A hierarquia das igrejas em Portugal
A hierarquia tradicional das igrejas em Portugal, anterior à proposta de Lei de Liberdade Religiosa de Vera Jardim (de 1999), resumia-se ao reconhecimento estatal de uma única igreja, a ICAR, que gozava de vários privilégios conferidos pela Concordata de 1940, celebrada entre o ditador fascista Oliveira Salazar e o Papa pró-fascista Eugenio Pacelli.
O objectivo de Vera Jardim, plenamente atingido com a Lei de Liberdade Religiosa(LLR) aprovada em 2001, consistia em conceder a algumas outras igrejas parte dos privilégios de que gozava a ICAR, não beliscando no entanto a predominância da ICAR. Assim, a LLR exclui arbitrariamente uma igreja do seu campo de aplicação (a ICAR, ver artigo 58º) e introduz uma «Comissão de Liberdade Religiosa» (artigos 52º a 57º da LLR) para «ajudar o Estado» na tarefa que José Policarpo designou, à época, como «separar o trigo do joio», ou seja, decidir quais são as boas e as más religiões. Esta autêntica «Comissão de Opressão Religiosa» seria constituída por um Presidente (a nomear pelo Conselho de Ministros), «cinco pessoas de reconhecida competência científica» (a nomear pelo Ministro da Justiça), três membros indicados pelas igrejas não católicas tendo em conta a sua «representatividade» (e nomeados pelo Ministro da Justiça) e dois membros nomeados directamente pela Conferência Episcopal Portuguesa, apesar de a ICAR ser, recordemo-lo, a única igreja a que a LLR não se aplica.
A 17 de Março de 2004, Celeste Cardona deu posse à primeira «Comissão de Liberdade Religiosa». A título de representantes das «confissões minoritárias» foram nomeados um evangélico da AEP, um muçulmano e uma judia; a título de «especialistas», foram nomeados três professores próximos da ICAR e ainda um ismaelita e um hindu por participarem no «diálogo ecuménico e interconfessional» organizado pela ICAR. A interpretação do critério da «representatividade» ficou assim clara: embora qualquer IURD ou Maná (para nada dizer das Testemunhas de Jeová) tenha mais seguidores do que as associações judaicas ou muçulmanas (segundo o censo de 2001, haverá em Portugal menos de 2000 judeus e cerca de 12000 muçulmanos), as boas relações dos dirigentes destas últimas religiões com a ICAR asseguram-lhes lugares na Comissão.
Chegados a este ponto, o leitor interroga-se, avisadamente, sobre a importância que poderá ter esta Comissão… Os artigos 53º e 54º da LLR estabelecem-lhe as funções e a competência: emitir pareceres sobre o reconhecimento das igrejas pelo Estado e sobre os acordos a celebrar entre estas e o Estado, podendo assim as igrejas instaladas na Comissão dificultar o acesso de outras igrejas aos tempos de emissão na comunicação social, ao ensino nas escolas públicas e aos benefícios fiscais! Constituiu-se desta forma uma hierarquia das igrejas, através da qual a ICAR, coadjuvada pelas igrejas que decidiu co-optar para a Comissão, pode recomendar ao Estado quais são as boas e as más religiões. Além disso, a Comissão emitirá um «relatório anual» sobre os «novos movimentos religiosos», uma atribuição que faz lembrar o Tribunal do Santo Ofício… Situação actual comparável, entre os países da UE, existe apenas na Grécia, onde um local de culto não pode abrir sem a autorização prévia da Igreja Ortdoxa Grega…
Numa República verdadeiramente laica, nada disto seria necessário. Um Estado laico deve ser incompetente em matéria de religião. A «correcta» convicção religiosa ou não religiosa é um assunto da consciência de cada cidadão, no qual o Estado não deve interferir, limitando-se a garantir que, dentro dos limites legais, cada cidadão seja livre de crer ou não crer, de praticar ou não praticar, e que seja tratado em plena igualdade com os demais cidadãos independentemente da sua convicção. Decidir qual é a «boa» opção filosófica é evidentemente uma liberdade individual, e decidir associar-se com pessoas que pensam da mesma forma é uma escolha na qual nenhum grupo de cidadãos deve ser tratado de forma desigual face a outro grupo.