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Fátima vista por outros olhos

Não é política habitual a citação de artigos escritos em outros blogs. No entanto, creio que, nesta situação, impõe-se a referência a este excelente texto do blog Confissões de um Atrasado Mental, que o João Vasco teve a boa ideia de partilhar na nossa lista de discussão.

Eu gosto de Fátima

Podia ser uma declaração de amor platónico pela martirizada (e sexy, sejamos sinceros, a mulher só com a voz faria Sua Santidade o Papa ter uma erecção) ex ou actual ou futura presidente (possivelmente as três coisas ao mesmo tempo) da câmara municipal de Felgueiras. Mas não é. Fica para outro dia.

Falo da outra Fátima. Da que tem uma capelinha das aparições em vez de um saco azul e um apartamento com vista sobre Copacabana. E não é pelo pitoresco da coisa nem por convicção religiosa que manifesto a minha afeição. Considero que Fátima desempenha, e tem desempenhado ao longo das décadas, um papel profiláctico na sociedade portuguesa e que esse papel se tem mantido inalterado com a passagem dos anos e com todas as mudanças que o país tem atravessado.

A profilaxia de que falo faz ou fez-se sentir de várias formas. Comecemos pelo princípio. Tudo começou quando três jovens pastores de nome Lúcia, Francisco e Jacinta foram surpreendidos no desempenho da sua actividade pastoril por uma aparição de Nossa Senhora.

A aparição apresentou-se, disse ao que vinha e a partir daí a história é sobejamente conhecida. Não pretendo discutir a veracidade da aparição. Não sendo propriamente uma pessoa de fé, acredito no entanto que existem fenómenos que não podem ser explicados pela ciência e que três crianças analfabetas de um meio pobre e atrasado vejam uma mulher que permaneceu virgem depois de ter concebido e dado à luz um carpinteiro robusto a flutuar sobre uma moita envolta em luzes, estando morta há mil anos, é precisamente o tipo de coisa em que não me custa nada acreditar.

Mas e se a aparição não tivesse existido? Francisco e Lúcia cresceriam para se tornar gente rude do campo como os seus pais e avós. Casariam, teriam filhos, morreriam de velhos. Os seus nomes seriam lembrados apenas pelos familiares. Hoje, e apesar de terem morrido de doença em idade tão tenra, são beatos venerados por católicos fervorosos em todo o mundo. Com um pouco de sorte e vontade milagreira, chegarão a santos em breve.

Quanto a Lúcia, a mais activa no diálogo com a santa, trata-se obviamente de uma mulher de ambição. Se não tivesse visto a virgem mais improvável da história da humanidade a equilibrar-se sobre uma azinheira, teria seguido o caminho dos seus primos. Teria casado, teria sido mãe. Ao longo da sua vida, é provável que tivesse ouvido falar de D. Sebastião, o mítico rei que voltará a Portugal envolto em nevoeiro (ainda não foi hoje, amigos, esperem mais uma semana ou assim). Em vez de ver santas, a sua imaginação prodigiosa fá-la-ia acreditar ser ela a reencarnação do rei desejado, enviada à Terra para salvar o país da perigosa república ateia que o governava. Reuniria seguidores. Os seguidores armar-se-iam. Derrubariam o governo. O movimento espalhar-se-ia a Espanha e, em seguida, a todos os países do mundo católico e até ao mundo herético que descobriria a verdadeira fé pela força se preciso fosse.

Em alguns anos, o planeta inteiro seria governado por uma ditadura cruel, férrea e beata em que a reza do terço três vezes ao dia seria mais importante do que as refeições, em que a missa seria uma obrigação diária, sendo as faltas punidas com flagelação na praça pública, em que a Bíblia, o catecismo, os missais e obras piedosas sobre a vida de santos seriam os únicos livros permitidos, em que quem não aceitasse submeter-se acabaria queimado na fogueira (nem tudo seria original, portanto). E, à cabeça de tudo, sentada num trono dourado com almofadinhas de veludo para acomodar o seu amplo e piedoso traseiro, Lúcia contemplaria o império de fé e caridade cristã que tinha construído.

Estamos melhor assim, não estamos?

E foi tudo evitado pelas aparições.

Rebuscado?

Pouco realista?

Talvez. Mas não precisamos de ir tão longe para falar do tal papel profiláctico. Limitemo-nos à realidade contemporânea.

Todos os anos, milhares de pessoas de todo o mundo vão a Fátima, movidas pela fé em Nossa Senhora e no milagre e fazem-no praticamente desde o início, desde o ano de 1917. Desde essa altura, milhões de portugueses e gente de fora terão ido a Fátima. Uma boa parte destes devotos faz promessas e paga-as das maneiras mais diversas. Há quem queime um peso várias vezes superior ao próprio em cera (sob a forma de velas de vários tamanhos ou de partes do corpo), há quem se desloque a pé do outro extremo do país, chegando ao destino com os pés num tal estado que o próprio Cristo flagelado e crucificado (mesmo o Cristo de Mel Gibson) diria ?Bolas… isso está mau, hã?? Há outros que se arrastam de bruços pelo chão ou de joelhos, ou fazendo o pino ou apoiados na extremidade do nariz.

O que cada qual faz com o corpo só ao próprio dirá respeito mas uma coisa é indiscutível. As pessoas que fazem isto são gente perigosa. Compreendo que muitas o fazem por desespero e porque já não têm mais nada a que recorrer para curar doenças ou resolver situações pessoais desagradáveis. Também sei que a maior parte é gente sem grande capacidade cerebral, como os devotos cegos de qualquer religião, e que não sabem mais do que aquilo.

Mas isso não invalida o que antes disse. Seja por culpa própria ou alheia, são gente perigosa. Quem se arrasta de gatas de Viana do Castelo a Fátima também é capaz de pegar numa espingarda, ir para um mercado e desatar aos tiros. Quem gasta uma fortuna para mandar fazer uma réplica do próprio corpo em cera e em tamanho natural, também não terá qualquer tipo de problema em abrir os cordões à bolsa para financiar a investigação e desenvolvimento de uma bomba nuclear de capacidade destrutiva superior à de todas as existentes.

Sendo assim, viva Fátima e o seu santuário altaneiro! Enquanto estiverem ocupados a aleijar-se a eles próprios, não estão a aleijar ou a contribuir para aleijar terceiros que não têm nada a ver com os problemas deles e também terão os seus tão ou mais graves.

E depois há os padres. Segue-se um momento de dissertação anti-clerical pouco fundamentada por isso, quem tiver alguma coisa contra é melhor parar de ler por aqui.

Em Fátima, existe uma maior concentração de sacerdotes do que em qualquer outra parte do país, o que constitui um perigo incontornável (excluo as freiras porque são relativamente inofensivas fechadas nos seus conventos ou a dar catequese no meio da floresta tropical e só pensam em evangelizar o próximo e em técnicas masturbatórias originais).

Em qualquer sítio com uma tal concentração de padres católicos, a inquisição pode acontecer a qualquer altura. É a lei da natureza e tão infalível como dizer que se formos enfiando crocodilos no mesmo charco e não os alimentarmos, eventualmente, estes vão começar a devorar-se uns aos outros. Os padres não se devoram uns aos outros. Pelo menos, apenas alguns o fazem e acredito que sejam mais meigos do que os crocodilos mas é dar-lhes tempo e poder e, mais década, menos década, vamos ter autos de fé, tribunais do santo ofício, confissões arrancadas à força de ferros em brasa e práticas de igual colorido.

Mas, mesmo assim, é preferível que ardam uns quantos peregrinos que se atreveram a entrar na basílica expondo os cotovelos de forma pecaminosa ou que digam ?Oh diabo, está calor? numa tarde quente de Agosto do que haver mais paladinos da fé libertos das obrigações relacionadas com a administração do santuário e com a contagem do dinheiro resultante da venda de santinhos e imagens de Cristo a três dimensões para reforçar as fileiras da cruzada contra o preservativo e o aborto porque o vírus da SIDA (e das outras doenças menos mediáticas) também é uma criatura de Deus e porque o Criador gosta de ver o mundo que criou bem povoado por indigentes esfomeados que lhe lembram os bons velhos tempos em que meia dúzia de almas privilegiadas se sentavam em cadeirões confortáveis enquanto o resto esgravatava no lixo por uns pedaços de imundície menos repelentes e mais comestíveis, dizendo que sim a tudo e nunca questionando nada.

Bem haja, Lúcia. Bem haja Francisco e Jacinta lá no jardim de infância do paraíso.

Termino com uma sugestão. Não sei se é original ou não mas também não estou a tentar parecer perspicaz ou engraçadinho. Só digo isto porque acho que é uma boa ideia e gostava muito de a ver concretizada.

Existe no santuário de Fátima, percorrendo a praça principal, uma faixa de pedra polida que ali foi instalada para facilitar o caminho aos peregrinos de joelhos e de bruços e a quem alguém (creio que Manuel João vieira) chamou ?joelhódromo.?

É verdade que Fátima recebe muitos visitantes mas não o é menos que a maior parte são inevitavelmente católicos praticantes ou quase. Para que os ateus, os heréticos, os CNP (católicos não-praticantes) e os crentes de outras religiões comecem a acorrer a Fátima e a beneficiar também eles daquele ar místico que tão bem faz aos humores, é necessário que haja motivos de atracção.

Os devotos têm o santuário, a área comercial, o local das aparições, a casa dos pastorinhos, o museu de cera. Por que não instalar uma ou mais faixas de pedra polida ao lado da que existe e organizarem-se corridas? Até se podiam fazer apostas, o que resultaria em mais receitas para o santuário continuar a sua obra de… de… bom… de fé, suponho.

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