Contra a laicidade marchar, marchar
Na linha do que foi relatado no último post sobre o Parlamento das Religiões, chega esta notícia de última hora: a sessão principal de hoje incitou os seus participantes à criação de uma nova espiritualidade global que se afaste não só dos fundamentalismos religiosos mas também da modernidade secularizante imposta pelo capitalismo e pelas potências militares e económicas do Ocidente.
Para o rabino Michael Lerner, presidente da Comunidade Interreligiosa Tikkun, este sistema religioso alternativo (e que não querem) foi imposto militar e economicamente ao longo dos últimos séculos e teve um impacto a nível mundial com a destruição dos mecanismos de apoio mútuo, a imposição da ética do egoísmo, a psicologia do narcisismo e a tela dos valores materialistas. Com tudo isto esqueceu-se de mencionar avanços importantes conseguidos pelos Estados laicos como políticas de redistribuição de riqueza através da segurança social, sistemas de saúde acessíveis a todos e educação gratuita.
Notando que este fundamentalismo laico é fruto de uma imposição, primeiro das potências militares-colonizadoras e, agora, das potências militares e económicas mundiais, Lerner explicou os fundamentalismos religiosos como uma resposta distorcida a esta realidade distorcida. Suponho que a realidade distorcida será um Estado que não favoreça nenhuma religião e uma sociedade plural que esse assunto pertence à esfera pessoal de cada um.
Perante isso, propugnou uma espiritualidade alternativa que fuja dos critérios únicos de eficiência, produtividade e racionalidade, adicionando outros como a generosidade, o amor ao ser humano e a capacidade de assombro perante a beleza e o milagre da criação. Assim, conseguir-se-á excluir todos aqueles que não acreditam no milagre da criação e que defendem a racionalidade, o espírito científico construindo um mundo de ovelhas que seguem os ensinamentos que alguém diz serem de deus.
Karen Armstrong, que escreveu várias obras sobre o fundamentalismo religioso, explicou estes movimentos como uma revolta contra a hegemonia da modernidade e afirmou que é preciso compreender as raízes de temor e desespero que os criam. Um temor que, sob o entendimento que a sociedade laica quer eliminar a sua religião, não é apenas paranóia, assinalou a autora, que falou do fundamentalismo judeu avivado pelo holocausto nazi e depois da guerra de 1973, quando Israel se sentiu isolado no Médio Oriente, do fundamentalismo islâmico surgido da imposição de sistemas laicos tanto pelas elites dos seus países como pelas potência estrangeiras e do fundamentalismo cristão dos Estados Unidos. Os três nasceram de sectores sociais que viram a modernidade como um ataque e reagiram criando uma modernidade religiosa, disse Armstrong. Este é um erro comum. A laicidade não implica uma perseguição às crenças, antes pelo contrário. A laicidade defende que cada um tem o direito a acreditar ou não no que quiser, mas isso não deve interferir na esfera pública como elemento discriminatório.
Karen Armstrong enfatizou que só uma pequena parte dos fundamentalistas
optam pela violência e o terrorismo, assegurando que se trata de movimentos que só poderiam ter-se desenvolvido nesta época e que estão a tornar-se cada vez mais extremistas ao sentirem-se cada vez mais atacados, algo que ocorre desde 11-S. Quem a ouvir falar até parece que o fundamentalismo religioso é uma invenção nova. E as Cruzadas? E as missões que pulularam com os Descobrimentos e que converteram milhares de nativos ao cristianismo? E as caças às bruxas? E a Inquisição? E o Édito de Nantes? E a discriminação das mulheres no Islão, no judaísmo e no cristianismo que surgiu desde o seu início? A laicidade não é uma desculpa para a intolerância que as religiões arrastam por não serem capazes de tolerar quem é diferente… acredite ou não em deus.