarregado de escrever o Génesis como anteriormente o fora Moisés, desejaria «receber de Vós uma tal arte de expressão que…até aqueles que não podem compreender como é que Deus cria… acreditassem nas minhas palavras.»
Assim, sem qualquer incumbência divina mas tentando resolver as suas torturas pessoais, com a espantosa capacidade literária que os seus escritos testemunham, após ter terminado as Confissões iniciou uma interpretação pessoal do Génesis – De Genesi ad Litteram – em que o sexualidade e a depreciação do sexo são a nota dominante.
Donde viria, indagava ele, essa miséria que nos cerca, a corrupção, as heresias e a maldade? Existia na sociedade, concluiu ele, uma mancha indelével motivada pelo pecado original proveniente do impulso sexual. Pecado original que acompanhava a humanidade desde a queda do Paraíso: a queda de uma natureza angelical, incorpórea, para uma realização do corpo, do sexo, cometido com a dentadinha na maçã da maldita Eva que levou Adão a reconhecer a nudez (e implicitamente a sexualidade).
Tentando resolver a aparente contradição entre o «crescei e multiplicai-vos» e o acto impuro subjacente à multiplicação ou seja, como permitir a reprodução sem prazer sexual, Agostinho, bispo de Hipona, criou a sua doutrina sobre o casamento, o sexo e a privação carnal. Adoptada entusiasticamente pela nossa Santa Igreja até hoje. Infelizmente…
A pena de Agostinho deu à sexualidade uma conotação de algo maligno, humilhante, de perversão e vício. Para a ICAR depois de Agostinho o sexo passou a ser associado a um discordium malum, a «prenda» do Mafarrico disfarçado de serpente à pecaminosa Eva que para sempre agrilhoou a carne à Terra e a afastou dos céus e de Deus!
E como qualquer Freud de trazer por casa pode explicar, o problema de Agostinho foi o mesmo que os ex-fumadores experienciam: não suportam sequer o «cheiro» do que renunciaram…
Isto é, a obsessão de Agostinho em denunciar a sexualidade deve-se a ele ter sido um renegado do erotismo. Como abjurado das paixões sensuais, votou intenso ódio ao que, no passado, o atraiu, lamentando ter desperdiçado tanta energia nos prazeres carnais. Ele mesmo não negou ter sido dominado na sua juventude por uma intensa volúpia, pela lascívia, ao ponto de que, em determinado momento, quando pediu a Deus que o fizesse casto, acrescentou… «mas não ainda!».
Com a sua conversão ao cristianismo (Agostinho era originalmente maniqueísta), atribui as culpas do seu anterior pecaminoso comportamento a outrem. Ou seja, a culpa da sua perversidade devia-se às mulheres que o tinham seduzido. Daí todo o anátema em relação às mulheres.
Até hoje os celibatários da Igreja acreditam que o perigo tem feições femininas, as mulheres são impuras e como tal se opõem ao que é santo. Ou seja, são seres humanos de segunda classe a que muito relutante e tardiamente concederam a benesse de possuirem alma!