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Dinossauros cristãos

Nota: Texto da autoria de Daniel Ramalho.

Em 1890, na sua obra Princípios da Psicologia, o psicólogo Americano William James escreveu: ‘A melhor maneira de entender a natureza humana é estudá-la nas suas expressões mais extremas.’ Doze anos mais tarde, na compilação de 20 palestras dadas na Universidade de Edimburgo intitulada Variedades da Experiência Religiosa, viria a reafirmar esse princípio fundamental do seu pensamento relativamente à nossa compreensão da espiritualidade nas suas várias formas. Nessa obra, William James explorou as expressões mais extremas da experiência religiosa (incluindo o êxtase, a santidade, a conversão, e a culpa perante Deus) como forma de compreender o que é a vivência normal do comum religioso.

Sendo um princípio manifestamente tão útil e fértil, dei por mim a aplicá-lo espontaneamente no meu estudo do extremo representado pela tribo Pirahã, que existe em quase total reclusão no Amazonas. É uma tribo actualmente com pouco menos de 500 indivíduos e que teria permanecido em total obscuridade não fosse o facto de a sua língua ser a única restante no mundo da família a que pertence, e de causar em igual medida fascínio e dores de cabeça a filósofos e linguistas desde os anos 70, período em começou a ser estudada. Alguns aspectos da sua língua são simplesmente alienígenas para nós, como por exemplo o facto de terem uma consoante apenas usada por homens, e não terem termos fixos para números nem cores, mas apenas expressões aproximadas para ambos (i.e. não têm “um” e “dois,” mas “pouco” e muito,” e não têm terminologia cromática abstracta para além de “claro” e “escuro,” ou apontar para uma cor presente diante dos interlocutores).

Outras das suas peculiariedades são-nos sintacticamente incompreensíveis, como não terem recursividade (i.e. há um limite para o tamanho das frases que podem ser gramaticalmente formadas), nem terem cláusulas subordinadas (i.e. em lugar de dizerem “gostava de comer aquilo que estás a comer,” dizem “estás a comer, quero comer também.” Outros aspectos da sua cultura ligados à língua são considerados talvez primitivos por nós. Por exemplo, a língua dos Pirahã tem partículas gramaticais que ligam cada nome comum ao presente imediato, pelo que não têm história para além daquela que pode ter atestada por pessoas vivas. Por esse motivo, não têm contos de fadas para contar às suas crianças, não têm mitos de criação e, mais relevante para este fórum, não têm qualquer crença num Criador omnipotente. Acreditam em entidades sobrenaturais, mas apenas aquelas que conseguem ver nas diversas encarnações da Natureza, seja nas sombras e ilusões ópticas que esta cria.

 Faço referência a esta cultura tão extrema relativamente à nossa no mesmo sentido de William James pelo modo como permite iluminar a nossa própria normalidade, que à luz dessa comparação não será, como pretendo demonstrar, menos extrema do que a normalidade Pirahã.

Os Pirahã não têm palavras para graus de parentesco mais remotos do que dos avós. Isto acontece porque dada a longevidade média dos seus membros, não têm em geral experiência imediata de bisavós, e como vimos, nada fora da sua experiência imediata tem existência para eles. Isto parece a nativos da nossa civilização a epítome da miopia histórica. Contudo, todo este intróito teve como objectivo demonstrar que as limitações impostas à percepção temporal dos Pirahã não são diferentes em certo sentido às que foram impostas pelo Cristianismo à civilização Ocidental.

O debate contínuo entre cristãos e ateus baseia-se em grande medida na distância cronológica que nos separa de Jesus, por ser demasiado extensa para que possa garantir qualquer certeza relativa aos seus supostos feitos. O dia-a-dia de ambos é medido nessa mesma escala, e pensamos em 2024 anos como uma quantidade de tempo enorme por usarmos a mesma referência temporal, quer sejamos crentes quer não. Esta referência é tão universalmente aceite como “a medida do homem” que mesmo os ateus usam como argumento comum relativamente às afirmações cristãs as semelhanças entre as afirmações de fé do Cristianismo e as daquelas muito mais “remotas,” quanto as de Platão 350 anos antes, de Buda 550 anos antes, ou dos Egípcios mil anos antes. Estas medidas de tempo são consideradas gigantescas. Poderíamos dizer que assim é pelo tempo médio da vida humana ser tão curto, mas se assim fosse seria arbitrário dizer 2000 anos, ou 3000, ou 7000, ou 10.000, por excederem esse tempo de forma tão extrema. O tempo bíblico em geral e o início do Cristianismo em particular parece ser de facto para todos nós, crentes e ateus, um ponto de referência fundamental, que determina a medida do tempo que os Pirahã diriam na sua linguagem anumérica ser “pequeno” ou “grande.”

Talvez em nenhum outro campo isto seja mais evidente do que na arte. Pensemos em qualquer dos grandes artistas universais, mesmo anteriores ao Cristianismo. Qual deles dedicou o seu génio a representar algo anterior ao tempo bíblico, ou na Antiguidade a deuses ou demiurgos que não fossem antropomórficos de algum modo, ou a qualquer forma de eternidade que não seja em certa medida sobrenatural? Quem procurou extirpar da sua criação artística toda a linguagem religiosa para procurar representar o tempo na sua inimaginável magnitude e sublime magnificência de formas e beleza que engendrou? É certo que isto seria difícil de concretizar antes de Darwin, mas não teria um Darwin surgido séculos antes se o tempo “A.D” “D.C.” não fosse “normal”? Não teria o mundo natural sido dignificado como merece na produção pictórica e escultórica? Todos conhecemos o famoso fresco da Capela Sistina intitulado a Criação de Adão. Muitos dirão que sem religião, a Humanidade teria perdido esta imortal obra de arte e nada teria preenchido o seu vazio. Mas que teria Michelangelo ou um génio do seu calibre produzido se tivesse tido acesso à total dimensão da pré-História? Na imagem acima deste texto vemos um fóssil de um Psitacossauro a ser atacado por um Repenomamus, um pequeno mamífero do Cretáceo. Que metáfora melhor poderia haver para o erguer dos mamíferos do que esta imagem – real, não imaginária –, de um humilde mamífero, nosso “Adão,” a atacar e a devorar um representante da espécie dominante do planeta da altura, um dinossauro? Seria uma escultura destas inferior à de David antes de enfrentar Golias, menos rica na sua simbologia? Não. Apenas estamos limitados pelo facto de considerarmos 2000 anos uma quantidade de tempo extrema, além da qual nada pode ser de alguma forma ligado a nós enquanto humanos feitos à imagem de Deus. Não podemos nesse enquadramento considerar algo emoldurado em cinza vulcânica há 125 milhões de anos com metáfora de nós, ou algo digno de reflexão quiçá espiritual. Mesmo esquivando milhões de anos desde esse tempo, fomos incapazes de pensar em termos artísticos nos vários encontros que terão acontecido entre as várias espécies humanas que existiram muito antes de termos sido a única que sobrou. Ou na honra que deveria ter sido feita aos primeiros artistas que se dedicaram a pintar paredes de pedra num momento em que, ao contrário de qualquer artista conhecido depois deles, não estavam no topo da cadeia alimentar e no entanto decidiram dedicaram tempo da sua curtíssima vida a imortalizar uma imagem das suas vidas apenas por ser bela.

Que Capelas Sistinas do Paleozóico poderíamos ter tido sem o grilhão da temporalidade cristã? Que Capitólios do Triássico? Que frescos do apocalipse da grande extinção Permo-Triássica? Que Pietàs dos grandes líderes do planeta, os dinossauros, no dia do impacto desse asteróide que foi, enquanto mamíferos, o nosso verdadeiro Salvador? Que histórias a enfatizar que vivemos na Terra uns meros 0.09% do tempo que os grandes répteis reinaram? Onde estão os grandes murais a representar as nebulosas que originaram a nossa galáxia? Quem esculpiu o momento da morte do último Neaderthal? Quem honrou o enorme sacrifício dos nossos antepassados, anatomicamente e intelectualmente nossos pares, que sofreram de forma inimaginável para morrerem aos 20 anos, mas que procriaram a tempo de serem antepassados de todos nós? Quem escreveu o épico dos mamíferos do Paleoceno, a ode aos triápsidos, a epopeia dos Ardipithecus, o soneto ao primeiro anfíbio? Ninguém, porque tudo o que se passou antes de nós aconteceu há demasiado tempo, há mais de 2000 anos. É compreensível: essa escala de tempo não é só facilmente envolta para pelas nossas mentes espartilhadas, mas ajuda-nos a lembrar de que tudo antes dessa época, todos os milhares de milhões de anos e quintiliões de formas de vida que viveram e morreram nesse longo entretanto, foram apenas prolegómenos ao tempo abraâmico. E até para ateus isto parece natural.

Em 1978, o psicoanalista francês Dominique Laporte escreveu uma breve mas genial obra intitulada sem pudores História da Merda. No centro de gravidade entre a seriedade e a sátira, Laporte afirma peremptoriamente que o momento crucial da história da Humanidade foi nada menos que a invenção da sanita. Isto porque todas as outras espécies do planeta convivem com as suas próprias excreções corporais, urina e fezes, e estas humilhantes provas da sua fisicalidade e mortalidade fazem parte do seu mundo. Apenas para os humanos há a possibilidade de carregarem no botão do autoclismo e verem num instante estas lembranças de que a nutrição não é apenas um prazer desaparecerem da sua vista para sempre, como se se transportassem para um plano etéreo. Diz Laporte que a partir desta gloriosa invenção, o humano pôde considerar-se verdadeiramente um ente divino, acima de qualquer outra criatura, porque na verdade já não excreta senão durante breves segundos. Apenas se alimenta, e num piscar de olhos todo o sub-produto da sua digestão e função renal desaparece como que por milagre. O Cristianismo, de certa forma, fez o mesmo relativamente a todo o tempo pretérito a si próprio. Puxou o autoclismo da pré-História e assim criou o mito de que apenas o homem pós-Bíblia existe – mesmo para aqueles que se dedicam a criticar a Bíblia. Tudo o resto, aquilo que foi animal e repugnante, como peixes, anfíbios, répteis, mamíferos, e hominídeos, desapareceu debaixo do turbilhão sugador das águas da Bíblia sobre as quais pudemos então todos andar como Jesus andou.

Numa prateleira da minha biblioteca pessoal mantenho um fóssil de uma trilobite. Este singelo artrópode que agora ali existe ladeado de autores clássicos morreu talvez há 300 milhões de anos. Mantenho-o lá para me lembrar constantemente que toda a sabedoria dos autores que venero e cuja sabedoria me alimenta diariamente não passa de um grão de pó num enorme edifício cujas forma e dimensão somos incapazes de imaginar. Para que não me encontre um dia a rodopiar no puxar do autoclismo que foi talvez o maior sucesso da história do Cristianismo. Para me lembrar de que os “primitivos” Pirahã, que não têm palavra para “bisavós,” não são tão diferentes de nós quando consideramos que só temos a palavra “antepassado” para nomear toda a enorme variedade de humanos – melhor dizendo, pessoas – de outras espécies, que nos deixaram em legado quem somos hoje. Para que esses homens e mulheres extintos não seja nunca, jamais, aos meus olhos, dinossauros cristãos.