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3 de Novembro, 2024 Onofre Varela

Halloween, o dia das Bruxas

As pessoas da minha idade que celebram o dia 1 de Novembro, atribuem à data duas recordações, sendo uma histórica e outra religiosa: a primeira, é o dia do terramoto que destruiu Lisboa no ano de 1755, e a outra é o “dia de todos os santos”, no qual a tradição manda lembrar os mortos da família numa romagem de saudade ao cemitério onde estão sepultados, dando uma ajuda ao negócio das flores que nesse dia triplicam ou quadruplicam o preço, de acordo com a regra económico-capitalista “da oferta e da procura”.

A estes dois eventos soma-se mais um que não era atendido na cultura portuguesa do meu meio social no tempo da minha meninice e primeira juventude, tendo sido importado de países ocidentais anglófonos. Refiro-me ao “Halloween”.

Celebrado na noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, o Halloween é uma festa americana das crianças que escolhem guarda-roupa de fantasia fantasmagórica para, assim trajadas, baterem à porta de vizinhos, amigos e familiares, pedindo guloseimas (gostosuras) e fazendo travessuras se não forem atendidas.

A origem desta tradição, que pede uma decoração das casas usando abóboras-lanterna, o acender de fogueiras e o contar histórias de assombração, pode ser encontrada em rituais celtas ligados ao fim do Verão e às colheitas agrícolas, e remonta ao século XVIII nos territórios pagãos da Irlanda e da Escócia, cujos rituais foram exportados para o território norte-americano pelos colonos imigrantes que se fixaram na terra dos “peles-vermelhas” (que são os históricos, legítimos e verdadeiros donos daquelas paragens geográficas).

Imagem gerada por IA da Stockcake

Mas a história do Halloween tem uma origem mais alongada no tempo se lhe juntarmos as tradições semelhantes dos povos celtas que habitaram a Gália (França) entre os anos 600 aC e 800 dC. A par do folclore, misto de religioso e pagão, há uma história bem mais dramática ligada à data do “Dia das Bruxas”. Isto dito assim até parece comédia ligeira e faz sorrir… mas vivido no seu tempo constituiu intenso drama sentido pelas mulheres perseguidas por superstição, estupidez e vingança torpe.

Numa sociedade dirigida por homens, tradicionalmente as mulheres nunca foram consideradas na exacta medida da igualdade que naturalmente têm perante os homens. Remetidas para uma escala menor, as mulheres ainda hoje (na nossa sociedade ocidental considerada tão “avançada”), auferem vencimento inferior aos homens que executam a mesma tarefa. (“Desigualdade salarial entre homens e mulheres voltou a aumentar”. Notícia de 9 de Julho de 2024, no jornal Público).

Tempos houve em que qualquer mulher que fugisse do padrão comportamental estabelecido pelos machos da sociedade, passava a ser considerada “bruxa” e, como tal, era perseguida, insultada, presa, torturada e morta violentamente, incluindo ser queimada viva.

Para que uma mulher fosse considerada bruxa bastava que ela mostrasse ser mais inteligente do que os homens que lhe eram próximos. Mulheres que exerciam actividades sociais de relevo, como prestar ajuda a parturientes e preparar medicamentos tradicionais, como hoje se encontram nas ervanárias, podiam ser designadas como bruxas por terem conhecimentos importantes para a época… e no extremo seriam perseguidas pelo complexo de inferioridade dos homens que, na convicção de mostrarem a sua “grandeza enquanto machos”, só sublinhavam a sua extrema pequenez perante as mulheres.

A sociedade machista não tinha estereotipado tais características para as mulheres… por isso, qualquer uma que saísse do padrão subserviente e temente ao homem, estava sujeita à perseguição porque, acreditavam eles, ela “teria feito um pacto com o diabo”. A partir daí podia ser humilhada, torturada e morta.

Na verdade o que acontecia tinha uma razão mais evidente e igualmente triste: a sociedade machista via nessas mulheres uma “ameaça à dominação masculina”, cujo sentimento de prepotência remonta à tradição judaico-cristã de o homem dominar a mulher, não permitindo que ela tenha vida própria para além daquilo que ele estipula “ser legal” para ela, tal como ainda hoje se observa na tradição religiosa de países islâmicos extremistas… e também em algumas famílias portuguesas… já agora!

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

31 de Outubro, 2024 Carlos Silva

“Manual de maus costumes”

Imagem: internet


Saramago apelidou hoje a Bíblia… “Manual de maus costumes”, o que provocaria grande indignação a algumas figuras religiosas… recordo apenas alguns adjetivos…

“vergonhoso”, “ofensivo”, “ignorante” …


Ao assistir aos noticiários, pude efetivamente constatar que as suas palavras tiveram grande impacto social e sobretudo um enorme desconforto na cúpula da Igreja Católica.

Curiosamente os adjetivos que me vieram à mente seriam…

lucidez, racionalidade, inteligência…

Replicou… (J.S.)

Vergonhosos” e “ignorantes” são os ditos “representantes de um dito Deus na Terra” não terem consciência de que “Nada disto existiu, está claro; são mitos inventados pelos homens, tal como Deus é uma criação dos homens”, mesmo até que o homem em si tenha realmente vivido!

Sobre o dito livro, que também já tinha tentado ler, mais do que desilusão mental apenas conseguiria confirmar ainda mais a minha delusão pessoal e um tremendo esforço para não adormecer…

É realmente uma enorme demência nascer e crescer com a Bíblia ao lado e não despertar… ou despertar tão tarde para a liberdade e lucidez da restante literatura.

É realmente uma enorme demência ver como sob a sua prolongada escrita “passaram mais de dois mil anos e dezenas de gerações, sempre sob a “dominante de um Deus cruel, invejoso e insuportável”.

Mais abomináveis ainda, são as inúmeras e trágicas guerras que ao longo da história se travaram em nome da dita religião e realmente, “as religiões nunca serviram para aproximar os seres humanos uns dos outros”. Mesmo sem guerra, o que hoje constatamos, é precisamente o contrário!

Mais irracionais ainda, são as inúmeras formas assumidas pelo dito Ser cuja única aparência realmente só mesmo no domínio das ideias e quase sempre assimilando formas humanas… um ser “do outro mundo”, capaz de “não fazer absolutamente nada, de criar todo um Universo, não se sabe bem porquê, nem para quê, em apenas seis dias, descansando depois ao sétimo… e depois, até hoje, decidiu nada mais fazer!…”

Mais impressionante ainda, é ainda hoje ser “a grande resposta para a salvação de toda a Humanidade”.


AGORA ATEU, 2009-10-19

28 de Outubro, 2024 João Nascimento

Apenas Humano

Imagem criada com o DALLE-4

Escrevi este poema há décadas, quando finalmente percebi, com genuína satisfação, que eu era mais um dos que simplesmente não conseguem acreditar. Não só ansiava por viver sem ilusões, como sabia que devia fazê-lo – não podia ser de outra maneira. Nunca olhei para trás.


Sou humano, susceptível a doenças,

a enfermidades,

e ao inevitável fim.

Estou à mercê,

e à clemência,

do que quer que me infeste.

Estou cheio de falhas,

mentiras, e enganos.

Estou preso,

numa luta incessante,

comigo mesmo,

contigo,

e com o mundo à minha volta.

Os meus defeitos e imperfeições

perseguem-me,

e sempre o farão.

Sou a causa,

a raíz de toda a minha miséria.

Sou a razão pela qual podes magoar-me.

Sou o defeito,

o erro,

que vivo dia após dia.

Sou humano,

não devias confiar em mim.

Sou mortal,

não tenhas fé em mim.

Mas, tu também és humano,

com os teus defeitos,

com as tuas imperfeições,

que eventualmente me aceitarão.

Sou humano,

não há nada de extraordinário em mim.

Há 8 mil milhões de outros,

exactamente como eu.

Sou humano,

é o pior,

e o melhor em mim.

Sou culpado,

serei sempre.

Inventei,

desenhei,

e imaginei,

o Deus que me criou.

Sou apenas humano,

mas espero sempre mais de mim.

Tão frágil,

tão delicado,

e vulnerável,

magoado pelo simples existir.

Sou apenas humano,

não é fácil.

Sou humano, 

perdoa-me.

27 de Outubro, 2024 Carlos Silva

Diz-me mulher

Imagem: Internet


Diz-me mulher

Filha
Mãe
Avó
Esposa
Amiga
Companheira

Diz-me mulher

Como podes permitir que
Um homem
Te roube o direito à vida
Te roube o direito à liberdade
Te roube a autonomia de pensar
Te torture e imponha maus tratos
Te viole física e moralmente até ao íntimo do ser
Te imponha o direito de escolher
Te negue o direito à informação e educação
Te impeça de votar e participar neste progresso
Te humilhe simplesmente por seres mulher

Diz-me mulher

Como podes permitir que
Um livro
Exclusivamente escrito por homens e para homens
Exclusivamente baseado no domínio dos homens sobre as mulheres
Absolutamente machista absurdo e obsoleto
Te peça que sejas submissa
Te faça objeto propriedade e mercadoria
Te cubra o corpo e a mente
Te estupre e atire pedras até à morte
Te cegue e crucifique por perderes a virgindade
Te queime pelo adúltero delito de amares alguém
Um livro escrito com sangue suor e lágrimas
Que de ti faz demónio do bem e anjo do mal
Que te rouba a vida e tudo o que é natural

Diz-me mulher

Como te pudeste deixar seduzir
Por tão encantadora serpente
Como pudeste ter ingerido tão pecaminoso fruto
De tal proibida árvore
Como pudeste ter nascido
De tal dita virgem maria
Sem amar verdadeiramente

Diz-me mulher

Tu que dás e concedes esta vida
Tu que dás alento e alimento
Tu que dás este canto e encanto
Tu que dás esta inspiração e admiração
Tu que dás este sentimento e sensualidade
Tu que tudo dás na realidade
Peço que neste preciso momento
Soltes o cabelo ao vento
Soltes a voz com todo o alento
Quero ouvir o teu grito até ao mundo dar volta
Quero ouvir o teu grito de volta e de revolta

BASTA

Não
Não fiques aí parada
Solta e desvenda a verdadeira beleza do teu rosto
Solta e descobre o verdadeiro encanto do teu sorriso
Solta e manifesta todas as razões do teu coração
Tu és legitimamente a única dona do teu corpo
Tu és autenticamente a única dona do teu ser

Desperta mulher

Desperta o corpo da tua admirável mente
E ama verdadeiramente
Ama plenamente a liberdade
Ama perdidamente aquele homem
Que simplesmente te quer

MULHER


AGORA ATEU, 2019-05-26

25 de Outubro, 2024 Eva Monteiro

Um Gesto de Altruísmo do Prof. Ricardo Oliveira da Silva

A AAP – Associação Ateísta Portuguesa teve recentemente o prazer de se fazer representar numa conversa online sobre o Ateísmo em Portugal e no Brasil. Esta conversa decorreu no dia 9 de Outubro no Canal de Youtube Ativistas Ateus do Brasil, com o objetivo de iniciar uma ponte entre as comunidades ateístas dos dois países.

Prof. Ricardo Oliveira da Silva

Desta conversa decorreu o contacto com o Professor Ricardo Oliveira da Silva que possui uma Graduação em História pela Universidade Federal de Santa Maria (2005) e Mestrado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008). É Doutorado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013). Tem experiência na área de História, com ênfase em Historia das Ideias, Historiografia e teoria da História, História do Brasil republicano e História do Ateísmo. Atualmente é líder do Grupo de Pesquisa Ateísmos, Descrenças Religiosas e Secularismo: história, tendências e comportamentos, e faz parte do Grupo de Pesquisa História Intelectual, Produção de Presença e Construção de Sentido e do grupo História Intelectual e História dos Conceitos: conexões teórico-metodológicas. Esses grupos estão registrados no CNPq. É também membro do fórum acadêmico International Society for Historians of Atheism, Secularism, and Humanism (fonte).

Como autor prolífico na área do Ateismo, o Professor Ricardo Oliveira da Silva prontificou-se a disponibilizar aos nossos leitores algum do seu material sobre o tema, que aqui se reproduz.

A AAP agradece este gesto de incrível altruísmo que me muito ajudará a nossa comunidade a melhor compreender o ateísmo, em particular no Brasil.

21 de Outubro, 2024 Eva Monteiro and João Nascimento

Associação Ateísta Portuguesa condena o recente comunicado da Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da IVG

Foto de Aiden Frazier na Unsplash

A Associação Ateísta Portuguesa (AAP) considera o recente comunicado emitido pela Associação dos Médicos Católicos Portugueses (AMCP) acerca da atual proposta do PS e BE para alterar a lei da interrupção voluntária da gravidez (IVG) um ataque à laicidade em Portugal. Todos os médicos têm direito à liberdade de consciência, mas a AMCP é uma entidade de cariz religioso que está a usar a influência dos seus membros para fazer avançar uma agenda católica. A existência de uma Associação de Médicos Católicos Portugueses é, por si só, claro sinal de falta de laicidade na sociedade em que vivemos. Um médico deve reger-se pelos ditames da ciência ao invés da crença cuja natureza é dogmática e limitante. Da mesma forma, uma Associação deve emitir comunicados baseados em evidências e rigor, especialmente quando coloca em causa a informação que critica.

A AAP representa ateus e agnósticos a favor e contra a atual lei, de todos os quadrantes políticos, e respeita todos os seus associados e o direito de todos os cidadãos de se posicionarem quanto a este assunto, relembrando que a IVG é um direito adquirido das mulheres portuguesas que não pode ser violado.

Antes de mais, importa lembrar que, na ditadura, o planeamento familiar e a contraceção eram absolutamente proibidos em nome da ideologia católica e conservadora do regime. A pílula apenas chegou ao país em 1962 e vinha com o rótulo de “produto do demónio” – este método contracetivo era legalmente considerado produto abortivo. Até 1984 a prática do aborto era completamente proibida em Portugal. A Lei de 6/84 veio permitir a IVG nos casos de perigo de vida da mulher, perigo de lesão grave e duradoura para a saúde física e psíquica da mulher, em caso de malformação do feto, ou quando a gravidez resultasse de uma “violação”. A Lei n.º 90/97, de 30 de julho, alargou o prazo em situações de malformação fetal e do que até então era chamado de “violação”. E foi este quadro legal que persistiu até 2007.

Hoje em dia, apontar a degradação dos serviços obstétricos como justificação para negligenciar o acompanhamento das mulheres que escolhem a IVG é uma comparação análoga a dizer que por termos urgências cheias devemos deixar os doentes oncológicos de parte. Ou seja, a AMCP comete o pecado de que acusa estes partidos. Trata-se de dois serviços diferentes, com finalidades diferentes e com a mesma validade e peso, não devendo nenhum deles ser priorizado. Em boa verdade, e contrariamente ao afirmado neste comunicado da AMCP, nenhum dos partidos propôs ignorar um em prol do outro.

A AMCP indica os prazos em que se realiza a IVG ignorando que muitas mulheres se vêm impedidas pelos hospitais das suas zonas de residência a realizarem o procedimento. Muitas desistem porque são perseguidas, acusadas por médicos religiosos de cometerem pecados, culpabilizadas pela gravidez indesejada e ignoradas nos seus pedidos de ajuda. Muitas vêm-se obrigadas a disponibilizar verbas avultadas para deslocações ou para fazerem a intervenção em clínicas privadas ou noutros países. Esta realidade é avançada por quem tem contacto direto com estas pessoas, a Associação Escolha, com quem a AAP travou conhecimento para se inteirar da realidade. Estas mulheres, e isto não convém à AMCP referir, não entram para a “média das 7 semanas” porque não lhes chega a ser permitido fazer a IVG devido ao prazo reduzido em relação aos melhores exemplos internacionais. Este é um claro uso falacioso da estatística.

Também ao contrário do que defende a AMCP, é necessário olharmos para países cujos modelos de sistema de saúde apresentam melhorias em relação ao nosso de forma a imitarmos modelos que comprovadamente resultam. Que a AMCP diga que olhar para o estrangeiro não é prática que nos deve conduzir é falacioso. Esta é uma organização que assume como seu objetivo a “intervenção social (..) tendo sempre como fonte respetiva a Doutrina da Igreja Católica”, instituição, como se sabe, liderada por um país estrangeiro, na pessoa do seu chefe de Estado, o Papa. Aliás, este chefe de Estado estrangeiro é a figura mais citada na página da AMCP na Internet. Parece-nos, portanto, que só neste quesito é que os médicos católicos de Portugal desejam que estejamos orgulhosamente sós: caso fossem tratamentos oncológicos, devíamos fechar os olhos às práticas mais avançadas praticadas noutros países?

Quanto à questão da legitimidade que a AMCP parece não reconhecer aos partidos políticos portugueses, mas sim a um chefe de Estado estrangeiro, esta parece-nos uma clara demonstração da verdadeira agenda da AMCP: infundir na sociedade o receio de afrontar as hierarquias e as forças católicas e conservadoras dominantes, às quais até os próprios partidos políticos, não poucas vezes, demonstram reverência. Cabe-nos referir que são de facto, os partidos com assento na Assembleia da República que devem exercer o Poder Legislativo. Aliás, isto mesmo é defendido logo de seguida, no seu comunicado, quando é afirmado que o prazo das 10, 12 ou 14 semanas é apenas uma questão política.

Também quanto à eliminação dos dias de reflexão obrigatórios a AMCP faz afirmações sem as fundamentar devidamente. Tanto quanto a AAP tem conhecimento, não existe nenhum prazo de reflexão obrigatória para nenhuma intervenção exclusiva ao corpo masculino, por exemplo, no que diz respeito à vasectomia.  A AMCP faz afirmações sem base documental suficiente ao alegar que “a prática irrefletida e apressada de um aborto pode conduzir a traumas psicológicos posteriores com maior frequência”. Esta é uma opinião infundada, proveniente de uma associação que não apresenta dados científicos, mas apenas crenças religiosas como argumento. Dado que os dias obrigatórios de reflexão existem desde que esta lei está em vigor, não existem sequer dados que apoiem esta afirmação, senão o desejo de alguns religiosos de verem a mulher que escolhe a IVG como incapaz de tomar decisões corretas para si, só porque a decisão que tomou é considerada incorreta para um religioso de determinada confissão.

Cada um dos médicos associados da AMCP tem o direito de acreditar nos preceitos religiosos que indicam que a vida é sagrada a partir da conceção. A discussão sobre a existência desse Deus cruel que tantas e tantas vezes interromperia, caso existisse, a gravidez desejada, pertence ao foro do debate religioso / não religioso. Da mesma forma, a discussão metafísica sobre se existe uma alma numa célula ou num aglomerado de células pertence ao mesmo foro, nunca à medicina. Da mesma forma que a AMCP defende a inviolabilidade da objeção de consciência que não deve ser fiscalizada ou violada, também se deve opor a que a mulher que escolhe a IVG seja fiscalizada ou veja a sua decisão questionada por prazos obrigatórios de reflexão paternalistas e degradantes.

A AMCP age de forma contraditória. Exige o cumprimento da vontade do povo português, expressa no referendo de 2007, mas opõe-se a essa decisão sempre que não favorece as suas posições ideológicas. É bom lembrar que a mesma AMCP, em 2007, jurava que a IVG ia resultar num aumento do número de abortos. O facto é que não resultou. O número de abortos diminuiu cerca de 15% desde essa altura e Portugal é hoje um dos países da Europa com mais baixas taxas de aborto por cada nascimento. Isto em contraste com o cenário pretendido pela AMCP:  uma lei que colocava mulheres na prisão ou as matava através das complicações do aborto clandestino.  É preciso notar que a AAP não está com este comunicado a defender que seja retirada a opção da objeção de consciência dos médicos. Mas defende que os hospitais devem garantir que as suas utentes tenham acesso ao serviço médico da IVG garantindo que existem médicos não objetores de consciência em todos os hospitais públicos. Só assim se garantirá, conforme também defende a AMCP, que seja cumprida a vontade dos portugueses e os direitos das pessoas grávidas portuguesas.

Devemos também apontar, em forma de conclusão que a AMCP refere várias vezes a palavra “natural”: “morte natural” e “desfecho natural”. Há muito pouco de natural na medicina, cujo objetivo é muitas vezes contrariar a natureza, tratando doenças que de outra forma finalizariam de forma natural a vida humana. Parece-nos incompatível a posição religiosa e o exercício consciente, laico e honesto de uma profissão baseada na ciência. Contudo, se um religioso, católico ou outro, escolhe ser médico, deve fazê-lo de forma informada e consciente que a sua crença é limitadora e dogmática e a medicina é sinónimo de progresso científico e civilizacional.

Autoria: Eva Monteiro, Gabriel Coelho, João Nascimento

20 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Humanidade e lei religiosa

Cada país rege-se pelas leis aprovadas no seu parlamento, formado pelo voto popular, ou impostas por um ditador. Retirando a segunda hipótese que as pessoas bem formadas rejeitam, é comum (por respeito à liberdade) não nos imiscuirmos na política interna dos outros países, tal como não ditamos leis na casa dos nossos vizinhos. Mas as leis não caem do céu como as folhas outonais caem das árvores… há uma “História das Leis” ligada ao desenvolvimento da Civilização. 

No Egipto Antigo, há 5.000 anos, já havia uma lei escrita para governar o país, baseada na tradição e na igualdade social, e há 3.800 anos o Código Hamurabi regia a lei na Babilónia.

O Antigo Testamento tem mais de 3.300 anos e assume a forma de imperativos morais (alguns deles duvidosos hoje, mas todos aceites naquele tempo, naquele lugar e por aquela gente) como recomendações para uma boa sociedade.

Há cerca de 2.900 anos, Atenas foi a primeira sociedade a basear-se na ampla inclusão dos seus cidadãos, mas excluindo mulheres e escravos. A lei romana foi influenciada pela filosofia grega e impôs-se na Europa Medieval após a queda do Império Romano, tendo sido retocada com preceitos religiosos. Depois surgiu a necessidade de redigir leis internacionais para regular o comércio em toda a Europa e no mundo.

Toda esta retórica me serviu para dizer que embora cada país tenha a autoridade legal e inalienável de ditar leis aos seus povos, é igualmente verdade que a liberdade de cada pessoa em qualquer parte do mundo é, também, inalienável à luz do Humanismo e do conceito da igualdade e do respeito pelo próximo. Nesse sentido há leis de governos que, pela sua desumanidade, merecem o repúdio de todos nós.

Podemos dizer que cada Povo tem a sua sensibilidade, e que esta será a base das leis que o rege. Porém, o Humanismo não está presente nas leis de alguns países… e o Ser Humano é igual em qualquer parte do mundo. Cada um de nós tem o mesmo sistema nervoso que permite sentir alegria e tristeza na mesma experiência de vida, independentemente do ponto cardeal em que se nasça ou viva, e não precisamos de estudar Direito nem tradições sociais, para sentirmos o que é justo e o que é injusto.

As tradições sociais e religiosas de um país ou de uma sociedade não legalizam a maldade. Numa aldeia transmontana era tradição prender um gato no cimo de um poste, ao qual se ateava fogo!… Numa outra localidade espanhola era tradição lançar uma cabra viva das ameias de um castelo para um penhasco!… Se eram “tradições culturais” comunitárias… eram, também, acções desumanas e cruéis que a lei de um país moderno não pode outorgar; por isso foram anuladas. As leis não podem ser desligadas do respeito devido a qualquer ser humano ou animal, seja aqui ou nos antípodas (por cá, espero que as touradas desapareçam brevemente).

No Irão pratica-se uma lei que não é modelo de respeito em lugar nenhum do mundo… começando por não o ser no próprio Irão. Notícia recente (JN, 15/10/2024) dá conta da publicação de nova lei sobre o uso do “hijab” (lenço de cabeça) que castiga com cinco anos de cadeia as mulheres que não o usem. Num comunicado da organização “Human Rights Watch” (HRW) – “Observatório dos Direitos Humanos”, uma organização não governamental – faz-se saber que a nova lei, intitulada “Proteção da família através da promoção da cultura do hijab e da castidade”, foi aprovada pelo Conselho dos Guardiões, o órgão religioso que faz a aprovação final das leis do país.

Tal lei afirma medidas que já vigoravam, e adiciona sanções mais severas, com multas e penas de prisão mais longas, bem como restrições ao emprego e às oportunidades de educação para os infractores.

Jina Mahsa Amini.
ZUMA Press, Inc./Alamy Live News/Alamy

A morte da jovem Mahsa Amini às mãos da polícia em Setembro de 2022, por não usar o hijab conforme a lei manda, desencadeou uma onda de protestos durante meses, com motins nas ruas e a polícia a matar e a prender manifestantes. O governo, em vez de responder ao movimento “Mulher, Vida, Liberdade” com as reformas fundamentais reivindicadas, decidiu “silenciar as mulheres com leis de vestuário ainda mais repressivas, que só podem gerar uma resistência e um desafio feroz entre as mulheres dentro e fora do Irão”, disse a responsável da HRW no Irão.

A nova lei castiga com penas de até cinco anos de prisão a falta de uso do véu e reforça o controle sobre a vida das mulheres e das instituições que não aplicam estas medidas.

Pelo que se vê, o Irão ainda não saiu da medievalidade do pensamento… no pior que a Idade Média continha!

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)

15 de Outubro, 2024 Ernesto Martins

O Cristianismo não é a resposta; o Cristianismo é o problema – Parte 3/3

Nesta terceira e última parte do artigo reforço a tese de que o Cristianismo é mais um problema do que uma solução, usando, desta vez, dados que mostram o poder que esta religião tem de dividir os povos. Um olhar objectivo sobre o mundo actual, no que diz respeito em particular às condições de vida das populações nos países onde o Cristianismo é mais e menos dominante, permite também concluir que a religião não traz qualquer benefício para a humanidade.

Religião divide mais do que une
O poder da religião – especialmente os monoteísmos – de dividir os povos em lugar de os unir, não é uma novidade, estando plasmado em vários episódios da história. O que não deve surpreender, dado que é ao próprio Jesus Cristo que se atribuem as afirmações “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” [Mt 10:34] e, mais à frente, “Quem não é comigo, é contra mim…” [Mt 12:30]. O facto de muitos dos conflitos registados na história terem grupos beligerantes definidos em função de filiações religiosas é revelador da capacidade das religiões de dividir. Assim, católicos juntam-se apenas com católicos, protestantes com protestantes, muçulmanos com muçulmanos e hindus com hindus. Os conflitos nem sempre são explicitamente religiosos, mas a intolerância que divide diferentes comunidades religiosas é muitas vezes um produto das respectivas identidades religiosas.
O número astronómico de religiões existentes actualmente (só o Cristianismo conta com milhares de variantes [1]) é a prova evidente da capacidade da religião de dividir. A religião cristã tem um passado de conflitos sangrentos motivados em grande parte por diferenças teológicas que hoje parecem ridículas [2]. Só as doutrinas em torno da Trindade motivaram algumas das mais violentas perseguições a hereges nos primeiros séculos do Cristianismo. Hoje, diferenças doutrinais sobre a interpretação da Bíblia, sobre os sacramentos, sobre o papel dos clérigos e sobre as atitudes perante as mais variadas questões sociais, têm a capacidade de dividir os cristãos. Os católicos consideram que os protestantes terão a sua salvação comprometida por não respeitarem a autoridade do Papa. Os protestantes, por seu turno, acham que os católicos cometem um erro trágico ao adorar imagens e que a ideia da transubstanciação na eucaristia é uma grave blasfémia. Os cristãos ortodoxos consideram que os católicos estão errados, nomeadamente por pensarem que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e não apenas do Pai e por ingerirem óstias sem fermento quando o correcto era que tivessem sido feitas com fermento. Isto só para nos mantermos dentro do Cristianismo. A religião Mormon (ou a Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, que não subscreve a doutrina da Trindade e considera três deuses separados), nos menos de 200 anos que conta de vida já se dividiu em diferentes seitas por causa de desentendimentos em torno da poligamia.
Não há dúvida de que as religiões dividem. Mas, vendo bem, estes conflitos e divisões não são de admirar numa actividade em que os credos centrais são extraídos ou inspirados em textos ambíguos, tradições difusas e revelações absurdas. O facto de pouco ser suportado em dados sólidos e argumentos racionais, e muito ser baseado na fé, torna os desentendimentos insanáveis. Sem uma base objectiva de evidências, o resultado é a divisão dos crentes em grupos e congregações separadas.
Hoje parecem haver também evidências do poder divisivo da religião ao nível das mentalidades. Segundo uma sondagem da Pew Research [3], a identidade cristã na Europa Ocidental está associada a níveis mais elevados de sentimento negativo em relação aos imigrantes e às minorias religiosas. Inquiridos que se autodenominam cristãos – quer frequentem ou não a igreja – têm maior probabilidade de expressar opiniões negativas sobre os imigrantes, muçulmanos ou judeus do que as pessoas sem filiação religiosa. Um outro estudo de 2022 [4] confirma que na Europa os cristãos tendem a expressar níveis mais elevados de sentimentos nacionalistas do que os nones. Pessoas sem filiação religiosa têm menor probabilidade de afirmar que a ancestralidade é condição necessária para a identidade nacional do que os que se autodenominam cristãos. A religião divide, de facto.

Religião não tem impacto positivo na sociedade
Que a religião é, na generalidade, benéfica para uma sociedade, é outras das ideias profundamente enraizadas na mente da população crente. As sociedades precisam da religião para prosperar, dizem eles. No entanto esta é uma crença mais baseada em wishful thinking do que num olhar objectivo sobre o mundo real. Se porventura se constatasse que as sociedades onde a vida é melhor são as mais religiosas, então poderíamos postular que a religiosidade é um factor determinante. O mesmo diríamos se as sociedades menos religiosas fossem bastiões de pobreza e crime. Mas o que se observa no mundo é precisamente o contrário.
Os países com a maior proporção de não crentes constituem as sociedades, em média, mais desenvolvidas, mais livres, mais saudáveis e mais pacíficas. Por outro lado as nações mais religiosas, as que mais orações dirigem aos deuses, são as mais violentas e opressivas e onde a qualidade de vida é pior em todos os aspectos. Os Relatórios do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (UNDP) calculam anualmente o chamado Índice de Desenvolvimento Humano (Human Development Index – HDI [5]), que quantifica o desempenho médio de uma sociedade com base em métricas como a esperança média de vida à nascença, a escolaridade, a literacia e o rendimento per-capita. O relatório de 2021 coloca no top 10 do ranking HDI (de um total de 191 nacões) países como a Suiça, Noruega, Islândia, Austrália, Dinamarca e Holanda, todos países onde os números de não crentes são dos maiores do mundo. Os 50 últimos países do ranking não apresentam números estatisticamente significativos de descrentes.
Um relatório da organização Save the Children, o State of the World’s Mothers Reports [6] publica regularmente o “Índice das Mães” (Mothers’ Index), que reúne os dados mais recentes sobre a saúde das mulheres, a saúde das crianças, o nível de escolaridade, o bem-estar económico e a participação política feminina, para classificar 179 países e mostrar onde as mães e as crianças se saem melhor e onde enfrentam as maiores dificuldades. No topo da lista dos melhores países para se ser mãe aparecem a Noruega, Finlândia, Islândia, Dinamarca e Suécia. No fim da lista aparecem Nigéria, Guiné-Bissau, Chad, Congo e Somália.
Segundo outras fontes [7], os países com a maior taxa de homicídios, onde a incidência do HIV é maior e onde as mulheres são mais oprimidas, são todos países muito religiosos. Finalmente também existem métricas para a felicidade e, mais uma vez, verifica-se que, em média, as sociedades mais felizes não são de todo as mais religiosas [8]. Os países do costume aparecem na lista daqueles em que os seus cidadãos são os mais felizes. Se considerarmos apenas os países mais desenvolvidos, os Estados Unidos sobressaem como o mais religioso mas também o país mais disfuncional, exibindo as maiores taxas de criminalidade, de doenças sexualmente transmissíveis, de gravidez e de abortos na adolescência. Foi a esta conclusão que chegou um estudo do investigador Gregory S. Paul [9].
Em conclusão, a correlação negativa existente entre a qualidade global de uma sociedade e a crença religiosa parece negar categoricamente a ideia de que as sociedades precisam de ser religiosas. Segundo a cosmovisão teísta, em que um deus omnisciente, omnipotente e sumamente bom responde às preces dos seus fieis, seria de esperar que a influência desse deus se fizesse sentir para o bem na vida desses fieis, e portanto nos locais onde eles vivem. Mas, objectivamente, não só essa previsão não se verifica como acontece precisamente o contrário.
É evidente que os problemas que afligem os países sub-desenvolvidos estão fortemente relacionados com os respectivos trajectos histórico-sociais, dependem de múltiplos factores e conjunturas complexas, e com certeza não caíram do céu pelo simples facto desses países serem religiosos. É provável que a religião seja endémica nestas sociedades pelo facto das populações pobres encontrarem nas crenças religiosas e nos rituais a consolação, o conforto e a esperança que lhes permite enfrentar estoicamente as dificuldades impostas pela insegurança das guerras, a sub-nutrição e as doenças. Portanto, não se pretende atribuir à religião a culpa de todos os males. No entanto o que estes cenários demonstram de forma conclusiva é que a religiosidade não é um ingrediente necessário na criação de sociedades onde as pessoas possam ser felizes e prosperar.
— EVM

Notas:
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[1] https://www.gordonconwell.edu/blog/christianity-is-fragmented-why/
[2] Algumas das mais sangrentas acções militares exclusivamente entre cristãos: Cruzada Albigense (1208-49): 1000000 mortes; Guerras francesas entre católicos e protestantes (1562-98): 3000000 mortes; Guerra dos trinta anos entre católicos e protestantes (1618-48): 7500000 mortes. Ver: Matthew White, “The 100 Deadliest Episodes in Human History”, 2013.
[3] Pew Research Center May 29, 2018, https://www.pewresearch.org/religion/2018/05/29/being-christian-in-western-europe/. Segundo esta sondagem os países com o maior número de nones são os Países Baixos (48%), Noruega (43%), Suécia (42%), Bélgica (38%) e Dinamarca (30%).
[4] Key Findings From the Global Religious Futures Project, December 21, 2022, https://www.pewresearch.org/religion/2022/12/21/key-findings-from-the-global-religious-futures-project/
[5] https://hdr.undp.org/data-center/human-development-index#/indicies/HDI
[6] https://fsnnetwork.org/resource/state-worlds-mothers
[7] https://worldpopulationreview.com/
[8] https://www.worldlifeexpectancy.com/world-happiness-map
[9] Gregory Paul, “The Chronic Dependence of Popular Religiosity upon Dysfunctional Psychosociological Conditions”, Evolutionary Psychology, vol.7 nº3, pgs 398-442, 2009.

14 de Outubro, 2024 Carlos Silva

Apostasia

Imagem: Internet


Batizaram-me quando apenas tinha três meses de vida!

Mergulharam-me em “água benta” com a promessa que tal me purificaria e abriria o caminho para a eternidade.

Mergulharam-me em “água benta” com a convicção que tal me uniria eternamente ao seu deus (“Pai, Filho e Espírito Santo”) que por mim morrera e ressuscitara -tornando-me, assim, para sempre, seu filho e fiel servidor.

Marcaram-me como “cristão” quando ainda nem sequer sabia o que era uma ilusão, como quem marca um cordeiro recém-nascido do seu rebanho.

Marcaram-me num ritual eclesial mascarado de festa de família e amigos onde selaram uma espécie de contrato que, supostamente, manifestaria a vontade dos meus pais em me doutrinar de acordo com os valores e princípios morais da religião católica.

Assinaram uma espécie de contrato que definia o presente e decidia o meu futuro… que me impunha não pensar, não sentir… e sobretudo não questionar ou renegar.

Como é que uma mente minimamente decente pode celebrar ou validar um contrato entre uma suposta divindade e uma inocente criança?

Ninguém pode decidir o futuro de uma inocente criança sem conhecimento de causa… e muito menos com um outorgante fictício!

Diz a Igreja Católica que “Deus dá-nos o Seu Espírito e adota-nos como seus filhos, antes mesmo de O conhecermos” … “Deus ama as crianças ainda antes de estas O conhecerem” … e não é por acaso que o manifesta em Mt19, 14: “deixai vir a Mim as criancinhas e não as impeçam…”

Como é que um ser fictício, fruto da imaginação humana, pode adotar uma criança, ainda antes de esta ter consciência da sua… inexistência?

Mais do que um abuso de confiança, este “contrato divino” a que chamam “Batismo”, é uma ofensa à inteligência de qualquer mente minimamente racional.

Mais um dos muitos dogmas absurdos da Igreja Católica que importa desmistificar… e anular.

Assim, existindo tal contrato que me define como “cristão”, que para efeitos estatísticos do meu país me coloca como membro da Igreja Católica Apostólica Romana…

É de forma consciente e de livre vontade que o venho anular através do ato de Apostasia.


AGORA ATEU, 2024-02-10


14 de Outubro, 2024 Onofre Varela

Sobre a Espiritualidade

Quando se fala em Espiritualidade é comum ouvirmos referi-la sob o ponto de vista religioso, aliando-a a uma fé, de acordo com a definição de dicionário que aponta, como sinónimo, a palavra “misticismo” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 8ª Edição, 1998). No mesmo dicionário, misticismo é “atitude caracterizada pela crença na possibilidade de comunicação directa com o divino ou a divindade”.

Se seguirmos estas definições encontramo-nos no terreno da crença religiosa que é sementeira de ideias transcendentes relacionadas com as figuras deificas inexistentes no mundo físico que nos fez e acolhe, indo para lá de tudo quanto é natural, na procura de uma outra origem que transgride a Natureza, vogando no espaço imaginativo da crença.

O Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (Círculo de Leitores, 2003) navega nas mesmas águas definindo a espiritualidade como “característica ou qualidade do que tem ou revela intensa actividade religiosa ou mística”… quer dizer que seguindo por esta via, pretensamente explicativa, não aprendemos nada que seja real e concreto, e nos distancie do termo enquanto “filosofia de fé”.

Foto de Marc-Olivier Jodoin na Unsplash

O mesmo Houaiss, para a palavra “espírito” aponta, no mínimo, dezoito definições… até o bom vinho o possui! Também lá está a palavra “alma” como sinónimo de “espírito”… mas o termo “alma” tem a sorte de ser bafejado por quatro dezenas de definições, começando pelo “princípio da vida no homem ou nos animais”, passando por pensamento, afectividade, sensibilidade e “conjunto das actividades vitais”. Quer dizer: vida.

Alma é vida. É movimento. A “anima” que possui o significado de “fôlego vital”, respiração ou “sopro da vida”, de onde provém, etimologicamente, a palavra “animal” (ser que tem alma, animação) diferenciando-o dos vegetais, os quais, embora tenham vida, não se auto-locomovem (por não terem animação autónoma) como fazem os animais.

Agora podemos ir mais além nos conceitos que as palavras podem representar, e definirmos “espírito” como “modo de ser”. Há quem, pelas suas palavras, aspecto ou presença, transmita “paz de espírito”; e há quem possua um “espírito irrequieto ou belicoso”. Uma pessoa bondosa e pacífica é definida como sendo “uma paz de alma”.

A espiritualidade é, portanto, característica de seres animados e detentores de um cérebro capaz de um entendimento universalista de si, dos outros e do meio em que se movimentam, para se poderem manifestar sensitivamente: portanto, só o Ser Humano a possui.

Embora quase sempre ligada à esfera do “religioso deifico e transcendental”, a espiritualidade existe em todos nós, quer sejamos crentes, descrentes, assim-assim, nem por isso… ou ateus.

André Comte-Sponville, filósofo francês (1952) fala de “uma espiritualidade sem Deus”, no sentido de termos, todos nós, uma abertura (de espírito, de entendimento) para o ilimitado, no conhecimento de sermos seres relativos e abertos para o “absoluto”.

Nesse sentido, a espiritualidade do ateu caminha ao lado da espiritualidade do religioso, mas dispensando a figura do deus que alimenta a espiritualidade do companheiro da caminhada que ambos encetamos pela estrada da vida.

O alimento do ateu (para além do pantagruélico, que é sempre bem-vindo numa mesa rodeada de familiares e amigos) também passa pela sua espiritualidade, pelo seu lado sensível perante a beleza de uma pintura, de uma estátua, de uma paisagem, de um pôr do Sol, ou de um poema (assisti a um cântico gregoriano na catedral de Santiago de Compostela… e adorei! Nunca experimentei maior prazer auditivo).

A espiritualidade é estudada cientificamente pela “Neuroteologia” (também designada por “Bioteologia”), “Neurociência da Religião” e “Neurociência espiritual”, que investigam crenças, experiências e práticas religiosas ou espirituais. Há uma pesquisa na tentativa de se explicar a base neurológica de experiências religiosas, incluindo a dimensão da espiritualidade e as alterações dos estados de consciência.

O sentido religioso não passa de uma actividade do nosso cérebro. Qualquer ligação que queiramos fazer das coisas e de nós, a um deus, não passa de uma manifestação dos nossos sentimentos mais básicos que nos fazem crer num deus real (para além da guarida que os religiosos dão ao conceito dentro das suas cabeças)… mas que, naturalmente, não desagua em bom mar… até porque o leito onde deveria correr o rio da fé onde navegaria Deus… sempre esteve seco!…

(Por preguiça de aprender novas regras, o autor não obedece ao último Acordo Ortográfico. Basta-lhe o Português que lhe foi ensinado na Escola Primária por professores altamente qualificados)