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A ICAR desconfia da música



Faz hoje 3 anos que um cardeal inquisidor condenou a música rock e pop. Assinalando o facto, deixo aqui o texto que, então, publiquei no Diário As Beiras, de Coimbra.

«O Cardeal Joseph Ratzinger, Prefeito da Sagrada Congregação da Fé (ex-Santo Ofício) num ensaio consagrado à liturgia, em 11 de Fevereiro de 2001, criticou severamente a música rock e pop e manifestou reservas em relação à ópera que acusa de ter “corroído o sagrado” de tal modo que – cita – o papa Pio X “tentou afastar a música de ópera da liturgia”, donde se deduz que ela é claramente desajustada à salvação da alma.

Eu já tinha desconfiado que certa música é a “expressão de paixões elementares” e que o “ritmo perturba os espíritos”, estimula os sentidos e conduz à luxúria. Salvou-me de pecar a dureza de ouvido que tinha por defeito e, afinal, era bênção.

Mas nunca uma tão relevante autoridade eclesiástica tinha sido tão clara quanto aos malefícios da música, descontada a que se destina à glorificação do Senhor, à encomendação das almas ou a cerimónias litúrgicas ( outrora com o piedoso sacrifício dos sopranistas).

Espero que o gregoriano, sobretudo se destinado à missa cantada, bem como o Requiem, apesar do valor melódico, possam ressarcir-nos a alma dos danos causados pelo frenesim da valsa, a volúpia do tango ou a euforia de certos concertos profanos.

Só agora, mercê das avisadas palavras de Sua Eminência, me interrogo sobre a acção deletéria do Rigoleto ou da Traviata, dos pensamentos pecaminosos que Aida ou Otelo poderão ter desencadeado em donzelas – para só falar de Verdi – ou dos instintos acordados pela Flauta Encantada de Mozart ou pelo Fidélio de Beethoven! E não me venham com a desculpa de que há diferenças entre a ópera dramática e a cómica, ou entre esta e a bufa.

A música, geralmente personificada na figura de uma mulher coroada de loiros, com uma lira ou outro qualquer instrumento musical na mão, já nos devia alertar para o pecado oculto na arte de combinar harmoniosamente os sons.

Sua Eminência fez bem na denúncia. Espera-se agora que, à semelhança das listas que publicou com os pecados veniais e mortais e respectivas informações complementares para os distinguir, meta ombros à tarefa ciclópica de catalogar as várias músicas e os numerosos instrumentos em função do seu potencial pecaminoso.

Penso que a música sacra é sempre de louvar (desde que dispensados os eunucos), enquanto a música de câmara, a ser executada em reuniões íntimas, é de pôr no índex. Na música instrumental, embora o adjectivo seja suspeito, talvez não haja grande mal, mas quanto à música cifrada não tenho dúvidas de que transporta uma potencial subversão.

Há instrumentos virtuosos, como o sino, o xilofone, as castanholas e quase todos os de percussão, deixando-me algumas dúvidas, mais por causa do nome, o berimbau.

Nos de corda, excepção para o contrabaixo e, eventualmente, o piano (excluídas perigosas execuções a quatro mãos) quase todos têm riscos a evitar. A lira, o banjo, a cítara, o bandolim e o violino produzem sons que conduzem à exacerbação dos sentidos.

Mas perigosos mesmo – a meu ver – são os instrumentos de sopro. Abro uma excepção para os órgãos de tubos que nas catedrais se destinam a glorificar o Altíssimo. Todos os outros me parecem pecaminosos. A flauta, o clarim, o fagote, o pífaro e a ocarina estimulam directamente os lábios e, desde o contacto eventualmente afrodisíaco aos sons facilmente lascivos, tudo se conjuga para amolecer a vigilância e deixar-nos escravizar pelos sentidos. Nem o acordeão, a corneta de pistões ou a gaita de foles me merecem confiança.

Apreciemos o toque das trindades dos sinos dos campanários e glorifiquemos o Senhor no doce chilrear dos passarinhos.

Cuidado com a música e, sobretudo, com os efeitos luminosos associados. Não esqueçamos as palavras sábias do Cardeal Ratzinger.»

Perfil de Autor

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- Autor do livro «Pedras Soltas» e de diversos textos em jornais, revistas, brochuras e catálogos;

- Sócio N.º 1177 da Associação Portuguesa de Escritores

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