«Deus» fora, ICAR dentro
Quando se iniciaram os trabalhos da Convenção que decidiu o essencial do tratado constitucional da UE (finais de 2002), a ICAR já divulgara publicamente (a 21/5/2002) a sua «contribuição» para o debate(1). Nesse documento, exigia-se:
(i) a adopção da declaração nº11 anexa à acta final do Tratado de Amesterdão, garantindo assim constitucionalmente o «respeito pelo estatuto das Igrejas e comunidades religiosas» nos respectivos contextos nacionais;
(ii) «um diálogo estruturado entre as instituições europeias e as Igrejas e comunidades religiosas», no reconhecimento do seu «contributo específico»;
(iii) que fosse feita referência ao «nome de Deus», «a fim de permitir a identificação dos cidadãos com os valores da União Europeia».
Posteriormente, a opinião pública concentrou-se na questão da «referência a Deus», que evoluiu para uma exigência de menção à «herança cristã». No entanto, desde o início que as organizações europeias de defesa e promoção da laicidade (nomeadamente, a Federação Humanista Europeia) dirigiram os seus esforços quer contra a invocação a «Deus» quer contra a adopção da acta adicional.
Efectivamente, uma Constituição moderna não deve ser proclamada em nome de crenças pessoais, mas sim em nome do povo a que se destina, e não deve dividir os cidadãos por questões de convicção, e a querela do preâmbulo mostrou sobejamente a quem tivesse dúvidas que o cristianismo divide a Europa… Infelizmente, a convenção europeia, embora tenha afastado a «referência cristã», vergou-se às exigências (i) e (ii) da ICAR, bem mais graves. Assim, o artigo I-51 do tratado constitucional não apenas garante que o direito da UE não afectará os privilégios nacionais das igrejas que pudessem ser postos em causa por outras disposições do tratado, como também garante um processo de consulta legislativo entre as «igrejas e comunidades religiosas» e a UE, no «reconhecimento» do tal «contributo específico». É óbvio que a ICAR entende este contributo como a defesa das suas posições dogmáticas em matéria de contracepção, uniões legais entre homossexuais, investigação científica e (bem grande) etc.
Há assim fundadas razões para afirmar que o tratado constitucional não institui uma União Europeia laica. Antes pelo contrário. Aliás, não é por acaso que a COMECE afirmou vitoriosamente que os bispos da UE são «unânimes em saudar favoravelmente» o tratado constitucional.
Que a opinião pública continue convencida de que o tratado constitucional constitui uma afronta à ICAR apenas evidencia que a questão do preâmbulo funcionou como uma eficaz cortina de fumo.
(1) Refiro-me ao documento da COMECE (Comissão dos Episcopados da União Europeia) datado de 21/5/2002.